LENDA URBANA- O FANTASMA DO PADRE
 
Quem já passou dos setenta e ainda mora naquela cidade ainda se lembra do Padre Baltazar. Era um senhorzinho nos seus sessenta anos, magrinho e ligeiro, que dava a impressão de sempre ter tido aquela idade e aquela aparência. Pelo menos é o que diziam os paroquianos da sua igreja, que  conheciam de longa data e afirmavam que ele sempre tivera aquela aparência, mesmo quando era moço. Diziam até que ele, na verdade, não era um padre, mas sim uma estátua de um dos santos que ornamentavam os nichos da velha matriz da cidade. Por isso ele tinha sempre aquela aparência de santo barroco, mesmo quando tirava o velho hábito preto e vestia aquele terno lustroso de golas largas, que, segundo as más línguas, era o único que ele tinha, pois além de estar fora de moda há pelo menos uns vinte anos, o danado brilhava como um tampo de mesa envernizado. Diziam até que as freqüentadoras da igreja costumavam usar o paletó como espelho para dar uma arrumadinha nos cabelos.
Claro que tudo era maldade da linguaruda comunidade daquela cidadezinha. Padre Baltazar, na verdade era um vigário no velho estilo. Lembrava o Padre Cícero na aparência, mas não na conduta. Não pegava para si nenhum tostão que os paroquianos davam para as obras da Igreja. Vivia uma vida ascética, sem luxos nem comodidades de nenhum tipo. Nunca se soube também que praticasse algum tipo de perversão, desses que hoje são atribuídos aos padres modernos, embora se saiba que tais tipos de pecados, como sodomia, embriaguez, sedução de paroquianas, corrupção e apropriação indébita, sempre ocorreram no seio da igreja, desde que São Pedro a instituiu, nas venerandas colinas de Roma, para dirigir os espíritos da pobre humanidade perdida na escuridão do pecado, para a luz salvadora de Cristo.
Padre Baltazar não. Além de sério na conduta pessoal, não o era menos na postura física. Não costumava dar trela para conversa de beata, nem incentivava a superstição. Quem conviveu com ele diz que se tratava de um homem prático que não era muito dado a sentimentalismos nem apoiava misticismos e mistificações, muito próprio da gente do interior, acostumada a ver sobrenaturalidades em qualquer acontecimento que escapa do lugar comum . Para ele pão era pão, queijo era queijo. Se misturados, davam, quando muito, um bom sanduiche, mas nada além disso. “O princípio da identidade das coisas”, dizia ele, “tem que ser preservado sempre. Se não, de qualquer sombra, esse povo faz uma assombração.”
Um tanto irascível por caráter, ele dava bronca nas beatas quando elas exageravam nas tradições e quando se esqueciam delas. Na Festa da Padroeira da cidade fazia questão de carregar o andor. Na Festa do Divino, encabeçava, ele mesmo, as novenas, indo de casa em casa realizar as rezas. Costumava visitar os paroquianos em suas próprias moradias e conhecia pelo nome a maioria deles.                   
Não era homem de sorrir à toa. Mas também não tinha medo de magoar  amigo para não perder a oportunidade de uma piada ou de um sarcasmo. Falar bobagem na frente dele todo mundo já sabia no que dava. Ele tirava um baita sarro da pessoa com a maior cara de sério. 
Quanto ao seu trabalho ele o fazia de forma muito competente. Não recusava ajuda nem sacramentos a quem quer que fosse e estava sempre inclinado mais a compreender do que julgar. Quem procurasse conselho ou assistência nunca se decepcionava. Ele ia aos mais remotos cantos da cidade, aos mais miseráveis casebres, e não havia tempestade, moléstia ou qualquer outro obstáculo que o impedisse de prestar seus ofícios religiosos e assistência social a quem deles precisasse. Embora mostrasse pouco dos seus sentimentos, era possível perceber na ternura daqueles olhos sérios e na expressão daquele rosto severo que a verdadeira bondade morava naquele coração.
 
Esse episódio foi contado pela própria pessoa que o viveu. E virou uma lenda urbana naquela cidade.
Era uma noite escura, de lua nova, molhada por uma chuva intermitente, monótona e miúda, que fazia aquela madrugada parecer ainda mais triste e mais fria. 
Aquele menino não tinha mais que dez anos então.  Sua mãe o acordou em meio à madrugada e mandou que ele saísse à procura de um padre, pois o seu irmão mais velho estava morrendo e queria confessar-se. O irmão era um sujeito com mais ou menos trinta anos, que havia sumido de casa fazia já uns dez, e nunca mais dera notícia. Até o dia, cerca de um ano atrás, em que ele batera á porta do pequeno barraco em que ele morava com sua mãe viúva. Estava magro, macilento, com uma barba de anos por fazer e quando tossia cuspia um sangue pisado e mal cheiroso, como se tivesse levado uma surra que o havia rebentado todo por dentro. Disse que havia contraído tuberculose em razão da vida dissoluta e descuidada que levara nos últimos cinco anos. E do jeito que estava a infecção já não tinha mais cura. Só voltara porque queria morrer em casa e poder ser enterrado como cristão.
O menino não conhecia aquele irmão, pois ele havia saído de casa antes de ele nascer. Apenas ouvira falar nele. Uma briga com a mãe o levara a fugir de casa, depois que ela lhe dera uma surra por alguma coisa muito grave que ele fizera. Saíra dizendo que nunca mais voltaria.
Voltou doente e praticamente moribundo. Nas poucas vezes que ele conversou com o irmão doente, durante os poucos dias em que conviveram, ele falou da besteira que fizera e do arrependimento da vida torta que levara. Seu principal medo era ser castigado na vida após a morte por causa das besteiras que fizera e vivia rezando.
Na noite em o irmão deu sinais que ia entregar sua alma torta a Deus, tinha começado a chover logo pela manhã. Tinha sido um dia horrível e todos já esperavam por aquele desenlace.
“Mas porque tinha que numa noite assim? “ Puta merda”, pensou a cabeça do moleque de dez anos. “Porque será que as pessoas e as crianças escolhem para morrer ou nascer sempre de madrugada?”   
Não obstante, a presença da morte não nos dá ocasião para especulações inoportunas. Por isso ele pulou da cama como se alguém lhe tivesse jogado uma baciada de água fria na cara. Levantou-se, ainda tonto de sono, lavou o rosto, pôs sobre as costas uma capa de plástico e olhou com desespero para a rua baça e vazia, iluminada apenas pela luz mortiça das lâmpadas,que filtradas pela névoa projetavam fantasmagóricos reflexos nas poças d’agua que a chuva intermitente acumulara nas ruas.  Sem saber se a sua angústia era por ter que sair para a rua naquela hora adiantada da noite ou pelo drama que se desenrolava ali, a poucos metros, no pequeno quartinho onde um sujeito que ele mal conhecia, mas que era o seu irmão, estava dando os seus últimos suspiros, ele perguntou para sua mãe:
― Deve ser três ou quatro horas da madrugada. Onde, a esta hora vou achar um padre?
― Numa igreja. Onde mais, seu tonto? ― foi a resposta.
Então ele saiu feito alma penada á procura de uma igreja, rezando para que nela pudesse encontrar um padre. A mais próxima era a  Igreja da Nossa Senhora do Carmo. Bateu como um louco na porta da frente. Nada. Tentou então achar alguma porta nos lados ou nos fundos. Nada. O fundo dava para um enorme pátio, onde havia um pequeno portão. Bateu palmas, gritou, socou a porta com desespero. Ninguém respondeu. Duas quadras abaixo havia outra igreja, dedicada a São Sebastião, onde repetiu tudo que havia feito na anterior. Gritou, bateu, chamou com o desespero de uma alma perseguida por uma legião de demônios. Ninguém respondeu. Parecia que os homens de Deus haviam resolvido se ausentar do universo justamente naquela noite. E ele era a única pessoa que sobrara no mundo. E aquela chuva fria e monótona caindo, aquele vento gelado a castigar-lhe as faces, congelando  suas orelhas! Um piparote e elas se quebrariam como se fossem feitas de gelo!
Numa última tentativa correu até à Matriz da padroeira da cidade, a Senhora dos Aflitos. A velha igreja estava em obras, aliás. Ela sempre lhe pareceu estar em obras.  Desde que se achara por gente, nunca vira aquele igreja sem sinal de obra nela. “Igrejas são como o mundo” dissera um velho tio dele. “ Sempre estão em construção. Nunca terminam. Se um dia acabar a obra, é porque o mundo também acabou.”
Bateu na porta da frente da igreja. Ninguém atendeu. Deu a volta, foi até os fundos do edifício, onde uma construção de dois pavimentos estava em fase final de acabamento. Olhou para cima e viu as janelas do andar superior. Pareciam quartos. Pensou que talvez alguém estivesse dormindo lá. Bateu palmas, chamou, gritou. Nenhuma resposta. Bem embaixo da janela  havia um monte de areia, tijolos e pedra britada amontoados na calçada. Pegou algumas pedras e começou a jogá-las na janela do primeiro andar. Depois da quarta pedrada viu uma luz ser acesa dentro do quarto. Depois uma cabeça branca apareceu na janela e disse qualquer coisa que ele juraria ser um palavrão.  
― O que foi, moleque? ― Porque está jogando pedra na minha janela?  
―É o meu irmão, padre. Ele está morrendo e a minha mãe me mandou buscar um padre para confessar ele. Aí eu fui na Igreja do Carmo e não achei ninguém. Na São Sebastião também e aí eu vim aqui chamar alguém que possa... Ele não lembrava a palavra que sua mãe tinha dito.
― Ei, pára. Já entendi. Seu irmão está precisando de extrema - unção. 
− Isso aí.− Espera um pouco que eu já vou. 
A cabeça branca desapareceu dentro do quarto. Alguns minutos depois, com um velho guarda - chuva e um par de botas de borracha, o velho padre Baltazar e o menino estavam literalmente correndo pelas ruas da cidade adormecida e encharcada, em direção ao barraco onde ele morava.
Não era longe,  mas o irmão do menino não conseguiu esperar a chegada do padre. Morreu sem receber o sacramento, mas o velho pároco encomendou a sua alma com as cerimônias de praxe. Teve latinório e tudo. O menino ficou com medo e perguntou ao padre se as almas que desencarnam sem receber, ainda em vida, esse sacramento, ficam mesmo vagando pelo mundo como a  mãe dizia que ficavam. Estava se sentindo culpado pelo tempo que levou para achar o padre. Essa pergunta tinha também outro motivo. Alguns dias antes, de brincadeira, ele tinha feito um trato com o irmão.  Combinaram que quem morresse primeiro devia voltar para dizer ao outro como era o mundo do outro lado. Ele não tinha muita consciência do que dissera. Para ele era apenas uma brincadeira e ele não sabia da verdadeira condição de saúde do irmão. E agora estava com muito medo que ele viesse mesmo cumprir o acordo.   
− Não seja bobo, menino− respondeu bravo, o velho padre. – Isso não é hora de ficar brincando com essas coisas. E depois deu uma baita bronca na mãe dele por ter falado para uma criança uma coisa dessas. – A únicas almas penadas que existem é de gente que ainda está viva, mas leva uma vida tão torta que não sabe que já morreu− disse ele. ̶  As boas almas – disse ele – sobrevivem e continuam no mundo para fazerem o bem. Se você for um bom menino e precisar delas, é só chamá-las que elas vêm em seu socorro – completou o padre, com um simulacro de sorriso com um simulacro de sorriso, passando a mão na cabeça do garoto.
Ele jamais teve certeza se o padre tinha razão, mas o seu irmão nunca apareceu para lhe dizer como é o mundo do outro lado. E nas raras vezes que sonhou com ele, a única coisa que se lembrava era dele ter dito que as penas que tinha de pagar ele já pagara quando estava vivo. E que a morte foi o seu alvará de soltura.Quanto ao padre lembrava-se bem de ele ter dito que se chamava Baltazar.
 Soube mais tarde que esse padre tinha sido bastante famoso e respeitado na cidade. A única coisa que o deixou perplexo foi o fato de que, quando esse fato aconteceu, o padre Baltazar já havia morrido ha mais de dez anos.