ILHA BENISOLA

Em 28 de janeiro de 1997 Anton Lisbyak iniciou sua jornada pelo mundo marítimo. Com seu barco, todos os equipamentos necessários e com um imediato a bordo de nome Bruno, ele adentrou o mar rumo à ilha de Benisola, situada no oceano índico, a 626 km de Coral Bay, na costa oeste da Austrália. Empreenderia uma viagem de 14.000 km cruzando os oceanos atlântico e índico.

Bruno de maneira alguma encararia sua primeira aventura. Já tinha feito uma viagem de bicicleta do nordeste ao centro-oeste do país ajudando famílias carentes com seus conhecimentos de medicina. Médico formado que era em pediatria, resolveu exercer de maneira mais honrada a profissão, o que levou sua família ao desespero, principalmente seu pai. Além das viagens que fez pelo Brasil e ao redor do mundo antes de se formar.

Anton viveu sua vinda sempre entre o mar e o continente e também de maneira itinerante, como caminhoneiro, operador de guindaste em portos e outras profissões entre essas duas, sempre envolvendo o mar ou a estrada.

Quando zarparam o tempo estava bom, eram 05 horas da manhã, o silêncio magistral e o céu claro de um azul que esmaecia gradativamente pra cinza conforme se aproximava do horizonte. Bruno bebia uma xícara quente de café e via o mar da proa. Anton comandava o barco da cabine, também se servindo de uma boa xícara de café. Com o mar calmo a navegação corria sem contratempos e os dias passaram nas obrigações rotineiras com poucas novidades que valessem a pena ser escritas no diário de bordo, por exemplo, se houve um; e havia, não de bordo, mas de Bruno. Ele escrevia suas impressões da primeira aventura náutica empreendida. Já tinha se passado um mês e tinham atravessado algumas tempestades bem assustadoras, além do dia em que o barco foi cercado por tubarões. Essas foram algumas das coisas relatadas por Bruno em seu diário. Também teve o dia em que Bruno teve uma insolação por ter ficado tempo demais exposto ao sol, apesar de orientado por Anton sobre isso. E finalmente, por que não foram tão interessantes as coisas ocorridas em alto mar e sim na ilha, eles ancoravam. Ao sentir a areia fazer contato com os pés Bruno comparou como sendo antes, no mar, uma árvore sem raízes. Agora conectado com suas raízes sentia toda a energia que emanava da terra. As folhas, flores, os coqueiros, papaias, bananeiras. Ele correu como um louco e tocava na natureza e a explorava de todas as formas, cheirando, provando. Anton olhava com desdém, como faceirices de um rapazote, mas se divertia.

Anton sabia por que estava ali e olhando Bruno sentiu um leve remorso em não ter lhe contato o verdadeiro motivo da viagem àquela específica ilha. Eram os rumores misteriosos que cercavam o lugar. Mas não se sentia um calhorda por esconder algo que pensava que Bruno deveria saber. Afinal quem nunca tinha ouvido falar das lendas contadas sobre aquela ilha? De todos os navios naufragados, as estranhas criaturas que diziam habitar a ilha e alguns efeitos narcóticos que certas plantas provocavam. Foram histórias que o embalaram quando era criança e ele cresceu ouvindo elas sem as dar crédito. Eram lembranças reconfortantes que pairavam solenes e intocáveis, quando sua esperança em algo esvanecia.

Só quando encontrou aquele diário de um pirata do século XVI, nos destroços de uma velha mansão que tinha colocado abaixo quando ainda trabalhava na empresa de demolições, é que pode ter a real dimensão de tudo aquilo. O assombro, mesmo sabendo que poderiam ser apenas velhas lendas, pois o fato de estar escrito não prova nada, o fascinava. Era para ele tudo tão palpável, as descrições tão realistas e minuciosas que se sentia absorvido por aquelas páginas, como antes dele fora o excêntrico milionário alemão Joseph Kaufmann. O alemão não poupou esforços quando soube do resgate do único sobrevivente da ilha seis meses depois do naufrágio e foi atrás dele em Sevilha. Ao saber que sem família e delirando pelas ruas, onde muitas vezes alardeava suas aventuras “fantasiosas” a todos que quisessem ouvir, o velho pirata piorava de saúde e sucumbia entregue à loucura, tratou logo de interná-lo no melhor hospital psiquiátrico de Stuttgart e observá-lo cuidadosamente, tratando sua mente e aquecendo seu coração com palavras afáveis e gestos amigáveis.

Equivocadamente Joseph vangloriava-se, convicto de ter conquistado a amizade do pirata e lhe restabelecer a sanidade. Mas Sanchez quem sabe nem estivesse louco de verdade, ou se esteve enquanto andava pelas ruas de Sevilha, logo recobrou sua lucidez e fingindo, pode finalmente ganhar sua liberdade. Dívida que mais tarde ele saudou, matando Joseph. Mas infelizmente, apesar de todas as buscas, nunca encontrou seu diário e dali pra frente sua história se perde no tempo.

Exploraram a ilha e escolheram o melhor lugar para construir uma cabana. Anton usou bambu, cipós e folhas de coqueiros e Bruno, um devotado ajudante, pôs em pratica uma atividade à qual já estava bem habituado, a de construção de cabanas e barracões. Mas a noite agradável os deixou à vontade do lado de fora. O céu iluminado por uma infinidade de estrelas, como um pano preto no qual fora esparramas pequenas e incontáveis pedras de diamantes.

– Quer um gole? – Perguntou Bruno, oferecendo a garrafa de uísque envelhecido 14 anos. Anton olhou com desconfiança, porque era desconfiado mesmo por natureza, mas então aceitou.

– E Então? Nessas suas viagens pelo Brasil a fora ajudando crianças, o que aliás é uma bonita atitude, não teve tempo pro amor? Não encontrou sua alma gêmea? – Disse Anton, puxando conversa, devolvendo a garrafa pra Bruno.

– Alma gêmea?! – Surpreendeu-se Bruno, cuspindo parte do uísque ao soltar uma gargalhada frouxa.

– Você não me parece o tipo de cara que acredita em alma gêmea. Desculpa, mas é verdade.

– E o que eu pareço? Por acaso você me conhece? É daqueles tipos que acha que consegue traçar o perfil psicológico de uma pessoa depois de ter conversado com ela por cinco minutos? Você sabia garoto, que o homem conhece muito pouco de tudo que existe? Como é que você acha que essas teorias e teses podem servir pra dizer como somos? Você sabia que existem criaturas vivendo no fundo dos oceanos que nunca foram vistas, sequer são conhecidas, milhares delas? Mas o homem é cego, garoto. Quer enxergar longe e esquece de olhar debaixo do nariz. E eu não digo isso à toa, porque esse é o motivo de estarmos nessa ilha. O que dizia no panfleto que te trouxe nessa viagem comigo?

– Ah, o panfleto? Bom, algo sobre uma viagem exploratória numa ilha. Essa ilha, Benisola, da qual nunca ouvi falar.

– Sim, garoto, viagem exploratória, exatamente. E o que acha que viemos explorar aqui? Faz ideia? – disse enfático, enfiando a garrafa de uísque na areia e rindo desafiadoramente para Bruno.

– Parece que é você que tem que me dizer. Já que é um homem de tantos mistérios. Pode começar a revelar alguns. – Rebateu Bruno, que pareceu não se intimidar. Com as mãos cruzadas embaixo do queixo aparentava soberba.

– Garoto, deixe te mostrar uma coisa, fique ai, já volto e pego outra garrafa, porque esta já era. – e levantando-se foi até a cabana, voltando com um velho livro e o uísque nas mãos.

– Vê este diário? É o diário do capitão Bernardo Sanchez de Sevilha, Espanha. Sua nau naufragou nessa ilha em 23 de março de 1527, todos os tripulantes morreram, só ele sobreviveu. O que ele passou aqui ele descreveu minuciosamente neste diário. É um guia prático para quem acaba tendo o mesmo destino trágico. Acho que ele escreveu o diário inicialmente com a mesma intenção com que são escritos todos os diários, registrar, mas depois se tornou como um alerta para que outros não sofressem tudo que ele sofreu.

– Então é isso? Uma historinha de pirata? Qual é! Não foi pra isso que eu vim.

– Os dois se olhavam desconfiados agora. Bruno passava a desacreditar Anton, que antes via com grande admiração. Alguém com quem poderia aprender coisas da vida que lhe faltavam. Pois ele via aquela sua fase altruísta como importante e necessária, mas passada e agora com Anton uma nova fase se iniciaria. A fase mais egocêntrica, narcisista. Bruno parecia traçar minuciosamente as linhas da sua vida e queria que elas fossem vividas assim exatamente como ele idealizara, podendo, ao longo da vida ter vivido tudo e abranger todos os caracteres e situações da vida humana. Mas Anton também, com seus conceitos amplos e pessimistas sobre o ser humano, percebia, não com espanto, essa fraqueza no caráter de Bruno. Esse narcisismo exacerbado que fora ferido por não ter seus ideais definidos da forma como pretendera.

– Tome, fique com ele, leia. – Disse, entregando para Bruno o diário do pirata do século XVI. – Durma com ele, acorde com ele, devore-o. Que você encontre nessas páginas a sabedoria e a prudência e que possa se prevenir de todas as armadilhas que a ilha te preparar. – Bruno, abrindo o diário, começou a ler:

“Quando aqui cheguei, na primeira noite, alimentei-me de papaias e algumas bananas e tinha uma planta, que era atrativa demais à vista. Pequena, talos finos, umas folhas redondas, que lembram o agrião. Não sei por que senti vontade de pô-las a boca e provando-as, eram de gosto amargo, rejeitei-as, cuspi-as fora; mas depois sentindo na língua uma dormência e no cérebro um deleite estranho eu arranquei toda a planta de uma vez, com a raiz e tudo e comi.

Então tive a noite mais incomum da minha vida. Olhava para o céu e via os corpos celestes movendo-se rápido, cometas, planetas, tudo fora do lugar, coisas que só uma forte alucinação podiam propiciar e vozes. Vozes femininas que sussurravam numa língua estranha e gemiam derramando-se inteiras e languidas em meus ouvidos. Mulheres nuas que dançavam à minha frente, na areia. Tinham a pele alva e cabelos louros, encaracolados. Corpos todos perfeitos, os mais belos que eu já vi. Seios erigidos como dois montes gêmeos, entre os quais eu quis descansar a cabeça embriago de amor que fiquei pelas três.

Elas giravam sobre os calcanhares e riam com graça, davam as mãos e vinham à frente e retrocediam, num compassado ir e vir, como as vagas marinhas e se beijavam e me olhavam e depois riam. E vieram as três pra cima de mim e eu as amei como pude. Porque elas eram insaciáveis amantes. Quando acordei não havia sinal delas, como se nem tivessem existido, mas eu ainda sentia o gosto das bocas, o contato dos corpos ardentes, como se acabasse de acontecer”.

Bruno fechou o diário e riu daquele jeito debochado.

– Isso parecem as histórias de um pirata bêbado, que bebeu muito rum, só isso.

– Tá bom marujo, - respondeu Anton, - também não sei se o que está aí é verdade ou não, mas é por isso que estou aqui. Vamos ver! Eu trouxe um baralho. Afim de um jogo?

– Claro, de que outra forma poderemos passar o tempo nesse lugar? Vamos jogar.

Estendendo uma mesa retrátil de madeira na areia e com duas cadeiras começaram o jogo. As horas passaram rápido apesar do frio que fazia, o uísque aquecia-os e o jogo estava divertido. Descontraíram, riram contando coisas da vida de cada um. A bebida, consumida desde cedo, já os deixara altos a ponto de soltarem algumas situações bem inconvenientes.

O tempo parecia demorar mais a passar naquela ilha e quando Bruno começou a perceber isso Anton o distraiu, batendo as cartas na mesa, indicando que ganhara a partida. Levantaram-se, recolheram tudo e foram deitar. Fizeram quartos separados na bela cabana dividida em cômodos, que contava ainda com uma grande sala e varanda na frente. Anton também tinha feito um banheiro, em outra parte mais afastada. Mas a solidão era sentida forte ali.

Aquele lugar parecia fazer isso. Ele tornava o que era ruim ainda pior e o que era bom ainda melhor. Então, quando tudo que restava era os pensamentos e o silencio, a noite falava, ela gritava na verdade, coisas que eles não queriam ouvir. Só que já não eram mais só pensamentos.

Ambos escutaram os estranhos gemidos ecoarem distantes e incomodados mexiam-se nas suas camas, evitando levantaram-se, como se lutassem contra um desejo que não podiam conter. Bruno foi o primeiro a se entregar à louca e inexplicável força que os atraia. Aqueles gemidos femininos, mas que não eram de mulher, eles sabiam. Eram como gatas no cio chamando o macho. Anton, que só escutava, ainda deitado na cama tapava os ouvidos não querendo se entregar. Gritava com Bruno: “Não vá! Não vá! São os monstros, não são mulheres, são feras disfarçadas que querem te enlouquecer”. Mas também sabia que dizia isso para si mesmo já quase entregue aos gritos demoníacos das criaturas, que mesmo de ouvidos tapados eram perceptíveis.

As correntes de água limpa refletiam a luz da lua cheia. Aquele ponto da ilha era de mata exuberante e densa, arbustos, flores e uma variedade de folhagens e plantas que Bruno mesmo com algum conhecimento em botânica nunca viu em suas viagens ao redor do mundo. Conforme adentrava a ilha o cansaço aumentava, o terreno acidentado com pedras e cepos de vegetação morta, galhos, além de umas flores enormes cor de carmim em que esbarrando se abriam, exalando um putrefato cheiro que causava fortes náuseas. Os gemidos que agora soavam como uma melodiosa canção, o mantinham no caminho.

Como um coro de anjos três vozes sopravam graciosas suas revelações incompreensíveis. Ouvia-se: “Cubra com sua mão o perfeito seio de Austra. Com seu dedo dentro de Libia faça ela provar o próprio gosto que ela tem. E em mim, irrompendo faminto como lobo derrame e deixe que repouse quente e liquida sua energia vital. Eu sou Selene e junto com minhas irmãs vamos fazê-lo sentir o gosto divino do prazer que o próprio prazer sente, além do que um pobre mortal pode ir. Venha, nosso amado. Nos ame e nos satisfaça, para que insatisfeitas não nos vinguemos devorando suas vísceras”. E depois de dizer isso, Selena e as outras transformaram-se de lindas e nuas divindades da floresta, como ninfas, em criaturas com dentes longos e afiados e presas que se projetavam pra fora das suas bocas. Seus olhos, que já eram azuis, tornam-se ainda mais claros e brilhantes, tão vivos e incômodos ao se olhar, como se sugassem quem se atrevesse a fazê-lo, subtraindo sua alma para dentro daquelas perturbadoras janelas da morte.

Anton, da mesma forma atraído por três ninfas jazia dentro de uma gruta. Seu corpo estirado e ensanguentado. Olhar vidrado olhando pro teto da gruta. Passava a língua nos dentes, nos lábios, querendo sentir o gosto do sangue das ninfas que ainda tinha nele. Elas saíram rastejando como animais, ainda naquela forma bestial, farejando o ar e gemendo como as gatas no cio do início.

O sol, que traz com ele sempre um novo dia, iluminava enfim aquele lado do globo. Além das montanhas, no alto do cume mais elevado era sempre visível uma majestosa e assustadora cumulonimbus de onde ribombavam trovões cataclismicos, numa paisagem apocalítica e de natureza inconsebível.

Anton e Bruno deitados na areia da praia se olhavam e riam. Como doidos cheios de vida, como nunca antes. Cheios de vida ao provar a morte. Gargalhavam e depois beberiam uísque e quando acabasse o uísque as ninfas providenciariam o vinho. E bêbados ou não, se sentaram assustados ao perceberem a presença de mais alguém na ilha, além claro, das ninfas demoníacas. Cantando, com uma garrafa de rum na mão, bebendo e soluçando como um velhaco fanfarrão quer era, Bernardo Sanchez cambaleava tentando manter-se firme na areia fofa. Cantava uma velha moda espanhola desconhecida e sorria cuspindo às vezes a bebida.

Ao se aproximar brindaram e juntando-se a eles olhavam o mar, com os braços sobre os ombros como um trio de piratas bêbados, compartilhavam as bênçãos e maldições do lugar que os aprisionava. Benisola era um sonho, um pesadelo. Queriam partir, mas eram obrigados a ficar. Escravos da sedutora magia, dos encantos, de bebida. O que os esperava lá fora? Não era a mesma coisa? Mas ali naquele paraíso ainda poderiam desfrutar de todos os pecados com uma linda vista e com a brisa do mar em seus peitos estufados de satisfação e livres.

Anderson Roberto do Rosário
Enviado por Anderson Roberto do Rosário em 14/09/2018
Reeditado em 16/07/2021
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