Sinceramente em nunca soube por que aquela estatuazinha de anão no jardim da casa da Zizi me incomodava tanto. Era tão comum. Muita gente gostava de por aqueles duendezinhos em seus jardins. Tinha até quem dizia que eles eram gênios protetores da casa.
Talvez fossem. Mas aquele me incomodava. Toda vez que eu passava em frente da casa da Zizi e via aquele anãozinho, com seu casaco comprido, pintado de verde, sapatos de fivela e chapéu de três pontas, chupando eternamente aquele cachimbo que parecia estar enterrado na boca, em meio á sua espessa barba, eu tinha um estranho sentimento que nunca soube identificar de onde vinha, nem com o que se parecia, ou onde se alojava no meu corpo.
Desde cedo eu aprendera que se a gente quer entender os nossos sentimentos, a primeira coisa a fazer é dar uma identidade para eles. Isso significa identificar a sua cor, a sua extensão, a sua intensidade, com o que se assemelha, e em que lugar do nosso corpo ele prefere se localizar. Isso não tem nada de místico. É científico mesmo. Tem gente que aloja o medo nas pernas, de tal modo que fica paralisado em face á um perigo. Outros o colocam na garganta. Ficam mudos ou, ao contrário, gritam como possessos. Há quem sinta tudo no peito ou no estômago. Por isso, aquela “bola” que se forma na barriga ou no peito, quando algo de ruim nos acontece. Há pessoas em que um sentimento de raiva causa imediatamente uma gastrite ou faz disparar o coração. O sangue é bombeado com tanta força que as veias saltam e a pele fica vermelha como um pimentão. 
Enfim, sentimentos são estados neurológicos internos que a química do nosso organismo produz. Não tem nada de espiritual neles, a não ser o fato que de que eles podem se incorporar ao nosso próprio espírito e nos dar uma personalidade. Aliás, talvez o que chamamos espírito seja apenas a soma dos nossos sentimentos, pois ele se confunde com a nossa personalidade. Não dizemos que fulano tem um espírito muito competitivo, ou covarde, ou místico, ou ousado? Pois, é, quem sabe o tal “espírito” que as religiões dizem que temos não seja apenas a soma das nossas emoções, que é o alimento da nossa personalidade?

Voltemos ao nosso duende verde. Lembro-me dele ainda hoje, o danadinho com seus estranhos sapatos de fivela, aquele avental de couro, fumando seu cachimbo e empurrando, sem sair do lugar, um carrinho de mão pelo jardim da Zizi. Eu não sabia, naquela época, que ele era um leprechaun, uma espécie de duende, ou gnomo, figura mitológica do folclore irlandês. Descobri isso mais tarde assistindo a um filme de Walt Disney, onde um fazendeiro falido, para se livrar dos inconvenientes que a falência poderia lhe trazer (prisão, interdição, sequestro de bens, etc), resolve capturar um duende para que ele o levasse a um tesouro escondido. Pois é sabido que os leprechauns são guardiões de tesouros escondidos, ou que eles mesmos costumam guardar seus tesouros em grutas, fundo de lagoas, nascentes de rios, ou enterrados sob o pé de um carvalho e coisas assim.    
Geralmente é na ponta de um arco-íris que esses tesouros são escondidos. E como só eles sabem onde começa ou termina um arco-íris, é preciso capturar um deles para que essa localização seja descoberta. Aliás, dizem que o arco-íris é a porta pela qual eles entram e saem deste mundo. E quem tiver sensibilidade poderá ver um leprechaun caminhando sobre um desses arcos luminosos que dizem, Deus põe no céu para nos lembrar que a nossa raça já foi destruída um dia por uma grande chuva e isso pode acontecer de novo, se a gente não se emendar.. .
No filme de Disney tudo terminou bem. Aliás, os filmes de Disney sempre terminam bem. O fazendeiro capturou o seu duende, e este, depois de fazê-lo sofrer durante o filme inteiro, por fim acaba concedendo o que o fazendeiro precisava.
Mas as histórias que se contam na Irlanda sobre esses homenzinhos verdes que habitam nos arbustos e nos jardins, nem sempre acabam bem. Dizem que eles podem ser extremamente perversos. Alguns afirmam até que eles gostam de raptar crianças, para levá-las para o seu mundo encantado, onde elas são transformadas em animais de estimação.
 
Ah! A Zizi. A lourinha Zizi. A minha doce, meiga e querida Zizi. O meu primeiro amor de infância. Todo dia eu passava em frente á casa dela andando bem devagarzinho para ver se ela aparecia no jardim. Á vezes aparecia. E eu ficava olhando para ela como se  fosse a única coisa que meus olhos viam no mundo. Ás vezes ela abria o portão e me deixava entrar. E a gente ficava conversando, sentados em um banquinho, no jardim. Foram os melhores momentos da minha infância aqueles. Exceto pelo fato de que a presença daquele anãozinho de pedra me incomodava deveras. Parecia que ele ficava  nos vigiando. A impressão é que ele tinha ciúmes de mim.
Eu não sei por que cargas d’agua, Zizi parecia adorar aquele anãozinho de pedra. Ela  nunca se afastava dele. Estava sempre lavando o pilantrinha. Não cansava de passar as maõzinhas aveludadas na cabeça dele. Ás vezes o abraçava como se ele fosse o namorado dela e não eu. Eu não compreendia porque ela parecia gostar mais daquele monstrinho do que de mim. Eu o odiava. Morria de raiva daquele bostinha.
Eu só tinha doze anos. Zizi tinha dez. Mas ela foi a minha primeira namoradinha. E eu a amava tanto quanto pode amar um garoto de doze anos. E o maldito anãozinho era o meu principal rival. Posso garantir que não era coisa de criança não.
 
O dia mais triste da minha vida foi aquele em que soube que a Zizi tinha morrido. Uma difteria mal tratada a levou sem que ninguém pudesse fazer nada. Zizi era a menina mais bonita da rua. Teve o enterro mais concorrido do bairro. Não houve quem não tivesse chorado a morte dela. Menos o maldito anãozinho. Ainda hoje, quase sessenta anos depois, não consigo esquecer o sorriso de escárnio que vi naquela pequena e odiosa boquinha de pedra, depois que voltávamos do cemitério, onde a minha doce, meiga e amada Zizi tinha sido enterrada. O desgraçado parecia que estava zombando da minha dor. Lembro-me de ter visto nos olhinhos de pedra dele um brilho diabólico, como de quem acabava de me fazer uma sacanagem pela qual eu ia sofrer o resto da vida. Era quase o entardecer. Havia chovido o dia inteiro e um lindo arco-íris, que parecia sair da janela do quarto da Zizi e se perdia no infinito, emoldurava o céu nevoento.
No dia seguinte, quando passei em frente á casa da Zizi, o anãozinho não estava mais lá. Os pais dela me disseram que alguém o roubara durante a noite. Mas eu sei que não. Eu sempre soube que não foi isso que aconteceu...