Kindergarten

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia

Dormir na rede

Porque na casa

Não tinha parede

Ninguém podia

Fazer pipi

Porque penico

Não tinha ali

Mas era feita

Com muito esmero

Na Rua dos Bobos

Número Zero

Cantamos de mãos dadas como um hino. As paredes existiam sim, mas tinham tantas frestas que nem faziam diferença. Para dizer a verdade, pelo menos nos divertíamos com giz de cera colorido e rabiscávamos com desenhos bonitos. Era feio escrever ou desenhar a dor. Um arco-íris com cinco cores feito pela professora ficava em cima demostrando o quanto cuidaria de nós. As cores se repetiam em: Azul, amarelo, verde, rosa e marrom. O sol era amarelo, as árvores com seus troncos marrons e folhas verdes e a coitadinha da joaninha era azul com pintinhas rosas. Eu achei engraçado, pois vi o quanto era diferente. Será que a cor importa tanto assim? Seja como for, a professora que fez! E dessa forma estávamos rodeados de desenhos que falavam do futuro, um lugar de alegria onde já vivemos. Comemos no chão mesmo e não achamos tão ruim, afinal tem muita gente aqui que não tem o que comer. Uma vez teve um brownie com leite. Só uma vez! Na hora certa nos reuníamos e agradecíamos pelo alimento. Brincamos, cantamos, estudamos e conversamos com os amigos. Éramos dezesseis crianças com idades de no mínimo seis e o máximo doze. Agora somos sete! Montamos em algumas semanas um teatro para o natal e com menos crianças ficou muito mais difícil. Na celebração estávamos todos enfileirados com os menores na frente. Começamos com um medo no olhar. Cantar cantigas natalinas com uns trapos que haviam tirado das casas engraçadas que não tinham nada, apenas um telhado de uma fumaça fedida, era difícil entender se as lágrimas das mães eram de tristeza ou de amor. Todos choramos e os caretas riram!

– Helene. O menino, Otis, desapareceu a duas horas! Ai meu Deus! – Gritou a professora, Ana, sem controle e não se importando com quem ouvia.

Helene derrubou as pastas das suas mãos e paralisou. Seus olhos não suportavam as lágrimas que escorreram no seu rosto com espanto. Por um instante seu âmago gemeu, por sentir que perdeu uma parte de si. Tamanha era a colisão que nem mesmo teve o ímpeto de gritar pelo seu filho. Três professoras seguravam seus braços e em um coro de gritos longos e súplicas aos céus nada agradável, as quatro uniam forças como num ritual bizarro, para que Helene não fosse mais uma mãe a se enroscar nos arames de choque. Assim foi o nosso natal, que em um apagão de alguns segundos ouve-se berros e enquanto as luzes piscavam na tentativa de voltar, eu vi um boneco vivo no meio da correria de suas mães tentando encontrar suas crias. Das suas costuras mal fechadas escorria sangue, e como todos nós, não tinha cabelos. Faltavam-lhe alguns dedos, andava muito lento de forma grotesca, e no lugar dos seus olhos haviam dois buracos negros sem fim, onde podia se ver o vazio de um corpo oco sem uma alma habitante. Eu perdi o equilíbrio e caí sentado rastejando de costas até encontrar a parede que tinha uma raposinha marrom que meu amigo, Otis, havia desenhado. Por um instante senti um afeto me lembrando de nossas peripécias. Se aproximou de mim com uma respiração muito curta e um ronco carregado de dor. O cheiro de carniça que emanava das suas feridas se juntaram com meu terror e me engasguei vomitando a pouca comida que me sustentava. O tumulto era enorme, que meus gritos de socorro não eram atendidos. Percebi que alguns membros do seu corpo a pele era mais clara do que outros. Pensei se ele poderia me ver sem os olhos de um humano. Com a mão mais escura procurou o meu rosto e apalpando meu ombro, pescoço, sentiu meu rosto. Passou os dedos molhados de sangue nas minhas pálpebras, como se quisesse roubar os meus olhos. Eu tremia encurralado junto a raposinha. Seus lábios estavam secos, roxos e desidratados. Eu vi uma roda de uma mãe e dois filhos de joelhos e mãos dadas, aterrorizados pareciam cantar algum tributo, ou talvez eles tinham invocado aquele ente que me perturbava.

– Blaz?! É você? – Disse aquele boneco com a voz falida.

– Otis? – Percebi a presença da alma de um amigo. Nos meus braços, caiu já sem vida. Aquela aberração não queria me fazer mal. Com Otis no colo olhei para Helene que correu em minha direção, arrancou dos meus braços e sem intervalo o pressionou contra seu corpo como se quisesse devolve-lo ao seu útero. Estava inquieta e fazia uma dança de lamentação com um uivo de agonia querendo traze-lo de volta a vida. Com os braços do menino soltos no ritmo do balanço de Helene, eu pude perceber que mesmo morto, Otis sentiu a serenidade e o colo da sua mãe por mais uma vez.

Ao me levantar, não consegui permanecer firme. Girei e caí! Abri os olhos e vi apenas um breu na minha frente. Meu crânio doía muito, e minha face parecia que ia quebrar. Algo estava faltando. Berrei de dor! Berrei por muito tempo. Eu estava cego. Percebi dois enormes buracos nos meus olhos e lembrei de Otis. Agora era minha vez!

– Blaz. Se acalme! Eu sou médico e vou cuidar de você. – Disse com mansidão um homem que conseguiu me acalmar.

– O que está acontecendo comigo? Eu estou com medo. – Falei soluçando.

– Seus olhos já não estão sangrando mais. Já pensou em ter olhos azuis?

– Por favor, me ajuda! Onde está a minha mãe?

– Ela já volta.

– O que fizeram comigo? Minha cabeça dói muito.

– Acalme-se! Prometo que essa dor vai passar. Tente descansar mais um pouco.

– Espera! Onde você vai? – Perguntei com medo de ficar sozinho, embora já estivesse.

– Não se preocupe.

– Por favor, o doutor pode chamar a minha professora, Helene? – Pedi, pois Helene me trazia paz.

– Helene não pode agora. Ela está tendo convulsões nos arames eletrificados. – Disse isso sem um pingo de compaixão.

– Mããããeeee!!! Por favor, alguém me ajude! – Gritei chorando de terror.

Senti uma corrente de ar forte e ouvi barulhos, quando na minha boca veio um modelo de mordaça para me fazer parar de gritar. Eu me chacoalhei e gritei pedindo ajuda. Quando percebi que eu nunca venceria, eu ainda lhe perguntei:

– Quem é você?

– Eu sou o Dr. Joseph Mengele. – Tapou minha boca com a promessa de que minha língua seria cortada.

Agora eu sabia onde eu estava. Era o lugar mais temido pelas crianças:

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada...

Ted Novaes
Enviado por Ted Novaes em 03/09/2018
Código do texto: T6438572
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