O Último Morador do Cape Alen Cobs - CLTS 04

O Último Morador do Cape Alen Cobs

A noite estava fria e a chuva fina que caia desde o final da tarde parecia ter se intensificado. “É como se fosse o pranto de mil almas”, pensava Diorkovic, um dos moradores mais antigos daquele lugar sombrio. O antigo plantador de cebolas e criador de porcos, recostado na parede gelada da tumba do velho Ios, esperava os companheiros. Uma escuridão aconchegante tomava todos os cantos do Cape Alen Cobs, afastando os indesejados e favorecendo o evento prestes a se iniciar.

Distante quase trezentos quilômetros de Bucareste, as margens do rio Tisa e próximo à fronteira com a Ucrânia, em um bairro pouco habitado e cercado de propriedades rurais, o cemitério de lápides simples e austeras, abrigado pela escuridão, estava à disposição de seus moradores.

Não fazia tantos anos assim que as coisas começaram a mudar. Acostumados ao trabalho no campo, à cadência calma das lides rurais e ao lento medir do tempo pela passagem das estações, os moradores daquele Campo Santo estavam adaptados a nova condição, nada mais do que uma continuação de suas vidas.

Tudo parecia ter começado com a chegada de Antoli Posnov. Um jovem de pouco mais de dezenove anos que tinha os cabelos cortados de forma estranha. As vestes negras não causaram estranheza, mas os montes de penduricalhos prateados espetados pelo corpo não foram vistos com bons olhos. Ele parecia ter voltado pior do que estava quando partiu.

Não foi por vontade própria que Antoli, aos 12 anos de idade, saiu do bairro onde ficava o asilo. Muito ao contrário, foi arrastado pelos homens de preto da assistência social. E também não foi sem ameaças e berros recheados de pragas pesadas que o jovem se foi.

Desde que sua mãe enlouquecera e sumira da cidade, deixando-o em abandono, Antoli passou a vagar pelas ruas, negando ajuda e vivendo de pequenos furtos e muitas arruaças. Estas atitudes já eram ruins, mas ficou pior quando o garoto encasquetou que era artista. Paredes das casas modestas e recatadas da vila dos anciãos, como era chamado o lugar, apareciam pintadas com cores claras e com dizeres estranhos. Alguns diziam ser poesia, outros não arriscavam palpites. Não tardou a denúncia do plantador de cebolas, o homem mais sério e taciturno do vilarejo.

Feito correto e apoiado. As autoridades chegaram, ouviram os moradores e, por fim, o menino foi levado. Mais de sete anos se passaram até que noticias chegassem, pouco antes do corpo. Foi aí que tudo começou a mudar novamente.

A cerimônia simples para o sepultamento do rapaz em nada adiantava o que estava por vir. É certo que a mera presença daquele garoto, mesmo no estado deplorável em que se encontrava, já causava certo desconforto, mas não tinham idéia, as almas que ali moravam, do que os esperava.

Diorkovic tinha certeza de que era sacanagem de Toscolov. Não, ele não achava que fosse por maldade, mas por uma simples brincadeira sem graça. Aquele homenzarrão, que estaria beirando os cem anos caso estivesse vivo, sempre gostara de tirar o plantador do sério. Mesmo depois de morto, o grandalhão de bigodes espessos não deixava passar uma oportunidade de criar alguma confusão apenas para dar risadas. Mas era, na verdade, improvável que fosse obra dele a vinda do garoto.

O fato é que ele já tivera que tolerar aquele pirralho insolente e metido quando vivo, agora, “nem morto”. O líder das almas teve que rir de seu próprio pensamento. Mas, enfim, não queria aquele fedelho fazendo das suas para atrapalhar a tranqüilidade do lugar.

Já passava da meia noite quando as almas começaram a se fazer presentes. Expressões estranhamente felizes, embora esmaecidas e confundidas com a alvura da bruma que retornava com o rarear da chuva, deixavam Diorkovic intrigado. Ele não compreendia o motivo daqueles arremedos de sorrisos em espectros incomodados. Simplesmente não combinava.

Mas não demorou até que ele percebesse a razão. Atrás do túmulo de Ios, onde estava recostado, estava sua própria morada. Cinza, simples e manchada pelo tempo. Era como o criador de porcos gostava que fosse. Contudo, naquela noite as coisas tinham mudado um pouco. Uma pele branca de tinta fresca cobria a sua lápide. “Morada do Bafo” estava escrito sobre o seu nome, em alusão as cebolas que ele plantara e adorara comer durante a vida. Diorcovic só não ficou vermelho de raiva porque não tinha sangue nas veias.

-Eis o motivo de nossa reunião. O rebelde, o “artista” voltou. – Bradou Diorkovic, com furor. –Não podemos permitir que ele complete morto a obra que começou quando estava vivo.- Completou.

-A que obra se refere o amigo? – Perguntou Toscolov, coçando os bigodes.

-As arruaças, ora! As brincadeiras e as “artes”.

Diorkovic sempre se manifestava de maneira jocosa quando mencionava as obras do garoto fanfarrão. Isto já era história antiga, desde os tempos de vivente.

Mas o síndico do Campo Santo estava estranhando o silêncio de seus companheiros de ultraje. Como podiam não estar incomodados? Como agüentariam silentes as impertinências de um desajustado? “A morte, decididamente, deve ter afetado seus cérebros”, pensava Diorkovic.

-Vocês estão ficando malucos? Vão aturar este desajustado?

-Até que não ficou ruim. – Disse a senhora Rundic, que flutuava por sobre uma das lápides da direita.

-O que? A senhora endoidou de vez? Nossa tranqüilidade, nossas tradições e nosso modo de, por assim dizer, vida, são nossos maiores tesouros. Este... Este fanfarrão quer nos afastar de tudo o que sempre...er... vivemos.

Diorkovic ainda ficava meio constrangido e atrapalhado quando o assunto misturava vida e morte, mas para ele o que importava realmente era a tradição, não sendo relevante a posição em relação ao solo.

-Eu sempre fui um plantador de cebolas e...

-Ai é que está, meu amigo. – Apartou Toscolov, antes que seu companheiro desfiasse o rosário, a mesma lenga lenga tradicional. – Nós sempre fomos. E, diante do que nos espera, acho que estamos querendo deixar de ser. Só para variar.

-Diante do que? O que nos espera? – Questionou Diorkovic, indignado.

-O sempre, ora... Nós, na vida, sempre fomos a mesma coisa. Agora, teremos que continuar sendo sempre o que sempre fomos?

Aquele jogo de palavras pareceu dar um nó no cérebro esmaecido do plantador de cebolas. Mas não foi só ele que ficou confuso.

-É, eu também passei a vida plantando, mas quando comecei a ver a grama crescendo pela raiz, passei a achar que já chegava desta história toda. Penso que seria bom mudar alguma coisa. – Opinou a senhora Rundic.

-Nossas lápides são o retrato de nossa vida. Devem guardar um pouco do que fomos e externar o respeito dos que ficaram. Isto não pode ser corrompido. – Afirmou Diorkovic, convicto.

-Eu, particularmente, não tenho muita certeza disto. Veja bem, meu caro companheiro de vida eterna. Na minha existência do lado de cima, muitas vezes eu execrei meu dia a dia. O enfado me consumia. Mas eu tinha que seguir a tradição, cuidar para que não houvesse falatório por parte dos vizinhos. Será que terei que me resignar eternamente? – Ponderou a mais nova anarquista do lugar. – Quero mandar às favas as regrinhas que me aprisionaram por tanto tempo. Até porque o tempo aqui é bem maior. Já pensou?

-Ihhhh! A vizinha tá querendo chutar o pau da barraca. – Exclamou Ivanov, admirado.

-A senhora está dizendo isto porque não viu o que ele fez nas outras lápides... uma indignidade.

A névoa já tinha se dissipado com a chegada do frio da madrugada de modo a permitir uma melhor visão das moradas do Campo Santo.

-Veja os novos dizeres de sua pedrinha polida, querida companheira. – disse Diorkovic apontando para o túmulo da senhora Rundic.“Agora só a terra irá me comer” estava escrito de forma tosca por sobre a superfície lisa. Ivanov, o ex notário da prefeitura caiu na gargalhada diante da expressão surpresa da vizinha ultrajada enquanto flutuava para mais perto.

-Não ria , meu caro Ivanov. Já olhou a sua?

Todos levitaram para o lado norte, curiosos, em busca do reservado do funcionário graduado que tinha trabalhado por mais de quarenta anos em um dos guichês da prefeitura. “É no túmulo ao lado”, dizia seu novo epitáfio, em letras grossas.

E, assim, eles foram visitando os diversos recantos do Cape Allen para conferir as “artes” do novo morador. “Bati as botas”, no túmulo do sapateiro, “Sujou”, na pedra do gari, “Enfim, pó” nos dizeres do viciado mais conhecido da cidade.

E na mesma medida em que expressões contrariadas se revelavam diante de novos dizeres em seus próprios túmulos, sorrisos e gargalhadas acabavam por contaminar os demais moradores do lugar.

-Vocês estão rindo, mas isto não faz parte da nossa natureza. Vivemos... er ... existimos para arrastar correntes, bater janelas, ranger portas...

-Este é o problema! Não podemos virar fantasmas modernos, que não assombram, que não assustam? Vocês não percebem que isto é uma espécie de etapa, um castigo? Não fomos más pessoas, mesmo assim não conseguimos chegar ao descanso eterno. Talvez estejamos aqui pelas nossas pequenas faltas.

-Mas e que fim levou o garoto? Não o vejo em lugar algum. – Perguntou Toscorov, intrigado.

-Deve ter seguido o caminho... foi breve, mais uma vez, sua estada entre nós.

-Não dá para entender. O maior arruaceiro, ladrãozinho de galinhas, depredador de propriedade alheia... como pode?

-Talvez seja isto mesmo. Acho que ele foi, na verdade, vítima. O garoto não teve nenhuma chance na vida, não teve apoio, só era escorraçado de um lado para o outro... acho que temos nossa parcela de culpa em tudo o que aconteceu. – disse a senhora Rundic. - Logo a seguir, “puf”, sua presença enevoada se evaporou no ar.

-Foi. – Disse Ivanov.

-É! Foi mas me deixou com uma dúvida. Será que é por isto que estou aqui arrastando correntes noite após noite? Sempre detestei o garoto. Morri meses depois que ele se foi e lembro que fiquei bravo quando cheguei aqui e vi que não pude aproveitar por mais tempo a tranqüilidade de não ter ele por perto. Nunca pensei de modo diferente e ainda não penso.

A claridade tênue da chegada de um novo dia interrompeu o discurso de Diorkovic. Os moradores se recolheram aos seus aposentos frios para aguardar um novo anoitecer.

Nos meses seguintes as coisas foram se repetindo, com arrastar de correntes, ranger de portas, sustos. Porém, pouco a pouco as almas do Cape Allen foram cumprindo sua etapa e desaparecendo. Foram seguindo seu caminho no berço da eternidade.

No réveillon do ano seguinte, enquanto no centro do vilarejo as luzes das fogueiras de comemoração e o espocar dos fogos de artifício iluminavam a alegria dos viventes, apenas uma figura esmaecida flutuava solitária por sobre os túmulos gelados do Cape Allen Cobs, arrastando correntes e aguardando o passar de um tempo que parecia eterno.

Tema - Cemitérios - Inferno

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 01/09/2018
Reeditado em 01/09/2018
Código do texto: T6436835
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