o ódio
Repentinamente, o homem teve de frear o carro preto na avenida sinuosa e estreita; diante de si, um destes caminhões compridos, que carregam e descarregam entulho, realizava uma longa manobra. O motorista do caminhão, um sujeito asqueroso, ar de malandro, desdenhava da fila de carros que se agigantava atrás do homem. Buzinou uma vez, alta, longamente, uma buzinada cheia de ódio. O motorista alimária, de dentro da cabine, sinalizou com suas mãos imundas que fizesse a volta, porque aquela movimentação atravessada na avenida sinuosa e estreita, impediria a passagem por alguns minutos.
Nestas horas as veias do homem, verdes, azuis claras, saltam-lhe das mãos, que tremem iradas, pronta a enforcar aquele motorista abjeto. Um pensamento iracundo sobrevem lhe como um raio, xinga-o com toda fúria “filho da puta!”. O motorista parece não se importar com o seu ódio. Revoltou-lhe ainda mais a indiferença. Estava atrasado para uma entrevista de emprego e o mundo não o impediria de chegar. Lembrou-se de que dentro do carro haveria de estar algo que lhe acudiria e aplacaria sua insanidade assassina. Revirou papéis espalhados no banco de trás do carro preto, levantou a rede de balanço que usava para aquecer seu filhinho, quando voltavam da pescaria na represa. Então, debaixo duma revista velha, salpicada de areia caída dos pés do filhinho, apalpava algo.
Encontrou uma pistola verde, de vidro, gatilho laranja, cheia de um líquido. Abriu a porta do carro e caminhou devagar, olhos fixos em direção ao infame motorista, que virava o pescoço de cá prá lá alucinadamente, berrando, tentando dar pruma aquela jamanta cheia de mecanismos similares a um grilo que subia e descia carregando-se com um enorme container.
Pode-se dizer que o desafortunado motorista achou graça naquele homem empunhando uma arma colorida de brinquedo, mais graça achou, quando o homem insano, desesperançado pelo desemprego, pelo atraso na entrevista, mirou-lhe nos olhos o simulacro infantil, preenchido de uma mistura de fluorídrico com penta fluoreto de antimônio, um ácido mortal, utilizado para evaporar restos indesejados de carne animal de qualquer espécie em fazendas ocultas no interior do estado.
O motorista urrava, como as bestas aspergidas com água benta em filmes trashes; antes de voltar ao carro preto, o homem irado (mas depois desta vingança, sentia-se apaziguado) virou-se para ver a obra prima do ódio, o motorista já não era um motorista, transfigurara-se numa horrenda criatura sem olhos!