Vozes No Sótão

O medo se fazia constante quando despertei ao inalar a poeira que pairava sobre os móveis cobertos por lençóis. A escuridão engolira toda a luz do sótão, e eu ainda tentando recordar-me de qualquer lembrança que fizesse tudo aquilo ao meu redor ter algum sentido, erguia-me com dificuldade ignorando as minhas pernas que doíam como nunca. Já fazia alguns dias que essa enfermidade orbitava em torno de meu corpo. Eu estava realizando alguma atividade banal dentro de casa e de repente minha consciência desaparecia para horas depois, durante a madrugada, retornar. E eu sempre acordava no sótão. No maldito sótão...

Dizem que foi aqui que tudo aconteceu. Eu não me lembro. Na verdade dizem que meu consciente bloqueou aquela lembrança ruim como um mecanismo de defesa natural. Mas apesar de não haver nenhuma lembrança visual, um som pode ser escutado quando busco memórias de minha infância nos confins de minha mente. Uma lembrança sonora que sempre me remete a algo riscando-se contra uma superfície sólida seguido de um leve crepitar. E curiosamente eu sempre escuto este mesmo barulho peculiar em minha cabeça quando retomo minha consciência no sótão.

Minha tia morava comigo até alguns dias atrás quando misteriosamente desapareceu. Ela sempre tentou esconder de mim os fatos horríveis que perambulam por esta casa amaldiçoada, mas como um bom curioso que sou consegui arrancar dela algumas informações a respeito do que aconteceu com os meus pais.

Meu pai sempre foi um bom homem, respeitoso e inteligente que sempre me inspirou a enxergar o melhor nas pessoas e eu sigo esse legado até o presente momento. Mas como todas as famílias na face dessa terra, a minha também possuía algumas falhas e havia constantes brigas em nossa casa que normalmente iniciavam-se em decorrência da doença de meu pai.

Na vizinhança o chamavam de louco, mas eu apenas enxergava nele a mais pura e bruta genialidade. Contudo, eu era ciente de que por de trás das obras literárias que meu pai escrevera ao longo de sua vida, havia uma mente deteriorada pela constante busca de algo que ele nunca possuiu e nunca iria possuir. Era comum eu acordar durante a noite com ele esgueirando-se pelos cantos da casa em plena escuridão falando com as vozes que sussurravam coisas horríveis em sua cabeça. Minha mãe aos poucos foi abstendo-se de paciência e não demorou muito para os dois começarem a discutir sobre o fim daquele relacionamento.

Foi no ápice da lua cheia que tudo aconteceu. Segundo minha tia, meu pai enforcara minha mãe com um garrote antes de enforcar-se com o mesmo no sótão de nossa casa. Em um breve bilhete ele escrevera os motivos que o levaram a cometer tal atrocidade. Ele alegava em suas últimas palavras que minha mãe conspirava contra ele e planejava matá-lo. Os anjos sussurraram sentenças de morte em seu ouvido e ele escutou-os e abdicou de sua própria vida para fazer jus à vontade das vozes. Daí por diante minha tia nunca mais me deixou entrar no sótão. Eu aceitei tal condição e nunca durante toda a minha vida ousei colocar meus pés neste lugar. Mas logo após o desaparecimento dela eu comecei a sofrer deste problema que eu mesmo categorizei como sonambulismo e agora eu me encontrava ali novamente, no lugar em que eu jurei jamais pisar.

Minhas pernas ainda doíam quando eu tateei meus bolsos em busca do velho isqueiro que meu pai usava para acender seus clássicos charutos que segundo ele, os ajudava a buscar inspiração para seus livros. Com as mãos trêmulas pelo medo de estar presente naquele sótão eu consegui encontrar um candelabro naquela escuridão. Acendi as velas e iluminei o canto do local para visualizar a escada que descia para o piso inferior, mas me surpreendi quando o feixe de luz revelou por um instante um pequeno conjunto de marcas no assoalho de madeira. Meu coração começou a acelerar quando percebi que aquelas marcas na verdade se pareciam muito com arranhões. Os arranhões se deslocavam do meio do sótão para um objeto coberto por um branco lençol que se localizava no canto da parede. Apesar do medo, minha curiosidade reinou sobre meu ser e quando me dei conta, minha mão já havia retirado o lençol revelando diante de meus olhos um enorme caixote de madeira. Apressei-me em abrir o caixote e o arrependimento veio depois de meu ato curioso. Dentro do caixote jazia o corpo retorcido de minha tia. O estranho som de minhas antigas lembranças eram as unhas de minha mãe sendo riscadas contra o assoalho enquanto meu pai a arrastava para o sótão antes de enforcá-la e eu era capaz de escutá-lo em minha mente. E olhando para as marcas recentes no assoalho eu pude perceber que eu havia arrastado minha tia para o sótão e feito o mesmo com ela.

As vozes angelicais começaram a sussurrar para mim há algum tempo atrás, mas eu simplesmente ignorara o fato. Guardei este segredo somente para mim. O dom de meu pai fora passado para seu sucessor como um legado.

As minhas memórias nebulosas acobertam minha capacidade de conseguir recordar-me dos fatos com demasiada perfeição, mas eu conseguia enxergar o que realmente acontecera nos últimos dias e isso explicava a dor insuportável em minhas pernas, pois enforcar alguém com um garrote exige certo esforço, ainda mais quando a vítima resolve lutar para sobreviver.

Com os sussurros em minha mente eu olhei através da estreita fissura que havia entre o teto a parede do velho sótão e um arrepio percorreu todo o meu corpo quando notei que lua cheia reinava nos céus de todo o mundo. Aceitei as condições dos conselhos angelicais e com o velho isqueiro ateei fogo nos lençóis que cobriam os móveis.

Fui incapaz de perceber em que momento exato o garrote aparecera em minhas mãos, mas um sorriso espontâneo brotou em meus lábios quando o vi. Envolvi o garrote em meu pescoço e com a tira que sobrava fiz um laço envolta da haste de madeira no teto do velho sótão que logo mais seria meu eterno sarcófago. Enquanto o mundo tornava-se negro, eu ainda era capaz de ouvir as vozes. Meu pai falara comigo. Eu tinha que seguir com seu legado. Então, enquanto a vida se esvaía de meu corpo eu era capaz de escutar o crepitar do fogo ao meu redor, e sorri pela última vez quando os anjos calaram-se e aplaudiram o meu ato final.

(Guilherme Henrique)

PássaroAzul
Enviado por PássaroAzul em 27/08/2018
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