O CEMITÉRIO DA VIDA. CLTS 4.

O cemitério da vida.

Oito horas da manhã, e uma névoa encobria todo o bairro. Amanda sentia que não deveria ter deixado seu casaco em casa; com uma blusa de manga comprida de lã; e um shortinho, ela tremia.

A moça carregava duas bolsas, e uma mochila nas costas – andava sôfrega, e mesmo assim mantinha-se equilibrada sobre saltos altos, apesar de medir mais ou menos um metro e setenta. Amanda não estava satisfeita com sua profissão ;melhor dizendo: Profissões.

Uma mulher de trinta anos e meio - manicure, boleira, blogueira, jogadora de basquete, e estudante de medicina, por incrível que possa parecer; mas em dias brasileiros como os últimos, não parecia muito comum acumular variadas funções, num país jovem que normalmente combina blog com unhas bem decoradas; não existem tantos médicos jogadores de basquete...

A mulher estava caminhando e pensando, como seria seu dia, afinal, o mês de julho teria um breve recesso, e estudar medicina não é uma tarefa tão simples. Ela estava indo para casa da avó, sim a amadíssima e dedicada Matilde, uma senhora de noventa anos, e muita vitalidade ainda.

Amanda era o tipo de neta que não amava sua avozinha, ela idolatrava a mãe de seu pai, o pai que ela perdeu aos dez anos de idade, com apenas quarenta anos, de ataque cardíaco, seu lema desde lá: “Irei realizar o sonho do meu pai”: Serei médica, e médica legista.

A estudante como já fora dito, sentia frio, mas não o suficiente para voltar, afinal, antes de ir à casa da avó, que estava gripada, teria que fazer duas unhas. As unhas dos pés, da senhora Ricarda, que era pastora em sua igreja, e as unhas das mãos de Beatriz, sua irmã caçula, ambas pagariam 25,00 reais cada uma, e isso seria um ganho bem interessante, pois com este valor a futura médica, compraria material para fazer bolos, um para um casamento no final de semana, e outro para a festa de formatura, de uma das turmas da faculdade.

Os ganhos com as encomendas de bolo? Seriam em torno de 80,00 por bolo, com isso teria um faturamento de cento e sessenta reais, e então... (ia andando e pensando) ela poderia comprar um uniforme novo para disputar o jogo final de um campeonato local... em que modalidade esportiva?

Claro que a resposta seria: Basquete. Amanda estava aflita por chegar, seu tique nervoso disparava agora (mexia os braços), pois ela atravessava ruas e mais quarteirões, e nada de alcançar o seu destino. Quando faltava apenas cinco minutos de distancia para chegar, ela tropeçou e caiu, batendo a cabeça, que sangrava; ela gritou, e alguns transeuntes que passavam no lugar acorreram, para auxiliar aquela esguia criatura, que deixou escapar de suas mãos todos os seus pertences, alguns já estavam estatelados como ela.

chegou próxima aUm dos socorristas de plantão, logo proferiu: Deus do Céu!, ela está sem batimentos, uma senhora de óculos já se afastou fazendo o sinal da cruz, e outro senhor que estava fumando, jogou o cigarro no chão, se abaixou e colocou o ouvido no peito da aluna de medicina e depois de alguns minutos disse: Não há frequência cardíaca. Vamos procurar documentos, enquanto isso alguém aí ligue para o Samu!

Foi o que fez um homem alto que ficou parado e assustado, e que tinha um celular antigo, porém que servia para ligar, assim o fez, agora chovia, e cada vez mais forte, o homem alto sumiu, e o fumante que solicitou que chamassem a ambulância pública, virou a cabeça para ver a vítima, e para sua surpresa: Só viu seus apetrechos ao chão, pois ela havia evaporado.

Todos que viram a moça minutos antes do desaparecimento inesperado: Ficaram sem ação. O fumante correu para ver revirar os pertences caídos, talvez até recolhê-los, porém se deparou com algo inusitado: Um crachá que tinha escrito a frase “Médica legista”. Viu algumas canetas, lápis, pinças, um estojo de maquiagem, e uma caixa pequena de cor cinza, tipo caixa de relógio de pulso.

A mulher de óculos perguntou ao homem se ele achava que fosse possível uma pessoa se recuperar e sair tão rápido de um lugar após estar sem batimentos cardíacos, o senhor que procurava indícios da moça (dentro de sua bolsa) uma dica qualquer sobre a estudante de medicina, e sem sucesso; já que ele não achou nenhum endereço escrito onde pudesse levar tais miudezas.

Bem, todos se dispersaram inclusive o senhor que na verdade, era um enfermeiro aposentado, que morava há dois quarteirões do acontecido, ele caminhou lentamente até sua moradia : Um apartamento bem amplo, onde morava com Suzy, sua gata, ele era um solteiro inveterado, que amava sua liberdade, e nas horas vagas, ele escrevia.

Além disso, também era ator, realmente tinha conquistado tal título por roteirizar algumas peças de teatro. Ele pensava: será que aquela moça é atriz? Estava representando... sei lá, poderia ser uma cena de um curta, e ela levou tão a sério, que deixou até mesmo seus objetos... no chão; bem, mas ela parecia mesmo sem batimentos cardíacos, meu ouvido ainda está tinindo, ou será que não...murmurou inquieto.

Cícero resolveu abrir a caixinha de relógio, e ao se deparar com um punhadinho de terra escura, que tinha mais abaixo escrito um número de telefone, aí seu coração disparou, ele ficou muito tentado a ligar. E realmente este foi o próximo passo que o homem seguiu nesta situação: Ele sacou do celular, pois não queria deixar seu fixo gravado para ninguém - em tempos novos medievais- isso seria um risco.

Cícero ficava cada vez mais curioso, ao ouvir o som de “chamar” do outro lado da linha, e após dez esperas, quando ele iria desistir, alguém sussurrou, a voz era masculina, em seguida ele respondeu: - Oi. Só que num tom muito menos lúgubre que seu correspondente na ação.

Quando ele iniciava o colóquio com o indivíduo do outro lado da linha, a campanhía de seu interfone faz o som característico e chato de todos os interfones padronizados dos prédios locais, ele se assustou, porém disse: Meu amigo o senhor pode aguardar um minutinho, meu interfone acabou de tocar, e realmente preciso atender, mas me aguarde, a resposta fora um silencio aterrador; mas como Cícero estava extremamente preocupado, ele fora rápido para a área de serviço onde o aparelho estava berrando... ainda, sem cessar.

Ele atendeu, e do outro lado, alguém disse em tom de respeito e preocupação - Meu nobre tem uma mocinha aqui fora que precisa falar com o senhor. O enfermeiro respondeu meio atormentado: Como? E o faxineiro do andar, replicou: - A moça está machucada e disse que o senhor bateu nela na rua, mais ou menos há uma hora, e pegou suas coisas.

O ator e solteirão, quase desmaiou segurando aquele interfone amarelo, ele sorria jocoso, e meio desorientado, e pasmou anunciando ao Carlos: - Não agredi ninguém, me admiro muit o senhor se prestar a um papel deste tipo, não conheço nenhuma mulher machucada, a única mulher que vem aqui, é minha mãe.

Carlos com a vassoura em punho olhou para jovem mulher e avisou: - Olha seu Cícero não irá recebê-la, eu conheço seu Cícero há mais de quinze anos, desde a época que ele morava em São Paulo, aliás, foi ele que me indicou para a faxina do prédio, e agora eu cuido só da cobertura. Acho melhor à senhorita se ir, pois o seu Willian, o síndico, não gosta de prostitutas no prédio, aqui só mora gente de respeito, e pelo jeito a senhora parece um pouco diferente, um frio tão grande, e a senhora com pouco agasalho, e bambeando, será que bebeu, veio de alguma festa Weave? Sabe o povo fala que os jovens de hoje adoram este tipo de balada.

A jovem gritou dizendo: Sou estudante de medicina, e quero meus pertences, que este homem que o senhor defende roubou: - Vice! Agora estou entendendo, só podia ser da área médica, este povo adora uma Weaver!

Cícero por sua vez voltou-se ao telefone, e ao falar: Alo, não obteve retorno, aí seu coração ficou novamente frenético, ele pegou tudo que pertencia à moça do acidente; moça que ele nem sabia o nome, e guardou numa gaveta em seu quarto. Resolveu dormir e esquecer o fato. Pegou no sono, após um banho morno, e o que mais o preocupava não eram os pertences, nem o incidente, mas o que Carlos dissera a ele minutos atrás.

Ele dormiu durante o resto da tarde, e quando acordou, percebeu que Suzy não estava em lugar nenhum do apartamento, viu que as janelas dos dois quartos, e das duas salas estavam trancadas, como ele deixara antes de se recolher, notou que os basculantes também estavam fechados, sua gata era muito educada e sábia, não sabia fugir, nem que quisesse, ela era castrada e como ele havia percebido, estava tudo fechado, ele chamava, chamava e nada, foi até a cozinha e viu que a ração que ele havia despejado horas atrás no seu vasilhame alimentar está repleto, como se o animalzinho não houvesse se alimentado.

Aí novamente seu coração disparou, só que desta vez, ele sentiu uma dor no tórax, que foi aumentando em progressão geométrica, ou seja, se multiplicava ao longo do tempo... ele foi tateando até a porta da cozinha que dava para uma área da cobertura, onde ele tinha uma piscina, quando ele chegou próximo à beira; ele viu Susy dentro da água, ela estava ensanguentada e imóvel, ele soltou um grito lancinante e caiu na água desmaiado.

Do outro lado da cidade, uma senhora dizia: Onde está esta menina que nunca chega, já não sei mais o que fazer, ela combinou aqui na porta comigo há sete horas, estou exausta e febril, e estas flores irão murchar, está muito frio agora: Ah meu “deus”! ajude-me a resistir, sem a medicação irei voltar à estaca zero, Amanda onde você se enfiou? O relógio daquela quase nonagenária marcava dez horas da noite, ela resolveu entrar no grande jardim cuja porta principal já estava fechada... mas isso não constituiu um obstáculo para a senhora.

Ela entrou, andou, andou, e chegou ao final de este grande jardim, onde existia uma casa bem no fundo, com uma luz bem fraca acesa. Ela tal moradia, e sentou-se em um banco. Passado algum tempo um homem de mais ou menos uns quarenta anos chegou e disse: - Boa noite mãe, como foi seu dia? Ela olhou para ele e vociferou: - Foi péssimo, estou quase derretendo, pois sua filha ainda não chegou, não trouxe meus medicamentos. E o seu dia, como foi?

E o homem alto e magro que tinha um corte no peito, pois a camisa meio aberta, não deixara tal ranhura escondida, balbuciou: - Eu recebi um telefonema no meio do dia, era um homem que parecia muito assustado, depois ele tornou a ligar há umas quatro horas atrás, e combinamos um encontro, ele me entregou pertences de sua neta, inclusive as que estavam guardadas naquela caixa de relógio da Amandinha.

E ela, onde está? retrucou Matilde; e então Otto obtemperou: - Ela está terminando a autópsia lá dentro, e já irá trazer nosso elixir, (seu e meu remedinho) tudo correu bem, apenas demorou um pouco mais, porém se acalme dona Matilde! a noite é mais que prerrogativa vivaz e nos garante vida até o amanhecer, Cada vez que minha filhinha realiza este ato nobre, mais eu me orgulho mãe! e você também deve se orgulhar de viver a noite aqui e de dia lá – Isto é para poucos, um mínimo de espera e frio não faz mal a ninguém, nem vivo, nem morto.

O diálogo é interrompido pela chegada de Amanda, que porta algumas vísceras em uma bandeja, entrega aos seus entes mais caros em pratos separados acompanhado de suco de sangue bem fresco, eles sorvem o banquete com alegria, e logo, Matilde pula e dança ao som de violinos que ecoam “A marcha fúnebre” de Chopin, em um smartphone que ela trouxe em uma bolsa de couro ecológico, já Otto, deita em cima de uma sepultura ( cujo epitáfio diz: AQUI JAZ UM SER HUMANO ETERNO, LITERALMENTE),ainda terminando de mastigar um dos olhos de Cícero.

Valéria Guerra. Cemitério.

Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 25/08/2018
Reeditado em 29/05/2019
Código do texto: T6430064
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