O INFERNO DE ARTHUR - CLTS 04

Capítulo I

DEPOIS DA MORTE

E de repente, tudo se converteu em trevas, e o que era luz se tornou escuridão. O céu, antes de um azul cintilante, se tornou escuro como as asas de um corvo. A chuva caia timidamente molhando o chão do cemitério, enquanto o caixão de Arthur descia para o seu repouso final.

Lá dentro, ele dormia o sono dos que partiram dessa existência, mas seu rosto mantinha uma expressão vívida, como se ele apenas dormisse, para despertar logo depois. A terra ia cobrindo o caixão, misturada com a lama que a água da chuva formava.

Tudo aos poucos ia ficando escuro e frio!

A terra ia fazendo pequenas rachaduras no caixão, facilitando a entrada da água lamacenta e, essa, ia repousando suavemente no rosto do recém - falecido. Aos poucos o cemitério ia ficando vazio, e a noite caia.

O rosto de Arthur começou a adquirir uma nova expressão, de corado ele foi ficando pálido, e seu corpo começou a dar pequenos espasmos. De repente, o morto abriu os olhos.

Capítulo II

DÁ MORTE AO INFERNO

O céu acima de Arthur era vermelho, e não mais azul. Labaredas de fogo pareciam dançar nas alturas, movendo-se enlouquecidamente de um lado para o outro, como casais de dançarinos embriagados. Os olhos do jovem estavam paralisados diante de tamanho feito sobrenatural, ele não compreendia o que toda aquela situação significava. Ele moveu então a sua cabeça para o lado e, diante dele, uma figura medonha o encarava fixamente.

A criatura possuía olhos vermelhos como chamas, que faziam movimentos rápidos, como uma bússola quebrada. Seu rosto lembrava a face de um cão feroz, com caninos pontiagudos e uma língua asquerosa que não parava quieta dentro da boca do bicho. O corpo da besta era de uma magreza assombrosa, e a tonalidade da pele ia do cinza ao verde escuro em pequenas frações de segundos, como um caleidoscópio. Ele possuía ainda um par de asas de dragão, que quando abertas atingiam um tamanho assustadoramente inacreditável.

Arthur encontra-se paralisado de terror, seus olhos arregalados encaravam a criatura contra a sua própria vontade. A besta também o encarava, em tom desafiador. Mas ela sabia que ali a vantagem era sua.

Tudo parecia surreal, fora de contexto e, para Arthur, aquilo era o inferno - ele seu prisioneiro. A criatura infernal então começou a avançar na direção de Arthur, que há essa altura tinha todo seu corpo tomado por uma tremedeira incontrolável. A medida que o monstro se aproximava, ele ia mudando de forma, como um transmorfo. E quando chegou perto de Arthur, um era a cópia do outro.

Arthur viu então sua vida terrena passando na sua frente como um filme caótico, em preto e branco. Era como se ele estivesse vivendo tudo aquilo outra vez, cada hora, minuto e segundo. Ele podia ver perfeitamente quando aquele senhor de cabelos brancos bateu na porta da sua casa numa manhã de domingo, carregando uma Bíblia em baixo dos braços e desejando lhe falar de Jesus e das maravilhas que ele tinha para aqueles que o obedecessem após a morte. Arthur rejeitou esse Jesus e todas as maravilhas que ele queria lhe oferecer.

Naquele mesmo domingo, ele subiu numa cadeira que havia colocado no meio do seu quarto, colocou uma corda no pescoço e pulou para a morte.

Capítulo III

SENSAÇÃO DA MORTE

A criatura voltou então a sua forma original, um monstro bestial, com cara de cão e asas de dragão. Ele abriu sua bocarra e soltou um berro ensurdecedor, que abalou o céu de fogo acima dele e lançou Arthur ao chão, que cobria os ouvidos na débil tentativa de abafar aquele som maldito. O monstro abriu então suas asas infernais e subiu até o céu, desaparecendo no mar de chamas.

Arthur sentiu então seu pescoço se apertando em um laço eterno e mortal, os olhos ficando turvos e o corpo se desfalecendo lentamente, a medida que suas forças iam se esvaindo. A sensação da morte era aterradora, e ele podia sentir que realmente estava morrendo, mesmo sabendo que isso era uma coisa impossível de acontecer, uma vez que ele já estava morto.

Ele então pôs-se de bruços e começou a rastejar pelo chão do inferno, a impressão era de que estava se afogando numa areia movediça invisível, mas que para ele era real. A sensação de estar morrendo a cada minuto era desesperadora, e Arthur só desejava sair dali para o mais longe possível. O jovem rastejou por horas, mas no inferno as horas são apenas detalhes.

Arthur então parou e colocou as mãos no pescoço, na tentativa de aplacar a dor que estava sentindo, mas essa não cessava. Era como se fosse uma lembrança torturante do que ele havia feito com sua própria vida, e não podia esquecer disso. Esse era o seu castigo, lembrar que se matou.

Nesse momento, ele ouviu passos ao seu redor, enquanto mantinha os olhos fechados. E em seguida, lamentos.

Capítulo IV

O LAMENTO DOS SUICIDAS

Arthur abriu os olhos e ficou imóvel, observando uma massa humana morta vagando em fila indiana. Todos se lamentavam e choravam em uníssono, enquanto eram atormentados por pequenos demônios alados, que tinham rosto de gente e corpo de morcego. Eles voavam juntos aos mortos, tagarelando maldições em seus ouvidos e os lembrando do porquê estarem ali. Arthur também tinha o seu demônio com rosto de gente e corpo de morcego particular, que o encarava com olhinhos pequenos e negros, bolas de gude que parecem querer saltar das órbitas.

O jovem tentava afastar a pequena criatura de perto dele, em vão. O monstrinho parecia ficar furioso a cada investida de Arthur de mandá-lo para longe, e soltava um gritinho agudo, que fazia todo o inferno estremecer. Arthur tapou os ouvidos, mas era inútil, o som do bicho atravessava os tímpanos, e ele só parava para continuar novamente sua sessão de tortura, e parecia se satisfazer com aquilo.

Enquanto isso, os outros mortos continuavam sua procissão pelos caminhos tortuosos do inferno, todos com suas dores e tormentos pessoais, caminhando em fila única. Arthur pôs-se de pé e começou a seguir na mesma direção que os outros suicidas, sempre com seu demôniozinho ao seu lado lhe torturando. O jovem não fazia ideia para onde aquela legião de pessoas mortas estavam seguindo e nem onde aquela procissão o levaria.

Arthur começou a sentir um arrepio na espinha, é como se milhares de vermes passassem de um lado a outro do seu corpo, e devorassem a sua carne. Ele começou a se debater, e rolar no chão. Logo a sensação de ter milhares de vermes passeando pelo seu corpo passou, e ele é invadido por um incontrolável desejo de beber água. Ele se agachou no chão procurando por água, mas tudo o que encontrou foi uma terra preta e fedida. A vontade de beber água também passou, assim como a sensação dos vermes invadindo seu corpo.

Arthur olhou para a frente e para os lados, a multidão de pessoas mortas havia desaparecido e ele estava sozinho novamente. Até seu demôniozinho de estimação também havia sumido. Ao seu redor, uma cidade decrépita tinha brotado do nada.

Capítulo V

A CIDADE DOS DEMÔNIOS

Arthur estava olhando espantado para aquela cidade de aspecto nebuloso, enquanto vultos fantásticos saltavam pelos telhados em ruínas. Casarões velhos e decrépitos, com suas fachadas caindo aos pedaços, pareciam ter saído de um passado abastado, e pintados em um quadro de agonia eterna.

Criaturas medonhas povoavam a antiga cidadela, e faziam morada nas velhas edificações em frangalhos. Eram seres amedrontadores, demônios que faziam daquela cidade o lar deles. Dentro da cidade, vozes começaram a se agitar, em todas as direções e lugares. Arthur ficou atordoado, olhando para o alto dos prédios, para os becos e ruelas escuras em busca das vozes misteriosas, mas parecia que elas vinham da sua própria cabeça.

Eram lamentos desesperados, choros angustiados, uma dor e sofrimento inacreditáveis, que pintavam um quadro arrepiante do inferno. A alma de Arthur parecia partilhar daquela mesma sensação de desespero, e sofria junto com as vozes. Demônios de olhos grandes e vibrantes surgiam aos borbotões, com suas bocarras recheadas de dentes afiados e mortais. Eles encaravam Arthur, parecendo se divertirem com todo o seu sofrimento.

Os demônios riam e se agitavam descontroladamente, pareciam que estavam em um transe enlouquecido. Arthur começou então a correr em busca da saída da cidade, se embrenhando por becos e ruelas que formavam um labirinto de armadilhas, cruzando com um demônio aqui e outro ali. As vozes aim adquirindo um tom mais perturbador a medida que Arthur ia afastando-se do centro da cidadela. O laço mortal em seu pescoço ia tornando-se mais intenso e a vontade de morrer de verdade e apagar sua existência ia crescendo dentro dele em um ritmo alucinante.

Aos poucos e maneira fantástica e, misteriosa, a cidade começou a desaparecer. As vozes começaram a diminuir de intensidade e os movimentos dentro da cidade foram tornando-se mais lentos. Seus velhos casarões de passado abastado e povoados de seres demoníacos, aos poucos foram ficando sem vida e sem cor, e transformaram-se em sombras, cada vez mais esbatidas.

Capítulo VI

A VIA DOLOROSA

Uma pessoa vagava ao longe, ela estava nua e carregava uma pesada cruz de ferro nas costas, sendo açoitada por demônios alados com corpo de leão e cabeça de cavalo.

A cena era perturbadora!

Arthur olhava espantado e ao mesmo tempo impotente aquela via dolorosa, ele desejava ajudar aquele estranho, mas naquele momento não podia nem ajudar a si mesmo. A pessoa era um homem, mas estava muito distante para se ter uma ideia de qual seria a sua idade ou a sua aparência. Arthur então apressou-se a acompanhar o estranho homem na sua caminhada dolorosa.

O misterioso homem caminhava por um caminho reto, sendo frequentemente açoitado pelos demônios com corpo de leão e cabeça de cavalo. O caminho levava até um desfiladeiro e, lá embaixo, um abismo de fogo aguardava quem chegava lá. Vozes angustiadas emergiam do fundo do poço, alcançando proporções inimagináveis, e causando calafrios em Arthur. Ele podia ouvir nitidamente o som que vinha daquele buraco flamejante.

Era o som desesperado do inferno!

Lá dentro, pessoas eram engolidas por labaredas de fogo, as chamas crepitavam debaixo para cima, fazendo movimentos ágeis, como se tivessem vivas. Muitos tentavam driblar o fogo, escalando as paredes do grande abismo, mas era em vão. As paredes do lugar eram revertidas por lava incandescente, que borbulhava e descia como uma cascata, se misturando ao fogo que brotava do própria solo do inferno.

O homem da cruz de ferro vai aproximando-se mais e mais do abismo de fogo, e Arthur tentava correr para alcançá-lo. Mas parecia que ao mesmo tempo que ele estava mais próximo de alcançar o homem, mais distante ele ficava. Era como se uma força invisível e sobrenatural tivesse sempre o arrastando para trás.

Arthur era cada vez mais tomado pelo desespero, ele desejava ajudar aquele estranho, mas parecia uma missão impossível. O homem chegou ao desfiladeiro e deixou que o peso da cruz de ferro o colocasse de joelhos. O fogo saltava da boca do abismo com movimentos ágeis, como se possuísse braços, amedrontando os demônios que acompanhavam o homem, esses ao verem as chamas fugiram atordoados, se batendo uns nos outros.

O homem pôs-se de pé segurando a pesada cruz, como se não tivesse vontade própria. Ao mesmo tempo que Arthur estava perto, parecia estar mais e mais distante. Ele começou então a gritar e gesticular para que o homem olhasse para trás, e esse olhou.

Capítulo VII

O ABISMO

A alma de Arthur foi então invadida por um pavor inacreditável, um medo nunca antes experimentado. De todas as coisas que tinha visto no inferno, aquela era sem sombra de dúvida a mais infernal de todas. Ali, parado na beira do abismo, prestes a saltar nas chamas eternas do inferno, não era outro se não o próprio Arthur.

O rapaz olhava para toda aquela situação impotente, sem entender nada. Enquanto o outro Arthur, o que carregava a cruz de ferro, o encarava com uma expressão de calma. Ele então virou-se novamente para a entrada do grande abismo e começou a andar na direção dele. O outro Arthur começou então a correr na tentativa de evitar que sua outra metade pulasse nas chamas.

As vozes que vinham do fundo do poço começaram a ficar mais agitadas e inquietas, o fogo parecia aumentar de intensidade com o burburinho que vinha das profundezas. As chamas que crepitavam no céu pareciam ficar mais intensas também, a medida que a agitação no inferno aí atingindo níveis alarmantes.

Arthur estava correndo o mais depressa possível, o mais rápido que suas pernas podiam suportar. Seu pescoço estava cada vez mais comprimido pelo laço invisível da morte, e ele não conseguia recuperar o fôlego.

Sentia-se entorpecido!

O Arthur com a cruz de ferro aproximou-se perigosamente da entrada do abismo, o fogo dançava no ar descontroladamente e as vozes vindas do fundo do poço tornaram-se mais enlouquecidas. O céu era abalado por trovões ensurdecedores e bolas de fogo do tamanho de carros desciam das alturas violentamente, chocando-se contra o chão e abrindo enormes buracos no solo negro.

Quando preparou-se para pular nas chamas do abismo de fogo, os dois Arthur encontraram-se num aperto de mãos firme e tudo se apagou.

EPÍLOGO

Arthur acordou no meio do seu quarto, ele estava de pé em cima de uma cadeira e segurava nas mãos uma corda feito um nó. A campainha tocou, o despertando de um transe enlouquecido. Ele largou a corda com o nó no chão e saiu correndo para abrir a porta.

Chegando lá, um senhor de cabelos brancos, carregando uma Bíblia embaixo dos braços, encontrava-se de pé na entrada da casa.

FIM

TEMA : Inferno.