SOB A FECHADURA

 
 
Não tinha como enxergar pela janela embaçada, ainda assim era visível que a chuva lá fora poderia piorar com o tempo. Felipe fechou a cortina da sala debilmente, imaginando que nunca mais veria um dia ensolarado.
— Mãe ainda não voltou. — Disse Felipe acolhendo-se nas cobertas do sofá.
— Já faz muito tempo. É melhor ligarmos para o papai? — Perguntou Mario inquieto.
— Tentei faz uns minutos, mas ele não está atendendo...
— Está ouvindo?
— Estou, não consigo subir lá em cima.
— O que acha que é?
Felipe não respondeu, pondo as mãos no rosto avermelhado. A água escorria pela escada do segundo andar, tombando em redemoinhos até atingir o acoalho da sala.
— Será que a porta do banheiro aguenta...
— Não sei.
Mario aproximou-se da escada, ouvindo um guincho baixo e animalesco rastejando pelo ar seco.
— O que aconteceu com a luz?
— Não sei. — Respondeu Felipe, arrogante.
— Que droga, não sabe de nada?
Felipe tentava continuar calmo, mas era difícil acreditar que aquela coisa no banheiro havia pego sua irmãzinha de seis anos. — Já passou das seis... já passou! Ela não chega. — Insistiu Felipe.
— Sabe como aquilo entrou aqui?
— Não sei. — Disse Felipe, desta vez mais baixo e incomodado. Na realidade, ele sabia muito bem como aquela coisa de dois metros havia entrado dentro de casa. Uma coisa dessas não surge assim do nada, é simplesmente atraída, e neste caso, por seu medo incontrolável.
— Droga Felipe, se não se levantar daí, cedo ou tarde aquilo vai aparecer.
— Não quero. — Resmungou, como se agora tivesse voltado aos sete anos.
Mario sentou-se na poltrona esquerda do sofá, esperando que se o provocasse, ele se levantaria, mas não ocorreu. Quase meio minuto depois um raio invadiu o quintal num clarão branco, provocando um barulho estridente e quase ensurdecedor. Um estalo vibrou no teto e em seguida algo começou a arranhar o piso superior com violência. Felipe segurou a lanterna tremelicando e cobriu-se com a lençol que tinha nas mãos. Mario permaneceu imóvel fitando o teto.
— Não vai aguentar. O que vamos fazer se ele sair.
— Não sei.
— As portas estão fechadas, não consigo encontrar as chaves.
A única coisa que importava para Felipe ao contrário de Mario, era ficar o mais calmo possível, ou tudo poderia piorar ainda mais.
— Aonde está indo? – Perguntou Felipe, vendo que havia se levantado do sofá.
Mario não respondeu, somente continuou a andar, até encontrar o corrimão da escada.
— Não Mario, não sobe... – Tentou impedi-lo, mas não o alcançou a tempo.
As sombras projetavam-se pela janela. Felipe seguiu os passos de Mario e subiu a escadas. Naquele momento, podia ouvir a respiração da coisa, ainda presa no banheiro, por mais que um momento, desejou que tudo fosse um sonho, mas quando abria os olhos, era real, tão real como Mario.
— Desce, ele vai te pegar. — Gritou baixinho.
Estava tão escuro que só conseguia ver uma silhueta pequena no final da escada, encostada na porta do banheiro, tentando espiar pela fechadura.
Distraído, não notou, mas Felipe estava os pés ensopados de sangue, o que brevemente acreditou ser água pela falta de luminosidade, porém era muito grudento para ser apenas água.
— Ele ainda está lá dentro! – Falou Mario, olhando sob a fechadura.
— Sai daí ele vai te ver. — Avisou Felipe.
Mario desencostou-se da fechadura, após um dedo tentar furar seu olho.
— Droga, ele me viu.
Então um rugido soou, grave e alto... algo esmurrou a porta, seguidas vezes, até que a fechadura arrombasse. A luz escapou pela porta entreaberta, clareando o corredor. Mario escondeu-se atrás de algumas vassouras e continuo observando como podia. Felipe paralisado urinou no pijama, sua expressão fechada não tinha reação e se Mario não tivesse atirado lhe um lápis, ele teria continuado parado na escada, com os olhos fixados na porta do banheiro.
— Felipe... irmão... socorro... está tão frio aqui dentro... — Chamou uma voz quase inaudível, num tom feminino.
A porta do banheiro continuou entreaberta, estranhamente entreaberta, como se esperasse algo. Mario pensou em saltar para dentro do quarto ao lado, mas a porta estava aberta em sua direção, poderia não ter tempo suficiente se a coisa saísse.
— Mano, maninho... cadê você, estou com frio, vem me ajudar. — Chamou novamente a voz, num tom mais despretensioso, terminando sempre as últimas palavras com um eco terrivelmente rouco.
— Ester! — Sussurrou Felipe, ainda parado no meio da escada.
Mario estava tão bem escondido atrás das vassouras que quase não teve visibilidade suficiente para enxergar a porta do banheiro. Sem dúvidas, seria melhor fechar os olhos, uma mão vermelha quase três vezes maior que a sua deslizou para fora do banheiro, esmagando a maçaneta. — Irmãozinho, porque está com medo, venha... venha comigo. — Falou novamente, novamente num tom diferente e menos doce que da primeira vez.
Um olho escorregou para fora do banheiro, girando em semicírculos imperfeitos. Mario fechou a boca com a mão para evitar um grito de terror e começou a chorar baixinho.
— Fe-li-pe... — Chamou a voz, desta vez muito diferente da voz de sua irmã.
Um bafo podre invadiu o corredor e em seguida, quatro outros braços deslocaram-se para fora do banheiro, todos com sulcos dos quais vazavam um liquido verde e ácido.
Mario forçou a vista na direção da coisa e acompanhou-a descer as escadas, então com cuidado saiu detrás das vassouras e correu até o banheiro. Não havia restado muito de Ester, o estomago de Mario chacoalhou ao ver seu corpo e quase não teve como segurar o vomito. Em seguida, fechou a porta com o máximo de cuidado e observou do alto da escada a coisa se mover para a sala.
— Felipe... — Ouviu a coisa sussurrar com uma voz espantosamente grave.
Seus dedos tocaram o corrimão e se equilibrou alguns degraus para frente para poder enxergar Felipe que estava deitado no sofá, coberto, tremendo e com a lanterna acesa.
De repente a coisa parou, e acompanhou os movimentos que Felipe fazia debaixo do lençol. Mario entrou em pânico, mas o que poderia fazer, se tentasse se aproximar, certamente seria pego, e uma coisa tão grande como aquela não teria muita dificuldade.
Algumas horas depois, a portão da garagem se abriu. Wagner estranhou que as luzes estivessem desligadas, então ascendeu a lâmpada do quintal. — Querida, filho... — Falou Wagner indiscretamente alto, mas não teve resposta.
Sob a fechadura da sala uma mancha de sangue refletiu. — Felipe... Raquel... estão em casa. Enquanto abria a porta, um hálito podre sobrecarregou o ar. — Nossa, que isso!
Ao abrir a porta encontrou Felipe, parado a sua frente, coberto com o lençol do sofá.
— Está tudo bem filho? — Perguntou Wagner.
— Não conseguimos papai... não conseguimos impedi-lo...
— Como assim não conseguiram.
— Mario e eu não conseguimos salva-la.
— De novo com essa coisa de Mario. Já te disse que ele não existe... — Respondeu Wagner, fechando a porta e pondo o casaco no mancebo.
— Papai, ele ainda está aqui dentro de casa.
Wagner tentou acender a luz da cozinha, mas estava queimada.
— Não tenho tempo para isso filho, já chega. Cadê sua mãe.
— Ele a comeu... — Respondeu Felipe.
— Dá para parar com isso. Não consigo chegar um dia sequer sem passar estressa, chega Felipe, esta grande demais para essas merdas.
— Papai, ele é mais grande que você. — Apontou Felipe para um ponto escuro na sala.
— Está também está queimada... — Disse Wagner, apertando o interruptor. — Anda mexendo na força Felipe...
— Não...
A luz piscou por dois segundos quando tocou o interruptor uma última vez. Um braço achatado surgiu sob seu ombro, e logo atrás, varios circulos escuros, como olhos se movendo. Wagner sentiu uma respiração forte na orelha, mas não se virou. — O que está fazendo? — Perguntou Wagner.
— Já disse papai... ele ainda está em casa.
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 15/08/2018
Reeditado em 15/08/2018
Código do texto: T6420073
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