ÚLTIMA CHAMADA
— Bem, se não acha o salário bom o suficiente, peças a contas. — Respondeu Jonathan arquejante.
— E sair sem direito algum...
— Cara, não sei o que está acontecendo. Mas, não posso te dar um aumento. Não acha que também queria um aumento.
— Claro, mas...
— Olha, o salário aqui é ruim, e baixo demais, não pense que não sei, já estive no seu lugar. Mas, sei como pode tirar um dinheirinho a mais.
— Como?
— A última chamada ocorre após a meia noite. Poucos funcionários se habilitam a trabalhar neste turno.
— Quer que eu faça hora extra à noite.
— Se deixar explicar, vai entender.
Tiago segurou a caneta que tinha nas mãos com mais força e continuou a ouvi-lo.
— Temos algumas encomendas não registradas oficialmente que precisam ser remanejadas diariamente para o setor leste, tinha um cara que fazia isso, mas ele não apareceu mais, fazem três dias e as caixas só tem acumulado.
— Quanto vou ganhar?
— O bônus é de sessenta por cento do seu salário, mais a hora extra.
Ansiava aceitar a proposta, mas relutava ao mesmo tempo.
— Vai fazer alguma coisa esta noite por acaso. Saiba que o bônus é acumulativo, se continuar amanhã vai ganhar mais sessenta por cento.
— Porque está me propondo isso? Nunca fui um funcionário exemplar.
— Filho, se quisesse funcionários exemplares não estaria falando com você.
— Então, me faça entender... porque?
— Não tem um porquê? Só estou lhe dando uma oportunidade. Soube pelos outros que precisa do dinheiro. Aceite logo essa droga, ou vá embora.
— Calma... quando começo?
— Já disse... a última chamada. Esteja no setor de cargas que um dos encarregados vai ajudá-lo. Se não se apressar vai perder...
Tiago saiu da sala no oitavo andar e desceu até o subsolo, um pouco arrependido de aceitar a proposta, mas seduzido pelo dinheiro que poderia ganhar.
— Novato... ei novato... aqui embaixo. Jonathan mandou alguém mais forte dessa vez. — Berrou um velho saindo de uma escotilha.
— Você é o encarregado? — Perguntou Tiago, sem acreditar que poderia ser um velho de oitenta anos usando um macacão vermelho.
— Sou... acho que sou agora. Desça logo, temos que levar essas caixas antes das 03h00.
— Porque?
— Porque? Porque? Faz muitas perguntar novato. Apenas desça e me ajude. — Respondeu de forma ignorante.
Tiago aproximou-se da escotilha, um vento abafado espalmou em seu rosto.
— O que tem ai em baixo?
— Só desça novato! — Gritou o velho lá no fundo.
Tiago equilibrou-se até conseguir descer pela pequena escadinha na base da escotilha.
— Cuidado com os degraus, esta úmido e enferrujado, pode acabar escorrendo. — Gritou novamente num tom sarcástico.
Não tinha ideia do que encontraria lá embaixo, contudo, por mais estranho que parecesse ele realmente precisava do dinheiro, então continuou descendo, até chegar ao fundo.
— Então desceu mesmo. Achei que continuaria lá em cima.
Tiago o encarou sem resposta.
— Vamos, deve estar entusiasmado para começar. Afinal estão pagando... não é mesmo?
— Espero que sim. Posso fazer uma pergunta?
— Se não for mais idiota do que as anteriores.
— O que aconteceu com o último. Digo, o último cara que estava trabalhando aqui.
— Diz o Rafa. Há, aquele dali não tinha jeito para isso. Foi embora antes da primeira semana, isso porque convenci ele a ficar por quatro dias.
— Todo dia elas chegam, vem de muitos lugares... tem muita gente interessado nelas, por isso pagam tanto. — Respondeu o velho com uma voz rouca e pigarrenta. — Chega de conversa, as caixas estão amontadas por todo o galpão, seu trabalho é leva-las para o setor leste, use os carrinhos de carga, é só levar elas por aquele corredor que vai chegar a um elevador... não tem erro, siga o que lhe disse e vai terminar logo.
— Espere não vai me ajudar.
— Garoto, meu trabalho aqui é outro, tenho que catalogar toda essa merda, antes que chegue lá em cima. Escute, tenho muito cuidado com essas caixas e de um jeito ou de outro não tente ver o que há lá dentro.
Tiago fez que sim, pegou o carrinho de carga e se afastou do velho. Antes de continuar, virou-se novamente. — Ei, qual é o seu... — Não completou, vendo que o velho á tinha dobrado o corredor.
— Então tudo bem.
Até as 01h30 conseguira transportar facilmente vinte duas caixas de cinquenta quilos para o setor leste, e ainda não se sentia cansado, mas desde a última caixa, percebeu alguma coisa estranha. Alguém parecia sussurrar de dentro da caixa. Tiago deu um tapa leve na superfície de uma das caixas, mas nada aconteceu, imaginou que o sono o estivesse ludibriando.
— Socorro... — Ouviu um murmúrio.
— Socorro... — Uma voz fina e debilitada, porém suave como a voz de uma criança pequena.
Tiago voltou os olhos a caixa, parou o carrinho de carga e aproximou o ouvido com calma.
— Me ajude... — Ouviu novamente uma voz de criança.
— Estamos aqui dentro.
— Que porra estão fazendo nesse lugar? — Perguntou-se assustado.
Ele passou a mão sobre a fita isolante da tampa e a puxou com força, esperou que o velho não tivesse ouvido o barulho e continuou até que conseguisse abrir a porta.
— Socorro... — Ecoou uma voz de dentro da caixa, um pouco mais clara agora que estava aberta.
Havia quatro crianças dentro daquela caixa, todas desnudas, com medo e tremendo de frio.
Uma das crianças arquejou-se sobre seu ombro e o abraço chorando. — Quero meus pais, eles me tiraram dos meus pais...
Tiago soltou o menino no chão com cuidado e correu até a sala no final do corredor.
— Não conseguiu fazer seu trabalho direito, não é mesmo novato.
— O que estão fazendo aqui? Traficando crianças.
O velho abriu um sorriso fechado e gargalhou.
— Crianças... não... recursos... sabe quanto pagam por uma delas.
— Não vou fazer parte disso. Quando sair daqui vou direto na polícia.
— Novato, novato, está jogando um jogo perigoso.
Ele saiu da sala, dobrando o corredor na direção do elevador, onde havia esquecido uma caixa.
— Malditos. — Falou, abrindo a caixa. — Agora entendi porque pagavam tanto.
Tiago sentiu uma sensação diferente, seus músculos começaram a encolher, tal como suas roupas ficaram largas e enormes. — O que está acontecendo comigo...
— O que aconteceu com todos eles... — Respondeu o velho, aproximando-se devagar.
— Não deveria ter tocado neles. Cometeu o mesmo erro dos anteriores...
Enquanto diminuía, Tiago sentia dificuldade em entende-lo, como se todas suas experiências de vida se dispersassem.
— Não levamos essas caixas para o setor leste para traficarmos crianças. Levamos até lá, pois é único lugar que tem uma fornalha suficientemente grande para caber todas elas no final da noite.