SAÍDA PERIGOSA
— Doutora, está me ouvindo... não importa o que tem lá fora agora. Apenas ajude a minha mulher. — Explodiu João, carregando a mulher no colo.
— Venha... Como ela se chama.
— Isso importa agora?
— Acho que não. Não.
João sabia que não deveria ser tão bruto, mas em meio àquela confusão, não tinha como agir de outra forma. Carla levou-os até uma sala vazia no final do corredor, relutava em ajuda-los, mas não tinha restado mais ninguém. Enquanto cruzava as outras salas às pressas, correndo com a mulher no colo, João viu de relance vários corpos em macas cobertas de sangue, alguns estavam com um pano enrolado na cabeça, outros tinham caído no chão e ainda agonizavam na própria saliva.
— Sobrou mais alguém?
— Não... quando aconteceu o hospital lotou rápido. Não sabíamos o que estava acontecendo, então quando a confusão começou todos enlouqueceram. Os mais espertos fugiram, os que ficaram provavelmente estão mortos agora...
— E como conseguiu?
— Eu... — Sorriu Carla, indiscretamente.
— Me escondi embaixo de alguns cadáveres. Em baixo de meus colegas, de pacientes... não faz mais diferença, não é mesmo. Agora, ponha ela na maca...
— O nome dela é Marta. — Respondeu de cabisbaixo, ameaçando chorar.
Carla, tocou em seu pulso, a pele estava gelada e áspera, em seguida abriu alguns botões da camiseta e tentou ouvir o coração.
— Ela não está respirando.
Ele entrou em pânico, suas mãos iam da cabeça aos olhos simultaneamente, enquanto via o rosto pálido de sua mulher sem reação.
— Ela estava no carro, eu mandei ela não sair, mandei ela ficar no carro, gritei para ela ficar no carro, mas ela saiu... não sei de onde aquela droga de moto saiu. Tudo aconteceu tão rápido. Ela caiu no chão e eu a trouxe para cá.
Carla entrecruzou seus olhos com os deles, ela sabia que deveria dizer, mas não o fez, tentou ressuscita-la uma dúzia de vezes até perder força e cair no chão. João, aproximou-se, tocando a mão de Marta.
— Querida, me desculpe... — Falou chorando.
— Eu tentei, mas ela já estava morta.
— Sabe o que deve fazer. Antes...
— Por favor, não me faça fazer isso. Ela estava gravida.
— Se não o fizer ela vai virar.
— Por favor, não.
— Deixe-me faze-lo então. — Falou Carla se levantando.
— Não. Calma... calma...
João tocou em seu ventre enrijecido e sentiu um chute forte e sensível tatear sua mão.
— Ele está vivo ainda. Meu filho ainda está vivo.
— O que disse?
— Sinta doutora, ele está chutando...
— Não é possível.
— Faça alguma coisa enquanto há tempo. Faça alguma coisa doutora.
Carla aproximou-se de Marta, encostando o estetoscópio em sua barriga.
— Isso é impossível. De quantos meses ela estava.
— Acho que oito, quase nove. Íamos ter o bebe na semana que vem o médico disse. Poderia ser antes.
Carla correu até a sala ao lado e voltou com uma dúzia de equipamentos cirúrgicos.
— Ela está morta, então só temos como tirar essa criança daí abrindo... me entendeu João, não tenho como tirar essa criança daí sem abri-la. Precisa ficar calmo agora... calmo me entendeu.
O relógio na parede leste marcava 17h51, e naquele momento conseguia ouvir perfeitamente cada badalada do ponteiro vermelho, como um eco forte na sua cabeça, latejando desordenadamente. Carla encostou o bisturi sob a pele dela, sentiu uma certa dificuldade em fazer a incisão, talvez porque tinha esperanças que a criança ainda estivesse viva, ou talvez porque tivesse medo que não. Marta tinha começado a apresentar os sinais da infecção pós-morte, suas veias comprimiam-se sobre a pele que começara a escurecer.
— Tira meu filho daí de dentro logo... — Berrou João.
— Senhor, não vou conseguir fazer isso se não parar de gritar. Por favor se afaste.
Ele não se conformava em ver sua mulher naquele estado. A mulher com quem compartilhara sete anos estava morta sobre uma mesa de cirurgia suja, estirada como se não fosse nada mais que um corpo, um corpo sem significância.
Carla fez um corte vertical até atingir uma cartilagem mais amarelada sob os músculos, em seguida segurou a placenta com uma pinça Allis de 15 centímetros e abriu a membrana branca com a tesoura. Acometido pelo pânico, João cerrava os dentes, observando de longe.
Antes que terminasse a cesariana, Carla parou abruptamente, largando os instrumentos que tinha mão. Parecia estar abalada com o que via e se debruçou sobre o corpo de Marta respirando com dificuldade. João aproximou-se com os olhos esbugalhados, colocando a mão sorrateiramente na beirada da maca. Sem palavras, Carla saiu da sala, deixando-o.
Algo pulsava dentro do buraco que ela havia feito no ventre e por um momento acreditou que seu filho pudesse estar bem, mas logo aquele alivio sufocou-se em sua garganta dolorida como um grito mudo, fazendo-o ficar sem ar e sem reação. O bebe estava com metade do corpo deformado, sua pele deslizava como se estivesse solta e quase todos os seus membros tinham protuberâncias estranhas e saliências que eclodiam das pontas das mãos e do pescoço. Ao chegar mais próximo, um esguicho de sangue voou sobre seu rosto, e a criança parou de se mover...
— Deve ter sido a infecção. Impediu que ele se desenvolvesse. — Disse Carla do corredor.
João segurou o corpo da mulher e de seu filho morto, e chorou como uma criança de oito anos.
— Não sei desde quando esse vírus começou, mas já havia infectado ela.
— Porque meu Deus? Porque está fazendo isso comigo... — Grunhiu ele.
— Deus não existe. Ou se existir, não está nem um pouco preocupado conosco.
Após meia hora chorando João deixou-a.
— O que vai fazer? — Perguntou Carla.
Ele não respondeu, apenas sentou-se ao lado dela, acuado e com uma simples expressão de derrota.
— Não precisa terminar assim... antes de rastejar para debaixo daqueles cadáveres encontrei isso. — Disse Carla, mostrando-lhe um revolver ponto 40. — Acho que não tenho porque continuar... passei minha vida toda salvando pessoas, e agora... não tenho mais ninguém para salvar. Então também não tenho porque continuar, não acha.
João não respondeu, mas segurou-lhe o punha, quando ameaçou colocar o dedo no gatilho.
— É uma saída perigosa... — Respondeu João.
— É a que eu mereço.
— Sabe que se fizer errado pode fazer durar horas.
— Então me ajude. Pegue esta arma e aperte o gatilho para mim. — Falou ela, entregando-lhe o revolver.
João conferiu se estava carregada puxando o pente. Restavam ainda oito balas. Suficiente para mais que uma pessoa, pensou.
— Não tenho porque continuar vivo... se ao menos meu filho estivesse comigo, mas perdi ele também.
— Façamos juntos então.
João engatilhou a arma, mas antes de tomar qualquer ação, Carla segurou seu ombro.
— Quer mesmo que seja neste corredor.
— Precisa ser em outro lugar. O que mudaria?
— Só acho que poderíamos fazer em outro lugar.
— Não fara diferença depois.
— Para mim fara. Para mim... fara. — Respondeu Carla, deixando uma lagrima escorrer por seu rosto.
João levantou-se com dificuldade, ajudando-a a se levantar também. — Vamos para o terraço. Acho que seria melhor se fosse longe de tudo isso.
— Tem certeza?
— Tenho.
Não seria difícil encarar o fim do mundo desta forma. Quando se vê tanta morte, como viram naquelas últimas horas, seu subconsciente se torna um emaranhado de decisões aleatórias e cada uma delas com certeza o levará a morte. João subiu as escadas cansado, levando uma dor que quase não podia suportar. Carla o acompanhou relutante, mas decidida de certa forma. Ao chegarem no terraço, o pôr do sol deitava no horizonte em raios alaranjados claros. De cima do prédio era possível ver as ruas vazias, os carros abandonados e muitos cadáveres despretensiosamente caídos uns sobre os outros pelas calçadas. O ar soturno do outono ressoava, enquanto posicionavam-se na beirada do terraço. Carla segurou sua mão com força e o entreolhou mais calma.
— Faça.
Ele então levantou o revolver posicionando-o na altura de sua testa, fechou os olhos e segurou o gatilho.