Sombras na Areia
Eu me chamo Elizabeth Galbraith. Meus pais se chamam Arthur e Lorna Galbraith, tenho um irmão mais novo chamado Tony e uma irmã já falecida.
A história que vou contar ainda me impressiona muito... Até hoje tenho as mesmas sensações, sempre muito estranhas...
Tudo começou em 1945, quando eu tinha vinte anos de idade...
Os meus pais haviam comprado uma enorme e antiga casa, em uma praia minúscula que fica próxima de Elmerville. A casa era realmente muito bonita, bem mobiliada e com quadros caros espalhados por todos os lugares. Uma verdadeira mansão.
Era uma construção magnífica, construída sobre um rochedo enorme e alto. No segundo pavimento da casa, havia uma grande sacada, que se projetava sobre o penhasco, quase sobre o mar. Era o meu lugar favorito naquela casa, e onde eu costumava ficar horas debruçada sobre a balaustrada, olhando o mar verdejante, magnífico e agitado, com suas ondas se chocando violentamente sobre as rochas, logo abaixo de mim. O que eu achava mais fascinante era que de acordo com o tamanho da onda, a água do mar, respingava em cima da sacada onde eu estava...
O fascínio do mar me deixava distante, pensativa... O barulho das ondas me encantava, como uma melodia hipnótica. O cheiro da maresia, consigo sentir até hoje.
Acredito que tenha sido assim que tudo começou...
Chegamos então eu e meus pais. E junto a nós, Tony e minha irmã Lucyle, que veio acompanhada de seu namorado Tobias Barrymore. Logo que cheguei, fui me instalar em um quarto, ao lado da sala, onde ficava essa sacada.
O meu quarto era bem espaçoso. Tinha uma linda e privilegiada visão do pôr do sol por detrás das rochas. Tudo parecia um sonho para mim…
Mas eu sentia que havia algo errado, com aquela casa. Uma sensação que nunca consegui expressar. Um clima pesado, opressor.
Ninguém notava nada de anormal, mas, no fundo, eu podia perceber algo estranho por detrás da tranquilidade esboçada pela minha família... Como se fosse tudo artificial. Uma felicidade que soava falsa. Mas estranhamente, só eu percebia isso.
O fato é que desde pequena, eu ouço vozes estranhas, que ninguém consegue ouvir... Acho que no fundo todo mundo as ouve alguma vez na sua vida... Mas nessa casa às vezes quando havia silêncio, eu conseguia ouvir, além do som das ondas se chocando contra as rochas lá embaixo, o barulho de passos arrastados pelo corredor...
Em um certo dia durante a mesma semana em que eu cheguei na nova casa, lembro-me, que eu me encontrava sozinha na sacada olhando para o mar... Meus pais estavam jogados ao sol e minha irmã e Tobias haviam levado Tony para conhecer os rochedos...
Distraída, fiquei olhando o céu azul com imensas nuvens desenhadas nele, tentando imaginar que figuras as elas formavam, quando parei subitamente ao ouvir algo estranho...
Eram o som de passos lentos e arrastados logo atrás de mim, como que entrando pela sala.
Parei aturdida por um instante. Da sacada onde eu estava debruçada, podia ver todos na praia. Quem poderia caminhar pela casa? Seria um estranho, um animal?
Se dentro da casa não havia mais ninguém além de mim, então quem estaria dentro da sala?
Foi então que o inesperado, me fez ficar de cabelo em pé...
Ouvi claramente o som de uma respiração ofegante às minhas costas.
Senti minhas pernas amolecerem e por um momento pensei que fosse perder o equilíbrio e cair no chão. Mas ainda tive forças para me manter de pé, e consegui virar a minha cabeça para trás e ver o que ou quem estava atrás de mim...
Ao virar-me não vi nada, nem ninguém. Senti o meu sangue gelar, e um gosto amargo subiu até a minha garganta. Podia sentir um calafrio subindo pela minha espinha, e fazendo os cabelos da minha nuca ficarem eriçados.
Os sons dos passos continuaram ecoando pela sala, como que se aproximando de onde eu estava. Conseguia ouvi-los soando cada vez mais perto.
Passos lentos. Arrastados. Pesados.
Pude distinguir nitidamente outro som junto aos passos. Ele era parecido com o de unhas arranhando a parede, chiando e provocando aqueles ringidos que sempre me faziam estremecer, de tão terríveis e angustiantes.
Meu coração parecia que ia sair pela boca de tão forte que estava batendo. Meu sangue corria veloz por entre minhas veias e artérias. Podia sentir tudo isso, num misto de medo, expectativa e adrenalina.
Nesse instante, o meu pavor aumentou.
Diante dos meus olhos vi se formar uma sombra translúcida e de forma indistinta. Se aproximava de mim, passando pela porta aberta, à medida que o som dos passos se aproximava de mim. Esfreguei meus olhos e tornei a olhar para aquilo à minha frente na esperança de que fosse alguma peça pregada pela minha imaginação. Mas não adiantou, não era uma ilusão de ótica, muito menos fruto da minha imaginação. Aquilo ainda estava lá, tomando forma, se aproximando de mim cada vez mais.
Era uma forma escura como uma sombra. Alta e esguia, mas que eu não poderia definir se era a forma de homem ou mulher. Mas seja lá o que quer que fosse aquela forma que se manifestava logo a minha frente, eu podia ouvir, ainda que quase inaudível, os sons que aquela figura misteriosa emitia. Ela gemia como se estivesse chorando ou lamentando alguma coisa. Soluçava monotonamente, uivando em desesperado.
Queria sair correndo porta à fora mas minhas pernas não obedeciam. Pareciam pesadas iguais elas ficam durante nossos sonhos, quando tentamos correr e não conseguimos sair do lugar. Era como se tudo fosse um grande pesadelo. Sentia um nó em minha garganta, a boca seca, dormente.
De repente, sem ninguém por perto, o braço da vitrola se mexeu vagarosamente e caiu sobre o disco de vinil que estava no prato, e começou a tocar sozinha a música Coquette de Guy Lombardo. O som jazz entrecortado por ruídos e estalidos preencheu a sala, e fui tomada de uma vertigem.
Seja lá o que estava se manifestando para mim, havia de algum modo feito a música tocar sozinha na vitrola. Não havia dúvidas de que era algo sobrenatural, e havia feito a música tocar, para mostrar que estava ali, de verdade.
— O que você quer de mim? – consegui balbuciar com dificuldade, olhando para os lados. Não esperava receber alguma resposta, mas caso recebesse, com certeza eu entraria em pânico, e gritaria até que eu conseguisse acordar os mortos.
Aquela mancha escura continuava a se aproximar gemendo, lamuriante, de uma maneira assustadora.
Quando estava logo à minha frente, a sombra parou. Sentia emanar da sua presença um ar gelado, como se houvesse esfriado instantaneamente. Percebi uma movimentação naquela forma espectral. Parecia mover-se como se fosse um braço, ou algo semelhante. E assim estendeu o que poderia ser o seu braço em direção ao espelho pendurado na parede.
Parei abruptamente olhando para a direção apontada no espelho. Arregalei os meus olhos ao perceber que a sombra não tinha o seu reflexo refletido nele. A imagem refletida era apenas do meu rosto, numa expressão de espanto e terror.
Houve um estalo na vitrola. O som da música tocada no vinil parou de tocar. Virei para o canto da sala onde ficava a vitrola, e ainda pude ver quando o braço, moveu-se sozinho, retornando ao seu lugar, quando o disco parou de rodar.
As lágrimas começaram a rolar dos meus olhos e comecei a entrar em pânico. Meu corpo tremia, sentia frio e estava arrepiada. Não sabia o que fazer, nem fazia a menor ideia do que estava acontecendo diante de mim.
A sombra continuava com o braço estendido e quando parei novamente olhando para onde ela indicava, dessa vez fixamente e com mais atenção, pude ver uma imagem embaçada se formando no espelho. Como um quadro revelado depois de uma cortina de fumaça que se dissipa.
Como se fosse a cena um filme, vi algo terrível projetado no espelho.
Uma pessoa gritando terrivelmente e em seguida só via a escuridão. Depois o somente o meu reflexo voltando a ser refletido novamente.
Assustada com o que havia acabado de presenciar, nem me dei por conta de que a sombra misteriosa havia desaparecido. Tão repentinamente como havia aparecido.
Assim que consegui me libertar do estado de torpor em que me encontrava, corri para o meu quarto, ainda assustada. Joguei-me atônita sobre a minha cama e fiquei muito impressionada com o que havia visto. O que seria aquela sombra? O quê ela queria? Seria um aviso a cena vista no espelho? Quem poderia ser a pessoa gritando no espelho? Durante algum tempo, fiquei tentando lembrar do que havia visto refletido, mas não conseguia distinguir nenhum traço masculino ou feminino na imagem.
Desde pequena eu ouvia vozes inexplicáveis e brincava com uma amiga invisível. Mas dessa vez foi diferente porque não conseguia entender o sentido daquilo. Eu já era uma mulher de verdade, e não tinha mais amigos invisíveis.
Nunca havia ouvido gemidos tão chorosos e lamuriantes, como se fosse o pranto incontido daquela sombra misteriosa, suplicante de ajuda.
Quando me dei por conta Lucyle estava parada à beira da porta, me olhando em silêncio.
Lucyle sorriu para mim e sentou ao meu lado na cama.
— Você parece preocupada... – ela disse — O que aconteceu?
— Aconteceu de novo...Tudo de novo... – eu disse.
— De novo o quê?
— Ouvi vozes estranhas novamente... E vi algo horrendo, horrendo! – eu disse, ocultando o meu rosto com as minhas mãos.
— Essa história de novo? Ainda com essas coisas, Elizabeth?
— É verdade! Porque não acredita em mim?
Lucyle bufou, me olhando seriamente.
— Fantasmas não existem! - seu olhos cor de amêndoas brilhavam — Fantasmas, aparições, espectros, ou seja lá como você prefere chamar...
— Diabos! – gritei — Eu sei que fantasmas não existem! — Mas eles estão aqui comigo agora!
— Chega, Elizabeth! — Você sempre fantasiando histórias mirabolantes. Se nossos pais soubessem dessas coisas, mandariam você consultar um psiquiatra. Minha querida, você já não é mais uma criança!
Minha irmã tinha razão. Meus pais não sabiam de nada do que acontecia comigo, e se soubessem, não entenderiam. Por isso nunca falei para eles sobre esses eventos que aconteciam comigo desde a minha infância…
Preferi não contar à Lucyle sobre a visão do espelho e evitar maiores discussões, até mesmo porque, ela não me compreenderia… Acho que no fundo, nem eu mesma estava acreditando no que havia acontecido.
Os fatos só começaram a fazer algum sentido, na hora do jantar, desse mesmo dia.
Estávamos todos à mesa quando meu pai comentou sobre a nossa casa.
— Uma belíssima construção, não é mesmo querida? – meu pai perguntou.
Minha mãe assentiu com um movimento de cabeça, enquanto limpava a sua boca em um guardanapo.
— Sim, querido! — Tivemos muita sorte em conseguir comprar uma casa como essa, nessas proporções, e com um preço tão atrativo…
— Como o senhor a encontrou, sr. Galbraith? – perguntou Tobias Barrymore, namorado de Lucyle, curioso como sempre — Uma casa tão nova e bem cuidada...
Sorrindo meu pai, disse:
— Uma história um pouco curiosa… Um amigo meu chamado Arnold Carmody, um advogado da maior competência que eu já conheci, vivia aqui com a sua esposa Elma e a sua filha Rebecca, uma jovem surda muda, de quinze anos. A casa foi toda desenhada e projetada por ele em todos os detalhes, para que atendesse aos seus desejos e aos de sua esposa. Era um sonho que eles estavam realizando, quando vieram morar aqui...Durante pouco tempo, eu creio, eles viveram felizes aqui…
Tobias ouvia atentamente, a história contada por meu pai.
— Ora, Arthur! – Vamos acabar com o jantar, depois você nos conta essa história – disse minha mãe, Lorna.
— Porque os Carmody resolveram vender essa propriedade, já que eles gostavam tanto dela? – perguntou Tobias.
Por um instante meu pai e minha mãe ficaram se olhando seriamente. Depois, começaram a rir.
Tony meu irmão mais novo, olhava para eles sem entender nada.
— O fato é que Rebecca, a filha surda muda do casal, vivia doente. Sofria de tuberculose. A jovem penava muito e Elma, a mantinha trancada na sala da sacada, com medo de que a garota fugisse e fosse sozinha até o mar... Afinal em casa ela estaria cercada de cuidados.
Minha mãe pigarreou, enquanto eu tentava respirar o mais baixo possível para não fazer barulho e ouvir tudo atentamente.
— O tempo foi passando e a doença de Rebecca evoluindo. Ela passava solitária chorando na sala, até que uma bela tarde quente e ensolarada, Arnold e Elma a encontraram caída sobre o rochedo, ao lado da casa… A cabeça estava esfacelada sobre as pedras, uma gaivota de plumagem branca estava bicando o seu rosto, e conseguiu arrancar um globo ocular, enquanto outras estavam plainando, como se aguardassem a sua vez de atacar…
Parei de comer subitamente e ainda de cabeça baixa continuava prestado bastante atenção na conversa.
— Rebecca havia despencado da sacada e caído sobre as pedras, quebrando o seu pescoço... — Disseram que o pescoço dela estava retorcido em um ângulo medonho...
Meu pai suspirou.
— Arnold ficou desesperado e atendendo aos pedidos de Elma colocou a casa à venda, porque não queriam mais morar aqui. Eles podiam sentir a presença de Rebecca por toda a parte. Durante a noite podiam ouvir os soluços desesperados e agonizantes dela pelos corredores da sala da sacada, onde ela ficava trancada olhando o mar, enquanto convalescia de sua doença.
Nesse instante derrubei os talheres que eu tinha nas mãos e todos olharam para mim.
— Desculpe-me, eu estava distraída! – eu disse.
— Oh! – Uma casa mal-assombrada! – disse Tobias fazendo um gesto de desdém — Isso destoa de tudo o que já li... Casas mal-assombradas combinam com climas soturnos e escuros, mansões góticas velhas empoeiradas... Não em uma casa bela como essa, na beira do mar verde e das areias brancas, de um céu azul e de dias ensolarados...
Subitamente lembrei dos gemidos e dos soluços, emitidos pela sombra na sala ao meu lado.
Lucyle me olhava seriamente, como se quisesse me dizer alguma coisa.
— Não creio que seja mal-assombrada, porque se fosse, o preço dela seria uma ninharia, e não o valor exorbitante que paguei por ela. – disse papai.
— Nem tão exorbitante querido, não seja mesquinho…
Saí assim que acabei o jantar e deitei em minha cama. Minha cabeça girava e fervilhava, pensamentos desconexos me deixavam atordoada.
A sombra que eu havia visto seria de Rebecca? Seria ela tentando manter algum tipo de contato comigo? E se fosse, o que ela tentaria me dizer ao mostrar o espelho? Por quê eu a escolhida?
Uma coisa porém era certa. Não podia ser por acaso, que aquela sombra estava lá. Deveria ter algum motivo, alguma espécie de pedido… Rebecca estava precisando de ajuda…
Mas o que dizer da minha visão do espelho? Era apenas um grito é claro, mas de quem seria? De Rebecca? De algo acontecido há algum tempo atrás? Não conseguia entender…
No dia seguinte despertei com a minha irmã entrando em meu quarto e abrindo as cortinas. O sol estava alto, e a luz brilhante do sol iluminava o meu quarto inteiro.
Sonolenta rolei sobre a cama e abri os meus olhos lentamente na claridade da manhã.
Lucyle estava parada aos pés da minha cama. Uma garota alta, de cabelos loiros caídos na altura dos ombros. Era muito parecida comigo, porém dois anos mais velha.
— Vamos Elizabeth! — Acorde e vamos caminhar, o sol está maravilhoso e vamos tomar banho de mar também, a água está maravilhosa, um verde lindo… – disse ela.
Após tomar o café da manhã saí acompanhada dela e do seu namorado.
Caminhando pela orla da praia sentia a areia branca e fofa se desmanchar sob meus pés, enquanto a água gelada do mar batia em meus pés em ondas espumantes, e apagavam as pegadas que eu deixava pelo caminho.
Depois de algum tempo, chegamos até o rochedo. De lá a vista era ainda mais linda do mar infinito, das rochas, da nossa casa. Uma visão completa e paradisíaca.
— Um belo lugar ! – disse Tobias Barrymore — Acho que nunca havia visto nada igual!
— Sim, maravilhoso! – concordou Lucyle.
— Vou ficar aqui sentada nas pedras – eu disse – Não vou entrar no mar agora...
Lucyle fez uma careta de reprovação.
— Tudo bem, você é quem sabe! – ela disse.
— Vamos, querida! – disse Tobias, arrastando minha irmã para o mar, onde permaneceram tomando banho naquela maravilhosa água verdejante. Pareciam duas crianças jogando-se na água agarrados, beijando-se e mergulhando novamente.
Durante algum tempo fiquei ali sentada nas rochas, olhando o movimento da praia que estava vazia, quero dizer, com poucas pessoas.
Olhando o horizonte eu via as ondas virem minúsculas e se aproximando crescendo até chegarem na areia ou se chocarem contra as pedras, perto de mim, respingando a água do mar em meu corpo.
Sentia uma tranquilidade imensa, uma paz interior inenarrável, tinha vontade de permanecer lá eternamente..
Mas ao olhar para a minha casa ao longe, logo estremeci. Ela realmente parecia uma mansão mal-assombrada, de tão sinistra… Me perguntava se era somente eu quem sentia calafrios ao observá-la ao longe. Era um cenário irreal aquela praia tão tranquila, com aquela casa tenebrosa ao fundo.
Sacudi a cabeça como que para me livrar desses pensamentos. Mas ao parar por um instante ouvi algo além das ondas do mar...
Um som baixo quase um zumbido, mas que aos poucos, foi crescendo, crescendo, até que eu pude ouvir mais nitidamente. Esse som de destacava do barulho das ondas do mar e das vozes ao longe de Lucyle e Tobias.
Tratava-se dos mesmos soluços monótonos e desesperados que havia ouvido, na sala da sacada.
Aos poucos fui sentindo uma estranha sensação, como se eu não estivesse sozinha naquelas pedras. Sentia uma aproximação estranha, ouvia o som de passos estalando sobre as pedras onde eu me encontrava, e os gemidos agora, cada vez mais penosos e assustadores.
Desci do rochedo correndo apavorada, minhas mãos tocando as pedras quentes pelo sol e comecei a caminhar rapidamente pela areia branca e morna da praia.
Olhava seguidas vezes para os lados sem saber o que fazer…
As poucas pessoas que estavam na praia e me olhavam sem entender nada, deviam pensar que eu estava louca.
A sombra se insinuava na claridade da praia e ninguém mais além de mim poderia ver. Era apenas uma mancha turva movendo-se sorrateiramente sobre a areia fofa da praia.
Não adiantava correr, aquela sombra tenebrosa me perseguiria, onde quer que eu fosse.
Quando me dei por conta os gemidos e os soluços penosos haviam cessado. Ao olhar para os lados, pude perceber que a sombra também havia desaparecido. Estranhamente era assim que as coisas ocorriam, os sons e a sombra aparecia sem eu perceber, e desapareciam da mesma maneira.
Respirei aliviada por um momento e continuei a caminhar pela orla, ainda um pouco assustada.
Ao longe Lucyle e Tobias Barrymore me acenavam, fazendo um convite para que eu entrasse no mar.
Já me preparava para entrar na água quando senti uma mão fria e molhada tocando as minhas costas. Tive um sobressalto, emiti um grito e virei-me espantada.
A visão que tive foi inesperada… Não sei se meu susto foi maior ao ser tocada por aquela mão molhada, ou pelo que eu estava vendo. Parecia a visão de um pesadelo. Por um instante fiquei tonta. A figura a minha frente me encarando, o cheiro da maresia, o som das ondas do mar. Fechei o olhos por um momento e quando os abri, ele continuava ali.
Um velho magro e alto, com o cabelo branco e com um olho vazado, estava parado atrás de mim.
Olhei-o uma tanto receosa, mas ainda assustada.
— Olá! Simpática garota! – disse o velho – Me chamo Ryan Lutz... Sou um velho pescador apenas… Eu estava a observando…
Minha expressão de desinteresse era evidente.
— Não se assuste minha cara – continuou o velho pescador – Eu também vi o mesmo que você!
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele continuou:
— É você que ela quer! — Dê o que ela quer e ela irá embora!
Foi então que os meus olhos se arregalaram ainda mais. Pareciam saltar para fora das minhas órbitas.
E acenando, o velho sorriu com os seus dentes podres e foi embora vagarosamente, arrastando-se pela areia, enquanto eu o assistia partir boquiaberta, e sem reação alguma.
Logo depois do almoço, Lucyle veio me procurar na sala da sacada.
— Você está estranha, Elizabeth! – ela disse sentando-se ao meu lado.
— Estou apenas pensando em tudo o que está acontecendo comigo, nesses últimos dias. – respondi.
Lucyle bufou.
— Só pode ser Rebecca, a sombra que eu vejo… Desde criança eu ouço vozes estranhas, você sabe disso.. São frases que eu consigo compreender… Só que agora, eu não consigo ouvir as palavras distintas, só gemidos… Sabe por quê? Porque Rebecca era muda!
— Você está ficando cada vez mais fantasiosa, a cada dia. – disse minha irmã.
Dando de ombros eu levantei e vim ao meu quarto. Escolhi o meu melhor vestido, um branco com bolinhas pretas, que Lucyle também adorava. O vesti e depois fui até a sala da sacada para olhar-me no imenso espelho pendurado na parede.
Estava escovando os meus cabelos, quando ouvi um estalo no corredor.
Arrepiei-me o corpo inteiro. Começaria tudo outra vez…
Os passos recomeçaram, baixos e arrastados.
Através do espelho vi a maçaneta da porta girar, e ela abrir-se vagarosamente. Sem que ninguém a empurrasse. A seguir, como se alguém estivesse entrado por ela, a porta fechou-se com um estrondo.
Aturdida eu deixei a escova cair de minha mão, e virei em direção à porta.
Aos poucos uma sombra turva começou a se insinuar na frente da porta e os gemidos desesperados recomeçaram.
Não tenho como descrever a sensação que eu tinha naquele momento. Era tudo tão horroroso…
— Rebecca é você? – perguntei – Se for me dê um sinal…
Subitamente uma vela em um castiçal que estava sobre uma mobília junto à parede, acendeu-se sozinha. O castiçal começou a levitar, levantando vagarosamente da mobília e ficou algum tempo, suspenso no ar, movendo-se para baixo e para cima, até que caiu no chão, rolando pelo tapete, e apagando a vela.
Levei as mãos à boca para abafar o meu grito de horror.
O quê eu poderia fazer? Nunca havia presenciado algo assim na minha vida.
Estendendo o braço a sombra indicou o espelho, ao meu lado. Virei-me rapidamente em direção a ele.
As imagens foram se formando gradativamente, como se uma película estivesse sendo projetada no espelho. As cenas iam surgindo. Primeiro a casa, a minha casa. Depois a sacada. Uma garota surgiu depois, cabelo caído na altura dos ombros, vestido branco com bolinhas pretas. Exatamente igual ao que eu estava vestindo. A garota estava parada na sacada.
Sem entender nada, olhei para o lugar onde estava a sombra, mas ela havia desaparecido.
Voltando a minha atenção ao espelho, vi que a garota continuava lá, parada. Eu não podia ver o seu rosto... De repente, não sei como, ela caiu... Pude ouvir um grito agudo e ensurdecedor. A cena seguinte foi o corpo dela caído, sobre as pedras…
Então como num passe de mágica as imagens desapareceram, do mesmo modo como haviam aparecido.
Senti um imenso calafrio percorrer a minha espinha, ao entender o sentido da mensagem…
Agora tudo havia ficado claro… Era um aviso. A garota que caía da escada era eu. A mesma roupa, os cabelos…
Era tudo tão impressionante…
Será que eu estava prevendo a minha própria morte? Teria eu, sensibilidade e capacidade para tanto? Seria Rebecca Carmody algum espírito mensageiro, advertindo-me sobre meu futuro funesto?
O que faria agora? Não me aproximaria mais da sacada? Se contasse para Lucyle, certamente ela me chamaria de louca.
Mas ainda poderia ser uma alucinação, ou poderia eu vislumbrar a morte de Rebecca, ocorrida há anos atrás? Mas não fazia sentido, porque a roupa era a mesma que eu usava no momento da visão.
As dúvidas iam-se multiplicando, o meu medo e minha ansiedade aumentando.
Foi então que pude ouvir uns soluços novamente, pareciam brotar do interior das paredes da sala.
— Maldita Rebecca! – gritei o mais alto que pude.
Meu grito ecoou pela sala inteira, depois reinou o silêncio.
O silêncio foi se tornando inquietante demais. Me sentia agoniada, parecia que algo estava prestes a acontecer, mas de fato nada acontecia. E isso era o pior de tudo. A expectativa, o suspense é que me fazia roer minhas unhas.
Ainda olhando aturdida para o espelho e com a mente fervilhando, eu tive novamente, uma nova visão. Dessa vez mais aterradora do que a outra…
No espelho o que surgiu foi o rosto de uma garota. Um pouco mais nova do que eu. Ela tinha cabelos ruivos, presos num coque simples. Não tinha olhos, como se só houvessem as órbitas, faltando um dos globos oculares.
Quando me dei por conta ouvi apenas um estrondo, semelhante a uma explosão. Quando vi, o espelho havia se partido em pedacinhos, e caí no chão atingida pelos estilhaços.
Observei através dos cacos de vidro espelhados que ainda refletiam a minha imagem, os pequenos cortes no rosto e nos braços, mas nada grave. Apenas cortes superficiais.
Não contei a ninguém sobre o que havia acontecido e não mais voltei a sala da sacada. Quanto ao espelho quebrado, disse que ele havia caído, e nunca mais se tocou no assunto.
Na manhã seguinte eu lembro como se fosse hoje, estava caminhando pela orla da praia, sentindo a areia quente sob os meus pés. Haviam poucas pessoas e eu estava bem à vontade, caminhando sozinha.
Mas havia algo de errado. Sentia um clima tenso, pesado. Sentia-me sem forças, sufocada.
E algo assustador aconteceu nesse momento. No momento exato, em que a água do mar tocou os meus pés, quase desmaiei...
Num instante ví o mar, coberto de vermelho, de sangue...um mar de sangue... Sentia a presença de muitas pessoas naquele ponto da praia, eram espíritos, eu tinha plena certeza disso.
Espíritos, que choravam e urravam de agonia, dor, medo e sofrimento. Via o resto do que foram pessoas se amontoando sobre as rochas, umas sobre as outras, arrastando-se desajeitadamente, gritando tétricamente. Outras nadavam naquele mar sangrento, como uma horda de mortos-vivos em estado de decomposição.
Sentia-me enfraquecida a cada momento que passava e podia sentir também o sofrimento daqueles espíritos perdidos e sofredores. Podia sentir os seus medos, as suas dores e agonias. Eles me chamavam implorando pela minha ajuda.
Via os seus rostos mutilados e desfigurados, pela queda nas pedras, ou talvez até mesmo por ataque de peixes e tubarões.
Tudo era horrendo demais e eu jamais, desde a minha infância, havia sentido ou presenciado tanto sofrimento assim em um único lugar... Eu sentia as suas dores em meu corpo, não conseguia evitar.
Parecia que aqueles espíritos precisavam das minhas energias, pois eu estava ficando cada vez mais fraca…
O mar sangrento agitava-se, violento, e quando uma onda vermelha atingiu minhas pernas, trouxe com ela algo bizarro, e terrivelmente inacreditável…
Um ser com o corpo mutilado e roupas rasgadas, caiu aos meus pés. Todo o seu corpo estava cortado e dilacerado, o rosto desfigurado; com um pequeno caranguejo, preso na sua órbita esquerda, e na sua face, a carne estava pútrida, os ossos do seu corpo eram salientes.
Agarrado em minhas pernas, o ser implorava por ajuda; tentando sorrir com as algas presas entre os seus dentes.
Uma tontura e ânsia de vômito enorme foi tomando conta de mim, e ao tentar correr, eu perdi os meus sentidos…
Quando acordei já estava deitada em meu quarto, com minha mãe sentada ao meu lado.
— Que aconteceu com você, minha filha? – perguntou minha mãe, Lorna.
— Me senti fraca apenas – disse — Deve ter sido o sol forte...
— Tem certeza de que você, está mesmo bem?
— Sim, eu tenho, mamãe… Onde está papai?
— Arthur está lendo na biblioteca, Tony está na praia com Tobias… — Foram ver uma caverna que Tobias encontrou entre o rochedo…
— E Lucyle? Onde ela está? – perguntei ainda meio tonta e com a cabeça dolorida.
— Lucyle está na sacada, admirando o mar… — Como você mesma sabe, a visão é linda de lá…
Cerca de uns dez minutos depois, não mais do que isso, subi até a sala da sacada, para falar com minha irmã. Já fazia algum tempo que eu não ia até lá…
Ao abrir a porta e entrar na sala, a visão que tive foi aterradora…
Quase perdi o fôlego....ao ver...
Lucyle estava de costas para a sala debruçada sobre a sacada. Usando o meu vestido branco de bolinhas, os cabelos loiros caídos na altura dos ombros. As costas dela estavam apoiadas na balaustrada da sacada, e atrás dela, no horizonte, o verde do mar. Logo abaixo o rochedo íngreme, onde as ondas se chocavam com violência.
— Lucyle! – eu balbuciei, no mesmo instante em que ela se virou sorrindo para mim. — Saía daí!
Meus olhos arregalados detiveram-se nela. Eu não conseguia acompanhar meus pensamentos de tão rápidos naquele momento.
— Você não pode ficar aí! — Você não vai acreditar… — Eu preciso falar o que aconteceu… - mas eu não consegui terminar minha frase.
Lucyle sorria amavelmente para mim.
Ao lado do lugar onde havia o espelho, uma sombra turva começou a materializar-se vagarosamente. Até que finalmente surgiu aquela mesma imagem agourenta e perturbadora.
Creio que minha irmã não a via, pois se a visse, entraria em pânico, assim como eu estava trêmula.
Os cabelos loiros de Lucyle e o meu vestido que ela usava, esvoaçavam com o vento. Às suas costas a visão do mar verdejante e das rochas era linda. Como em uma pintura ou um cartão-postal.
— Venha ver o mar! – ela me disse sorrindo, ao mesmo tempo em que ela virava e se debruçava sobre a balaustrada.
Deve ter se desequilibrado ao virar-se, pois bateu muito forte na balaustrada, que cedeu e se quebrou. E assim Lucyle alçou o seu voo derradeiro, rumo às rochas lá embaixo.
— Lucyle! – gritei a plenos pulmões correndo em direção à sacada, ao mesmo tempo em que eu pude ouvir o som seco dos seus ossos, quebrando-se de encontro as pedras.
Quando cheguei ao lado da balaustrada quebrada, a imagem que tive foi apavorante. O corpo dela jazia jogado e retorcido horrendamente sobre um monte de pedras lá embaixo, imerso uma poça de sangue. As ondas do mar verde e espumante que se chocavam contra as pedras, às vezes encobriam o corpo dela, manchando sua espuma de vermelho.
O vento soprava forte na sacada, enquanto eu permanecia olhando Lucyle em estado de choque. Foi quando eu percebi que os fatos começaram a fazer sentido naquele exato momento. Tudo se ajustava… Como eu não tinha pensado nisso antes… Na verdade quem eu vira caindo da sacada, através do espelho, não era eu e sim Lucyle! Se eu soubesse antes… Poderia te-la advertido e salvado a sua vida.
Mas nesse caso Rebecca tentaria me ajudar? Eu acredito que sim.
Meus pais não sabem até hoje sobre essas minhas visões. Tony era muito pequeno na época, e nada entenderia. Tobias era um pobre-diabo e demorou muito tempo para que ele se recuperasse da perda de Lucyle.
Continuo vendo e ouvindo coisas estranhas até hoje. Mas nada se compara aos horrores que acabo de relatar.
Nossa casa existe até hoje. Só que foi transformada em um hotel, por mim e por Tony. Nunca mais fui até lá, é meu irmão quem toma conta de tudo. Mas até hoje, algumas pessoas dizem a ele, ouvirem gemidos e soluços no hall, em que foi transformada a sala da sacada, que existia lá há anos…
— Muito bem, Elizabeth! — Uma narrativa rica em detalhes – disse Margery Selden, uma velha psiquiatra, sentada na minha frente, enquanto eu estava deitada em seu divã. Ela anotava com cuidado, todas as informações importantes ditas por mim durante a sessão. — Mas ainda demorará, vamos continuar trabalhando isso – olhou para o seu relógio pendurado na parede — Seu tempo acabou, marque um novo horário, e volte na semana que vem…
— Por favor, dra. Margery, preciso me livrar desse sentimento de culpa, que me persegue há vinte anos…
Assim que sai do consultório psiquiátrico me senti aliviada, por livrar-me de um peso, ao menos momentaneamente. Ainda espero poder viver em paz comigo mesma... — Da mesma forma que ainda espero não ver mais essa sombra turva que caminha sempre a meu lado...
FIM?
Amigo Leitor,
Espero que tenha gostado do conto acima.
Solicito que após a leitura, deixe nos comentários o seu feedback, pois ele é muito importante para mim.
Agradeço sua visita,
Abraços!