Desgraça
Summer Place, EUA – 1965
Francine Folmer era uma mulher de classe média, beirando seus quarenta anos. Casada com um homem honesto e discreto chamado Herbert, era mãe de Clint, um adolescente, que queria ser independente a qualquer preço. Mesmo com seus pequenos problemas corriqueiros do dia a dia, ela levava uma vida tranquila e perfeita, sem nenhuma preocupação, com exceção é claro, dos acessos de rebeldia do seu filho. Ainda assim, ela se sentia feliz.
Porém, tudo aconteceu tão rápido que ela não conseguia raciocinar direito. Seu mundinho perfeito e artificial começou a desmoronar...
Foi durante uma manhã de verão, em que Francine estava de folga, que ela teve a sua primeira grande decepção.
Herbert havia entrado cabisbaixo em casa e sentou-se no sofá. Seu rosto estava vermelho, indicando que ele estivera chorando.
- O que está fazendo tão cedo em casa? – ela lhe perguntou.
Ele permaneceu por um momento em silêncio, procurando coragem para encarar a sua esposa.
- Fui demitido do Banco! – disse Herbert finalmente – Me colocaram no olho da rua...
- Oh! Por que fizeram isso com você?
- Me trataram pior do que um cachorro... Nunca havia sido tão humilhado em toda a minha vida...
- Herbert querido! – deve haver alguma explicação para isso...
- Querida, não vou ter mais coragem de encará-los novamente, tamanha a minha vergonha...
- Você está fugindo pela tangente... – ela suspirou, falando lentamente – que motivos teriam eles, para demitir do Banco, em que trabalha há mais de dez anos?
Herbert ocultou seu rosto com as mãos, e começou a chorar novamente. Soluçando, ele disse:
- Descobriram! – ele gaguejou.
O rosto de Francine começou a ficar rubro.
- O quê? – ela perguntou curiosa.
- Eles descobriram tudo!
- Tudo o quê? – Do que está falando? Diga de uma vez!
- Eles analisaram os livros de contabilidade, que eu estava usando... Encontraram valores adulterados!
- Como assim? – sua esposa gritou furiosa.
- Descobriram que eu desviava grandes quantias de dinheiro do Banco... - Não tinha como eles descobrirem, eu nunca deixei vestígios, mas agora descobriram e me pegaram...
E então, ele desatou num pranto agoniante.
- Desgraça! – ela gritou – Não posso acreditar nisso... O meu marido que eu julgava tão honesto estava desfalcando o próprio lugar onde trabalhava!
- Desculpe se eu a magoei... - Como acha que estamos nos mantendo esse tempo todo? - Apenas com o mísero salário que ganho?
- Seu escroto! – ela gritou, dando bofetadas no rosto do seu marido. Ela o agredia com ambas as mãos. – Seu ladrão imbecil! – Eu seria capaz de colocar minhas mãos no fogo por você, seu bandido!
E o tempo foi passando...
Nos dias que se seguiram, Herbert foi obrigado a devolver tudo o que havia desviado do Banco, em troca de poder continuar livre. Era um acordo de cavalheiros entre os auditores do Banco e ele. Poderia escolher: ou devolvia o dinheiro, ou seria denunciado e preso.
Herbert já não sabia o que fazer... Até procurava novas oportunidades de emprego, mas não lhe davam nem atenção.
Num belo dia, de sol quente e folhas secas espalhadas pelos gramados, Francine estava na cozinha cortando um pernil de carneiro para o almoço, quando acabou cortando o seu polegar com a afiada faca que manejava.
Devido ao corte profundo, precisou ser suturada. Os dias foram passando, as as dores não diminuíam, bolhas de sangue e pus se formavam sobre o cortes, e pulsavam febrilmente. Mas os cuidados não adiantaram muito e devido a uma infecção grave, o médico aconselhou-a a amputar o dedo, o que ela acabou aceitando depois de relutar muito.
Dois dias depois da amputação, ela recebeu uma ligação do pronto socorro.
Clint havia pegado um carro emprestado de um amigo e havia se acidentado, destruindo um poste, junto de um muro de concreto e o automóvel. Havia ainda fraturado um braço.
- Desgraça! – gritou ela a plenos pulmões em sua casa, enquanto conversava com sua amiga Sonya – Caímos em desgraça!
- Oh! – Não diga isso! – disse Sonya fazendo o sinal da cruz rapidamente. - Quanto mais você falar isso, mais vai atrair coisas negativas...,
- Não há outra explicação... Primeiro Herbert perde o emprego, e então descubro que ele roubava o banco... Depois, tenho que amputar um dedo, e o acidente de Clint... – Diga-me Sonya, que desgraça ainda pode acontecer? – Diga-me, que desgraça?
- Pare de repetir isso! – gritou Sonya a sacudindo pelos ombros – Não há desgraça que esteja ruim, que empeça de acontecer outra pior ainda...
Nessa mesma tarde, Francine encontrou uma camisa de Herbert com marcas de batom.
Furiosa, mas, ao mesmo tempo, fria como um imenso iceberg, ela decidiu investigar. Não faria escândalos, seria racional.
Durante dias, seguiu-o por todos os lugares, até enfim, o ver beijando uma mulher em uma praça escura próxima á um beco.
Ficou ali parada, observando-os, até que eles entraram para uma casa logo ao lado.
Francine aproximou-se, e juntou uma enorme pedra no chão, e jogou com força pela janela entreaberta, sem importar-se em quem atingiria. Ouviu um grito e então saiu correndo.
No meio da noite, enquanto dormia, ela percebeu a chegada do seu marido. Ele tinha um enorme curativo na testa, e ela já sabia o que havia acontecido.
- Acabo de ser assaltado, querida! – disse Herbert, com ar de menino desprotegido – Me agrediram... Eram três homens enormes... Foi horrível, levaram tudo o que eu tinha...
Na semana seguinte, ela o encontrou novamente com a amante, que descobriu se chamar Tara Renson.
Dessa vez, ela foi ao ataque.
Deu uma imensa surra na sua rival.
Tara perdeu o equilíbrio e caiu no chão com a força do tapa desferido por Francine.
A esposa traída, subiu e sentou sobre sua rival, colocando suas pernas sobre os braços, imobilizando-a.
- Agora você vai ver o que acontece com quem não tem caráter – disse Francine.
A outra gritava por socorro, tentando escapar, inutilmente, pois a mulher sobre ela era forte e pesada.
As pessoas se aproximavam para ver de perto a confusão, e gritavam incentivando-as a luta, como se estivessem em uma arena.
Esperta, Francine olhou para os anéis que tinha em suas mãos, com pequenas pedras incrustadas e artefatos de metal retorcidos. Virou a parte de cima dos anéis para baixo, e começou a estapear o rosto da mulher que subjugava, com as duas mãos, com toda a sua força.
Os metais e pedras dos anéis, atingiam o rosto de Tara, cravando e rasgando a pele, lacerando suas têmporas cobertas de pó de arroz, e fazendo escorrer sangue.
- Socorro, alguém me ajude! - gritou Tara.
- Vadia! - gritou uma senhora comendo uma rosca Donuts de creme, parada na calçada. - Bate nela!!
Francine segurou Tara pelos cabelos e com a outra mão batia em seu rosto, cravando suas unhas e a arranhando. Depois ainda segurando os cabelos, batia com o rosto dela no chão da rua.
Dois policiais, que foram chamados por alguém, apareceram entre a multidão que assistia a briga, e separaram as duas.
Francine, estava sendo puxada por um policial e olhou para Tara, tentando colocar-se de pé, amparada pelo outro policial. Deu um sorriso no canto dos seus lábios e delicadamente ajeitou uma mecha de cabelo em seu rosto.
Tara cambaleava enquanto levantava, fiapos espessos de sangue e baba, escorriam dos cantos da sua boca, e ela cuspiu uma nódoa escura e viscosa no chão.
- Acho que quebrei um dente – murmurou ela.
Logo depois, já em sua casa, jogou as roupas de Herbert na lareira e mais tarde, o colocou para fora de casa...
No dia seguinte, recebeu uma carta, que dizia que a casa havia sido hipotecada e precisava pagá-las, para não ser despejada, pois seu antigo marido, Herbert, a havia dado como garantia ao banco em que havia roubado.
- Mas que desgraça! – gritou Francine – Ele deu a casa, porque não tinha dinheiro para pagar o que havia roubado do banco... E agora precisamos arranjar um outro lugar para morar... Não temos para onde ir... Se eu encontrar Herbert, eu o mato!
- Deixe comigo, mamãe... – disse Clint – Vou o encontrar e forçá-lo a tomar alguma atitude...
Francine assustou-se. Clint estava demasiadamente nervoso. Tinha medo do que ele poderia fazer.
Clint Folmer correu até a garagem e pegou o seu carro, um Mustang 1965 branco com tarjas azul-marinho em seu capô, e foi dirigindo enlouquecidamente pelas ruas. Corria como um louco, pois o ódio era o sentimento que o dominava naquele instante.
- Maldito! – Ele não podia ter feito isso... Canalha! – disse Clint dando um tapa no volante, ao mesmo tempo em que pisava fundo no acelerador, correndo em zigue-zague entre os carros – É triste dizer isso, mas é a mais pura verdade...
Seu carro parecia voar sobre o asfalto, mas ele dirigia habilmente com uma mão, já que seu outro braço ainda estava engessado, devido à fratura no acidente que havia sofrido tempo atrás.
- Essa situação é inconcebível... Perder a nossa casa e ir para a rua... Tudo por culpa dele... E o pior... Tudo o que nos vem ocorrendo durante esses últimos tempos... Uma fase infernal na nossa vida... Uma desgraça atrás da outra... È isso mesmo... Uma desgraça atrás...
Nesse momento ele parou de falar abruptamente. Sua voz desapareceu, e seus olhos arregalaram-se quando ele olhou pelo espelho retrovisor do seu carro, e notou aquilo... Ao ver, ele gritou assustado...
A Coisa, estava atrás dele...
Gritando apavorado, Clint perdeu o controle do carro, e invadiu a pista contrária, indo de encontro a um enorme caminhão velho, carregado de toras de madeira.
A colisão foi inevitável... Seu carro foi esmagado e ele morreu preso entre as ferragens. Algumas pessoas conseguiram ouvir os gritos dele, preso entre os destroços, enquanto o carro pegava fogo, minutos antes de explodir.
Francine recebeu a notícia da morte do seu filho por telefone. Sua amiga Sonya passava pelo local e havia reconhecido a placa do carro.
O inferno na vida de Francine estava completo, nada mais poderia acontecer de pior. Ela ficou desesperada, e dias depois caiu em depressão.
Ficou dois meses internada em um hospital para se recuperar.
Nesse meio tempo, Herbert, lépido em meio aos seus desfalques, arranja uma outra amante, Sonya Fraser, a amiga de Francine.
Logo que saiu do hospital, Francine alugou e mobiliou um pequeno apartamento, próximo à estação do trem, um lugar calmo e vazio, onde ela fazia suas caminhadas nos fins de tarde, quando voltava do seu trabalho.
Poucos dias depois de se mudar para a sua nova morada, ela foi demitida. Deprimida, ligou para a sua amiga Sonya para desabafar.
- Não sei mais o que eu faço Sonya! – disse chorando – Tudo está dando errado para mim... – Por que isso?
Sonya suspirou.
- As coisas simplesmente acontecem... – disse ela - Você deve estar com má sorte... È uma péssima fase, isso logo passa... Está dando tudo errado para você... Mas pense bem... Você ainda tem a mim, que sou a sua amiga, a adoro e jamais faria qualquer coisa para magoar você...
- Oh! – Minha amiga querida! – Minha vida é uma desgraça que só vendo...
- Não fale isso! – gritou Sonya – Não fale esse nome...
- Falo, sim! – Desgraça! – gritou Francine.
De repente a lâmpada piscou duas vezes e depois estourou.
No dia seguinte, pouco depois de anoitecer, ela pegou o seu carro e saiu dirigindo pela estrada, na saída da cidade. Sua intenção era visitar sua mãe na cidade vizinha de Elmerville.
Apressada, ela corria pelo asfalto deserto, onde a lua começava a surgir timidamente no horizonte.
Estava correndo demais. Apertou o freio, e para a sua surpresa ele não funcionou.
- O que está acontecendo? – perguntou-se nervosa, pisando no pedal . – O freio sempre funcionou...
Ao longe ela avistou uma enorme curva, fechada e perigosa à sua frente.
- Não pode ser! – Desgraça!
Nesse instante, ela grita de susto ao olhar no espelho retrovisor e avistar um ser cadavérico, algo que parecia ter sido uma mulher bem velha.
Seus olhos eram apenas duas bolas de fogo iluminando o seu sorriso macabro e esquelético. Vestia algo como um vestido totalmente branco, um véu transparente deixava ver vagamente seu rosto sua aparência pútrida e medonha.
Ainda gritando, Francine não sabia o que fazer.
A criatura sentada no banco de trás do carro, se aproximou, falando quase ao pé do ouvido dela.
- Você imagina quem eu sou?
Francine sentiu-se enjoada com o vapor, com cheiro de podre, saindo por entre as mandíbulas da criatura.
O Ser cadavérico gargalhou satanicamente e disse:
- Eu sou a Desgraça! – disse A Coisa, colocando a sua mão gélida no ombro de Francine – De tanto você me chamar, eu vim buscá-la...
Ao dizer isso, as portas do carro travaram-se sozinhas, e o pedal do acelerador desceu até o fundo, fazendo o carro disparar, rumo ao fim da estrada, no começo da curva.
O carro desceu rolando no precipício diversas vezes por entre as rochas, até chocar-se e ficar preso entre duas árvores, onde explodiu.
Os policiais não conseguiram localizar o corpo de Francine, no interior do veículo, embora as portas e qualquer outra saída do mesmo estivessem bloqueadas, sem ter como ela escapar...
FIM?
Amigo Leitor,
Espero que tenha gostado do conto acima.
Solicito que após a leitura, deixe nos comentários o seu feedback, pois ele é muito importante para mim.
Agradeço sua visita,
Abraços!