O Homem do Necrotério

Quando estava escrevendo Páginas de Horror, perguntei a mim mesmo se não havia algo de verdadeiro para poder contar. Queria algo que tivesse realmente ocorrido, que eu pudesse dar uma riqueza maior de detalhes...

Foi dessa maneira, que fiz uma busca em minha memória, à procura de lembranças, para que eu pudesse ter algo mais consistente.

Dessa forma, consegui lembrar de dois fatos ocorridos na minha infância, um que descrevi no conto “A Casa Amarela” e outro que vou contar agora.

Isso aconteceu há muito tempo...

Era o início do mês de Março de 1992, e eu tinha apenas nove anos. O dia do mês era dois, fazia exatamente um ano que meu pai havia falecido, e era também o dia em que o meu avô materno iria ser enterrado.

Naquela época, a nossa cidade não possuía um necrotério, e os cadáveres eram transportados até umas salas vazias, no subsolo do hospital.

Eram ao todo seis salas, que foram transformadas em capelas velatórias, para os pacientes que faleciam no hospital. Essas salas eram classificadas por ordem alfabética de A até a letra E, e naquele dia estavam vazias, exceto as salas A onde meu avô era velado e a B, em que havia um outro velório.

A perda do meu avô mexeu muito comigo, como normalmente acontece com uma criança. Andava de um lado para o outro, chorando e procurando consolo nos braços da minha mãe e de alguns parentes, que vinham em meu encontro.

Próximo ao meio-dia, o velório da sala ao lado acabou e o corpo foi transportado até um carro funerário marrom, e o cortejo seguiu logo em seguida.

Como toda criança curiosa, não me conteve e foi até lá para ver como estavam as coisas lá dentro... O que vi foi simples, apenas cadeiras fora do lugar, cavaletes que apoiavam o caixão logo ao meio da sala, pétalas de flores espalhadas pelo chão...

Dei uma volta breve e parei em frente à uma pequena mesa de canto onde havia uma garrafa térmica, e agitei para ver se ainda havia algo no seu interior, e ao constatar que ainda continha um pouco de chá, servi uma pequena xícara, e saí bebericando, pelo corredor, voltando para onde estava.

Ao ver novamente o corpo de meu avô dentro do caixão, comecei a chorar, de uma maneira descontrolada. Mal conseguia enxergar, devido a cortina de lágrimas formada em minhas pálpebras...

Preocupada comigo, minha mãe pediu que eu fosse dar mais uma volta, e que saísse ali de perto... E foi o que fiz...

Ao sair, passei por uma ante sala, onde fiquei sentado, tendo a minha frente, uma visão completa do corredor, onde ficavam as outras salas, transformadas em necrotérios provisórios...

Para minha surpresa, parei de chorar instantaneamente. Se alguém me visse naquele instante, até poderia imaginar que eu estivesse apertado um botão, que impedisse meu pranto.

O que vi ainda não sai da minha cabeça....

Foi algo que realmente me impressionou muito... E naquela hora, todos os meus pelinhos ficaram eriçados...

Um carro branco havia estacionado bem no fim do corredor, próximo a um muro, com um enorme portão enferrujado, travado.

Dois homens desceram do carro e abriram a porta traseira, levantando-a para cima, e com cuidado retiraram do seu interior um caixão, que foi carregado para o interior da sala E.

O caixão deveria ser muito pesado, porque cada um o segurava em uma extremidade, e faziam cara de cansados. Com muito esforço, entraram na sala, fechando a porta.

Meu coração disparou nesse momento...

Era um cadáver... Um homem morto... Por mais estranho que isso possa parecer aquilo me soava estranho...

Eu estava no velório do meu avô, e estava assustado com um cadáver... Nem eu mesmo entendia... Talvez a proximidade da morte, exercesse certo mistério sobre mim, ao mesmo tempo em que estava assustado, estava de certa forma fascinado...

Corri então até a ante sala, onde um primo meu estava sentado, e o chamei.

Ele estava sentado, não chorava, mas seus olhos ainda estavam vermelhos e marejados...

De início, não contei o que eu havia visto, apenas pedi para que me acompanhasse rapidamente...

Enchendo-me de perguntas ele me acompanhou... Ele era apenas cinco anos mais velho do que eu, mas me achava criança demais...

Indiquei então, o carro da funerária, e lhe resumi tudo o que aconteceu momentos atrás...

Enquanto ele caminhou lentamente até a porta da sala E, e ficou escondido espiando por uma pequena janela de vidro, que havia nela. Sussurrando, ele dizia para eu olhar lá, mas eu não tinha coragem... Eu era muito covarde, e confesso que ainda hoje, me sinto mesmo um assim...

Ocupado em olhar para dentro do carro, espiando pelas janelas e pelo vidro baixado da porta, eu estava curioso, e enojado pelo cheiro de fumaça de cigarro que pairava no seu interior.

Nem mesmo tinha noção do que esperava encontrar lá dentro, mas mesmo assim eu procurava por algo...

Foi quando meu primo, falou baixo, mas no tom exato para me assustar:

- Corre eles estão vindo para cá!

Saí correndo em desespero, de volta para a ante-sala, e quando cheguei lá, meu primo já estava sentado, ofegante, à minha espera.

Recuperando o meu fôlego, olhei para o fim do corredor e avistei os dois homens entrando no carro e saindo...

Haviam passado alguns minutos, até que meu primo, engenhoso como somente ele era (e ainda consegue ser), teve uma ideia mórbida...

Hoje a chamo assim: Mórbida. Mas naquela época eu não fazia a menos ideia da existência dessa palavra...

O convite era o seguinte:

- Vamos espiar lá dentro? – disse ele, com o olhar excitado – Quero olhar lá dentro...

- Mas o que tem lá dentro? – perguntei, amedrontado obviamente – Só um caixão...

Ele virou-se para mim.

- Você nem imagina o que eu vi eles fazendo lá dentro?

- O que?

- Eles abriram o caixão... – É isso mesmo! – Tiraram a tampa e escoraram ela na parede, e depois começaram a mexer no corpo...

- Eu não quero ver aquilo! – eu disse.

- Quer sim!

- Não quero, não! – gritei.

- Mas eu quero e vou ir lá olhar na janela de novo!

Dizendo isso ele saiu caminhando até lá, em frente a sala E.

Meu primo era um pouco mais alto do que eu, e por isso ele poderia olhar com facilidade pela janela. Mas comigo seria mais difícil, eu teria que colocar alguma cadeira para poder subir em cima...

Por mais que eu tivesse vontade, o medo me dominava... Os homens da funerária poderiam voltar, alguém poderia ver... Minha mãe, meus irmãos, sei lá... Eu tinha medo...

- Nem imagina o que eu estou vendo lá dentro... – disse ele, com a voz mansa, que despertava a minha curiosidade...

Isso era pior... Eu tinha medo, mas, ao mesmo tempo, ele ficava aguçando a minha curiosidade, a cada segundo que passava.

- Sai daí... – cochichei para ele, que ainda estava olhando na janela – Eles podem voltar com o carro... Alguém pode ver a gente aqui...

- E daí? - O que tem demais a gente espirar pela janela?

Nesse exato momento, ele deu uma batida sem querer na porta, e ela se abriu uns poucos centímetros.

Para a surpresa de ambos...

A porta estava aberta!

Os olhos do meu primo reluziram nesse momento. Ele segurou na maçaneta e me convidou para entrar.

Antes que eu pudesse ter respondido, ele já havia entrado na sala, ou melhor, no necrotério improvisado.

Eu estava tremendo, mas não conseguia aguentar de tanta curiosidade.

Afinal, o que ele viu lá dentro? O que haveria de tão extraordinário dentro daquela sala?

Foram essas perguntas que me impulsionaram... Não sei como, mas criei coragem e entrei na sala, vagarosamente, fechando a porta às minhas costas...

O corpo estava sobre uma espécie de mesa de ferro, ou algo muito semelhante. Estava o oculto por um lençol branco, um branco encardido.

- Chega mais perto! – disse meu primo – Vem ver o que tem debaixo do lençol...

Parado perto da porta, eu nem conseguia me mover direito, olhando para a forma oculta pelo lençol, que formava a silhueta de um corpo.

Pobre homem! – pensei comigo mesmo.

Ah, sim! O cadáver era de um homem. Não sei a idade, mas que era um homem, isso era sim...

E sabem como eu descobri isso? De uma forma que naquele momento, me encheu de pavor...

O pé!

Ah, o pé... Eu nunca confundiria aquele pé...

Era o pé de um homem, calejado, com um pouco de terra e trilhões de micróbios sob as unhas compridas e tortas...

O pé do cadáver estava destapado pelo lençol. Nunca havia visto um pé tão pálido e feio em toda a minha vida... E o pior é que ainda tinha uma etiqueta, pendurada no seu dedão, identificando-o.

- Vem aqui, vamos levantar o lençol para ver a cara...

- Eu não vou fazer isso...

- Ora deixe de ser bobo! – Vem aqui...

Contando os passos, fui muito lentamente até lá, mesmo sabendo que eu não teria coragem de ver o que havia debaixo do lençol...

Cheguei muito perto... e vi quando meu primo levantou uma pontinha do lençol e olhou para o que havia debaixo...

Não sei o que deveria ter visto, mas ele ficou com uma cara assustada, e logo largou o lençol, que caiu levemente sobre o rosto do cadáver.

Ia chegando cada vez, mais perto dele, e meu primo, aos poucos ia saindo de lá, até ficar olhando para a tampa do caixão, apoiada na parede, enquanto eu ainda estava estático olhando para a forma sob o lençol.

Só lembro de ter ouvido os gritos de pavor dele...

- Ele está se mexendo! – gritou saindo correndo.

Arrepiei-me todo, e fiquei muito apavorado, com a sensação de que haviam me dado um soco no estômago.

Não sei como eu consegui, mas me virei tão rápido e corri até a porta gritando.

E minha surpresa foi maior, quando meu primo saiu da sala e fechou a porta, a mantendo trancada, forçando a maçaneta para que ela não abrisse.

Gritando eu chutava e batia à porta tentando abri-la, mas não conseguia...

Não tinha coragem de olhar para trás, mas eu sabia... De alguma forma eu sabia que o morto estava se mexendo... Eu ouvia a sua respiração ofegante, no meu pescoço... E já estava escutando a sua voz dizendo:

- O que aconteceu comigo? – Como foi que eu morri?

Podia sentir a sua mão fria segurando meu braço ou o meu pescoço, ao mesmo tempo que chegava perto de mim, caminhando lentamente, com seus pés pálidos, e esqueléticos, muito feios...

Tudo isso eu podia sentir em apenas alguns segundos, mas que pareciam durar séculos para passar...

- Olhe atrás de você! – Ele vai te pegar! – gritava meu primo apavorado.

E então seus gritos de pavor foram substituídos por gargalhadas... Segurando a porta, para que eu não pudesse sair ele estava quase chorando de rir de mim...

Reunindo todas as minhas forças, olhei para trás...

E o que vi foi a coisa mais ridícula até aquele momento...

O corpo estava perfeitamente imóvel sob o lençol branco... Estava assim o tempo todo... Cabeça, braços, pernas... Completamente imóveis...

Suando frio e chorando um pouco, já implorava para que a porta fosse aberta....

E então, ele soltou a maçaneta, a porta abrindo lentamente.

- Pensei que você fosse morrer também...

Disse-lhe alguns palavrões, e sai correndo e não falei com ele mais durante aquele dia, nem no momento do funeral do meu avô...

Não sei se meu primo ainda lembra desse episódio, mas permanece muito vivo ainda na minha memória apesar dos anos...

A vontade que tinha naquela época era a de matar meu primo... Mas isso eu nunca faria é claro... Era apenas uma brincadeira idiota de duas crianças... E eu não o culpo por isso.

FIM

Amigo Leitor,

Espero que tenha gostado do conto acima.

Solicito que após a leitura, deixe nos comentários o seu feedback, pois ele é muito importante para mim.

Agradeço sua visita,

Abraços!

Rangel Elesbão
Enviado por Rangel Elesbão em 01/08/2018
Reeditado em 12/08/2018
Código do texto: T6406134
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