O Jazigo
O cemitério fora construído em um antigo monastério destruído por tropas inglesas durante um bombardeio, mas até hoje algumas pessoas ainda enterram lá os seus entes queridos. Era um cemitério medieval em ruínas, repleto de lápides tão antigas que já não se pode mais ler o que estava escrito nelas. Erguido sobre as montanhas, com a melhor vista para a paisagem montanhosa, hoje é um museu a céu aberto, que pairava na neblina densa e misturava-se aos flocos de neve que caíam, dançando sob as rajadas de vento, acumulando-se sobre os túmulos.
Um homem de meia idade caminhava com dificuldade, subindo e descendo as montanhas rodeadas de sepulturas, segurando a sua máquina fotográfica. Limpou os flocos acumulados em seu rosto pálido e cansado, resmungou um palavrão. Tudo o que precisava era fazer boas fotos da paisagem e do monastério, mas não sabia mais quanto tempo estava andando sem rumo em meio aos túmulos, sem a menor réstia de luz ao seu redor. Havia desencontrado seu assistente Loomis, e encontrá-lo em meio à nevasca era outro desafio. Subiu sobre um túmulo em ruínas, mas foi inútil, continuou a vagar por entre as passagens entre os jazigos. O barulho do vento frio o inquietava, as árvores secas e retorcidas balançavam dançando com o assobio do vento.
Foi quando sentiu o toque de uma mão tão gelada como a neve, pousar em seu ombro. Virou bruscamente para trás, e um calafrio percorreu todo o seu corpo, eriçando os pelos da sua nuca.
Na sua frente estava uma anciã que trajava um vestido branco de bolinhas vermelhas esvoaçante e usava um óculos de aros redondos. Ela o encarava com uma expressão séria.
“Não encontrei o jazigo que está enterrado o meu bebê”, ela disse mostrando seus poucos dentes amarelos. “Me ajude a encontrá-lo, Sr. Carpenter… É seu nome, não é? O senhor é fotógrafo, e está sempre por aqui…”
Por um momento, quase deixou escapar sua máquina por entre os dedos. Quem era aquela velha, como sabia o seu nome, perguntou-se. Olhava sem saber o que fazer ou falar, e ela continuava parada na sua frente, ao lado de uma escultura de um anjo de pedra com a cabeça destruída.
“Não temas, Sr. Carpenter! Me chame apenas de Sra. Myers. Quero a sua ajuda para encontrar o jazigo do meu bebê… Tanto tempo faz, tantas lápides velhas e corroídas pelo tempo, já nem consigo ler as inscrições…”
Assustado, deu um passo para trás, mas ela caminhou em sua direção. Aos poucos, começou a sorrir olhando para ela. Não acreditava, era loucura. Há muito que ele perambulava pelo cemitério em ruínas, e estranhamente nunca havia encontrado ninguém lá. Agora diante dos seus olhos, lá estava a velha perdida no meio da neblina, quase uma forma translúcida, fantasmagórica. Parecia ser uma pessoa normal, mas havia algo de assustador naquele sorriso. Agora tudo fez sentido… Ela era um fantasma.
“Venha comigo, que lhe acompanho até onde está o seu assistente… E depois, você me ajuda a encontrar o jazigo do meu bebê.”
O medo tomou conta dele. Pensou em correr, mas não enxergava nada à sua frente além de uma cortina de neve. Não tinha certeza se estava diante de um fantasma, ou de uma pessoa viva.
Precisava encontrar uma maneira de descobrir se estava diante de um ser humano ou de alguma espécie de alma penada. Mas o horror que sentia, não o permitia ser racional.
“Não temas! Venha comigo, siga na minha frente, que lhe mostrarei o caminho.”
Arrastando-se ele caminhou por entre os túmulos, ouvindo atrás de si, as pisadas fofas da velha sobre a neve.
“Siga em frente…”
Era como caminhar em um corredor na penumbra, nada além da neblina diante dos seus olhos. As copas fechadas das árvores não permitiam nenhuma luminosidade.
“No final dessa passagem há um mausoléu, ao lado dele um jazigo…”
O que haveria no final do caminho? Seu amigo Loomis? Algum outro fantasma, talvez um demônio à espreita?
A voz da Sra. Myers soava abafada, e parecia dissipar-se em meio ao som das árvores balançando.
“Loomis!” Ele gritou, mas não conseguia avistar o seu assistente. Talvez ele estivesse voltado para a entrada do cemitério, lhe ocorreu nesse instante.
Parado em frente ao mausoléu, não encontrou ninguém. Sentindo-se enganado por uma velha senil, virou-se para trás, irritado.
“Não tem ninguém…”
Mas não conseguiu concluir o seu pensamento.
O que viu foi apenas uma forma transparente, desaparecer em uma rajada de vento, fazendo as folhas das árvores farfalharem em meio a um redemoinho, cujo assovio ecoou por entre os túmulos e as paredes do mausoléu.
Tentou gritar mas o som da sua voz falhou. Com o corpo trêmulo e as pernas pesadas, quase impossíveis de se mover como num sonho, olhou para os lados aturdido. Sua cabeça parecia girar, nada fazia sentido, a neblina, a nevasca, o mausoléu… A velha que desapareceu diante dos seus olhos… Então, tomado por uma enorme curiosidade, caminhou até o jazigo que a Sra. Myers tinha indicado. Ao ver a foto de porcelana ornamentada em bronze, fixada na lápide, deixou escapar sua máquina fotográfica por entre os dedos. Dessa vez, o grito trancado em sua garganta, saiu…
Parada diante do túmulo do seu filho morto, a Sra. Myers fazia uma oração. Soprava uma brisa de verão, que fazia seu vestido esvoaçar. O sol brilhava e os pássaros em festa faziam seus ninhos nas árvores frondosas. Com um lenço, limpou o suor da sua testa, e abanou-se pra minimizar o calor que sentia. Olhava sorrindo para o final da passagem entre os túmulos. Viu quando Carpenter passava em frente do mausoléu em direção ao jazigo que ela indicara.
Desesperado Michael Carpenter, olhava para a foto na lápide.
“Michael!” Era Loomis falando às suas costas.
“Não entendo… Na lápide… Na foto…”
“Por onde você andou, Michael?”
“É você!”
Olhando para a foto de Loomis sobre a sepultura, e para o seu amigo em sua frente, sentia seu corpo estremecer. As rajadas de vento tornavam seus dias frios e úmidos, e açoitavam flocos de neve eu seu rosto.
“Isso não é real, Loomis!”
“O bombardeio… Desde então, nós estamos aqui…”
“Bombardeio… Não lembro…”
“Você está aqui, ainda…”
“Não é verdade! Sinto frio, estou cansado, consigo segurar meu equipamento. Preciso levar as fotos para o jornal…”
“Está preso neste lugar, Michael!”
“Não acredito!”
“Você está vagando neste cemitério, revivendo e repetindo o dia fatídico, ininterruptamente, em um ciclo interminável… Preso em um limbo…”
“Ouvi os aviões, o bombardeio… Mas me protegi e continuei fotografando, sem ser atingido. Preciso levar as fotos para o jornal.!”
“Depois desse bombardeio, houve muitos outros… A guerra durou quatro anos, e o mundo está se preparando para outra, ainda mais sangrenta… E você continua aqui!”
Michael Carpenter seguiu com seus olhos arregalados a direção que seu assistente mostrava com o seu dedo indicador.
Ele apontava para um jazigo ao seu lado. Grande e coberto parcialmente com ervas daninhas. Sobre a lápide de mármore havia uma fotografia, e uma réplica de uma máquina fotográfica, igual ao modelo que carregava durante todo o tempo, e que acabara de derrubar.
“Agora que você se encontrou, precisa ir…”
Lágrimas escorreram pelo rosto pálido de Michael.
“Seu lugar não é mais aqui!”
O fotógrafo concordou com um movimento de cabeça e os olhos marejados, enquanto olhava a sua foto na lápide.
Aos poucos a neblina começou a se dissipar. A luminosidade dos raios de sol, inundando e colorindo tudo a sua volta, desfazendo o mundo frio e trevoso em que havia estado durante muito tempo.
A Sra. Myers fechou os olhos por um instante e sorriu, agradecendo em pensamento, pelo dom que possuía desde criança, de falar e ajudar os mortos a encontrar o seu caminho em direção à luz.
“Todos encontraram o que procuravam…”
FIM
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