A Pura Face do Mal...
A função de anjo da guarda não é fácil.
As decisões são sua escolha, mas nós temos a função de fazer o melhor que pudermos por cada um dos nossos protegidos, dentro das nossas forças.
A minha primeira missão como protetor foi com o garoto que chamarei de Serginho. Não era seu nome real, mas gostava de chamá-lo assim. Nós anjos temos esse capricho, damos aos protegidos nomes que sejam muitas vezes diferentes do real, tendo uma intimidade toda especial com nossos queridos pupilos.
Nasceu na Inglaterra, em uma época de grande ebulição intelectual quando as primeiras máquinas começavam a surgir soltando seus poderosos vapores.
Era de uma família abastada, poderosa e nobre.
Encantei-me pelo bebê e, como não queria que nada lhe acontecesse, protegi-o noite e dia. Anjos não se cansam como os humanos, embora nos cerque, por vezes, um tédio medonho. Afasto esses pensamentos e volto, quando posso, à patrulha do meu pupilo querido.
Queria notas altas diante dos meus superiores e cuidei que nada afetasse ao Serginho. Afastava qualquer inseto repugnante. Quando lhe vinha a fome e o choro, corria e acentuava nos ouvidos das Aias fazendo com que o amamentassem prontamente. Orgulhoso da minha força, cruzava os braços observando-o crescer e ficar forte a cada dia.
Serginho era um bebê rosado e gordo. Seu sorriso era um encanto e, como bom anjo, iluminava-o sempre com o poder de minha proteção. Mesmo uma Aia descuidada, que tomando chá perto dele o derrubou sobre a pele macia, não permiti que o queimasse fazendo com que o líquido fosse desviado por um esforço que fiz entornando-o através de uma curva para fora do berço dourado. A Aia assustou-se, terminou por tremer e deixou que a xícara de chá se espatifasse ao solo. Naturalmente, pelo descuido, e graças à minha influência sobre os pais, acabou sendo demitida.
Serginho crescia e eu o protegia. Quando via que as descuidadas Aias iam servir uma sopa quente, eu a soprava. Investigando seu frágil corpo não deixei que nenhum vírus o atingisse e ele jamais teve uma gripe ou febre. Espantava da sua proximidade todas as doenças. Em seus pequenos e vacilantes passos, amparava-o para que não caísse e aprendeu a andar sem se ferir nas quedas.
Algumas Aias pareciam notar meu esforço e se benziam acreditando fosse o esforço do mal. Tolas.
Mas houve um infortúnio que não consegui deter...
Os pais do meu protegido, certa noite, ao voltarem de um Baile Real, foram desafortunadamente vítimas de um terrível acidente. O coche disparara quando o condutor parou para retirar do caminho uma galhada inoportuna na estrada. Neste pequeno e curto intervalo, como se fosse obra do maligno, ante o assombro de um raio, os cavalos pareciam ter recebido uma chicotada das gruas do inferno. O cocheiro descuidado não havia travado as rodas com a força devida. Em disparada medonha, antes de uma famigerada ponte à beira de um penhasco, a condução tombara e seus frágeis corpos não resistiram à sequência de impactos. A mulher quebrara o pescoço e o homem fora jogado fora espatifando o crânio no encontro de uma pedra insensível.
Serginho contava 10 anos quando teve que passar por aquele dor que não pude evitar. Aonde estariam os incompetentes anjos dos pais?
Por ordens superiores, um anjo somente vê o de outro protegido quando autorizado. Esbravejei e os infelicitei. Meu Serginho não podia passar por aquela dor e nem a minha presença na cama com ele, todas as noites, tentando serenar o seu coração foram suficientes para que se acalmasse.
Ficou irritado, colérico e sua doçura terna praticamente desaparecera naquele fôlego tenebroso do luto.
Tentava acalmá-lo nos sonhos, mas sua mente buscava pesadelos.
Fiquei em desespero.
Meus superiores, sentindo minha angústia, vieram ao meu encontro:
- Tu deves deixá-lo. – Disse o Maioral.
- Por quê? Eu o amo?
- Já fizeste tudo por ele. Agora é natural que siga ele outro curso e serás substituído.
Tentei protestar, mas fui tolhido e dali retirado para outras funções.
O tempo correu e, mesmo longe, jamais tive notícias do meu Serginho. Um amigo, entretanto, um dia me soprou:
- Soube que seu protegido é agora um médico!
Fiquei em êxito. Serginho ainda vivia e crescera. Como estaria ele? Que feições adquirira? Quanto bem estaria fazendo ou praticando pelo mundo? Curioso, implorei ao Maioral que me permitisse vê-lo mais de uma vez. Inútil. Ele dizia que eu poderia atrapalhar a obra à qual meu protegido estava destinado. Fiquei vencido pela dor daquela tristeza. Mas não desisti dos pedidos até que um dia, já quase conformado, chamou-me o Maioral:
- Está na hora de rever o seu pupilo.
- Meu coração exultou! Enfim, veria o fruto do meu trabalho junto àquele que tanto queria. O Maioral e eu partimos com nossas asas longas e poderosas. Sobrevoamos a Londres daqueles tempos aonde o progresso tecnológico ainda era apenas uma faísca distante. Paramos sobre o telhado de uma viela escura e distante. O que estaria meu pupilo fazendo dentro do pequeno casebre rústico que me fora apontado? Cuidaria de um parto? Atenderia a um moribundo aliviando-lhe as últimas horas? Emendaria algum osso quebrado? Seja como for, vi saindo de lá uma figura tenebrosa. Era Azrael, o anjo da morte, carregando em seus braços a alma de uma jovem ruiva. Deixava atrás de si aquele rastro de uma luminosidade púrpura que se esfumava aos poucos. Era a emanação típica da morte. Sabia que meu pupilo falhara e a mulher, talvez uma gestante, não devia ter sobrevivido ao parto. Eis, então, que algum tempo depois vejo saindo o meu protegido. Portava a maleta típica dos médicos da época e se trajava muito bem. Caminhou por algumas quadras e pegou um Coche.
O Maioral desceu comigo para vermos dentro do casebre. Ali, o corpo de uma jovem estava em terrível estado com as vísceras de fora. Teria sido uma cirurgia mal sucedida? Ouvindo o que pensava, o Maioral, dentro do seu poder, fez com que minhas vistas retrocedessem no tempo. Vi, então, Serginho comprando a jovem, uma prostituta. Em seguida, com o éter, desfaleceu-a e, munido de suas técnicas cirúrgicas, abriu seus órgãos internos. Via em sua mente a alegria insana de um doente mental. As lágrimas correram pelas minhas faces. Como poderia ter ocorrido aquilo? Esmerei-me ao máximo que pude em seus cuidados? O Maioral, com grande prazer mórbido, fez com que eu visse cada um das suas dezenas de crimes.
Meu coração não cabia em si. Praticamente saltava pela boca. Batendo em meu ombro, fez o Maioral com que alçássemos voo. Flutuamos sobre o Coche de Serginho, agora um homem maduro na casa do 55 anos. Assim que ele desceu do último degrau, seu coração foi perfurado pela foice de Azrael. Era um ataque cardíaco fulminante. Então, meu protegido teve sua alma carregada nos braços do Senhor da Morte. Antes de partir carregando-o, parou diante de nós e olhei dentro dos seus olhos ocos de caveira. Em seguida, vi a face branca de Serginho.
- Ele pesa como mil almas! – Disse o anjo da morte antes de partir para as gruas do inferno.
O Maioral, tocando-me no ombro, disse:
- Parabéns, tu o defendeste e ele conseguiu cumprir o seu destino. Vá e rejubila-te que em breve te daremos nova e notável Missão. Sabia que o teu Serginho é pelos humanos apelidado de Jack, o Estripador?
Passaram-se alguns anos e o Maioral novamente convocou-me:
- Voltemos à Terra!
Em um berço modesto vi a chegada de um novo e frágil varão. O Maioral instruiu-me:
- Cuide dele e que nada abale a sua saúde. Em alguns anos mudará a História do Mundo. Chama-o como quiserdes, mas os pais estão pensando em nominá-lo: Adolf Hitler...
As decisões são sua escolha, mas nós temos a função de fazer o melhor que pudermos por cada um dos nossos protegidos, dentro das nossas forças.
A minha primeira missão como protetor foi com o garoto que chamarei de Serginho. Não era seu nome real, mas gostava de chamá-lo assim. Nós anjos temos esse capricho, damos aos protegidos nomes que sejam muitas vezes diferentes do real, tendo uma intimidade toda especial com nossos queridos pupilos.
Nasceu na Inglaterra, em uma época de grande ebulição intelectual quando as primeiras máquinas começavam a surgir soltando seus poderosos vapores.
Era de uma família abastada, poderosa e nobre.
Encantei-me pelo bebê e, como não queria que nada lhe acontecesse, protegi-o noite e dia. Anjos não se cansam como os humanos, embora nos cerque, por vezes, um tédio medonho. Afasto esses pensamentos e volto, quando posso, à patrulha do meu pupilo querido.
Queria notas altas diante dos meus superiores e cuidei que nada afetasse ao Serginho. Afastava qualquer inseto repugnante. Quando lhe vinha a fome e o choro, corria e acentuava nos ouvidos das Aias fazendo com que o amamentassem prontamente. Orgulhoso da minha força, cruzava os braços observando-o crescer e ficar forte a cada dia.
Serginho era um bebê rosado e gordo. Seu sorriso era um encanto e, como bom anjo, iluminava-o sempre com o poder de minha proteção. Mesmo uma Aia descuidada, que tomando chá perto dele o derrubou sobre a pele macia, não permiti que o queimasse fazendo com que o líquido fosse desviado por um esforço que fiz entornando-o através de uma curva para fora do berço dourado. A Aia assustou-se, terminou por tremer e deixou que a xícara de chá se espatifasse ao solo. Naturalmente, pelo descuido, e graças à minha influência sobre os pais, acabou sendo demitida.
Serginho crescia e eu o protegia. Quando via que as descuidadas Aias iam servir uma sopa quente, eu a soprava. Investigando seu frágil corpo não deixei que nenhum vírus o atingisse e ele jamais teve uma gripe ou febre. Espantava da sua proximidade todas as doenças. Em seus pequenos e vacilantes passos, amparava-o para que não caísse e aprendeu a andar sem se ferir nas quedas.
Algumas Aias pareciam notar meu esforço e se benziam acreditando fosse o esforço do mal. Tolas.
Mas houve um infortúnio que não consegui deter...
Os pais do meu protegido, certa noite, ao voltarem de um Baile Real, foram desafortunadamente vítimas de um terrível acidente. O coche disparara quando o condutor parou para retirar do caminho uma galhada inoportuna na estrada. Neste pequeno e curto intervalo, como se fosse obra do maligno, ante o assombro de um raio, os cavalos pareciam ter recebido uma chicotada das gruas do inferno. O cocheiro descuidado não havia travado as rodas com a força devida. Em disparada medonha, antes de uma famigerada ponte à beira de um penhasco, a condução tombara e seus frágeis corpos não resistiram à sequência de impactos. A mulher quebrara o pescoço e o homem fora jogado fora espatifando o crânio no encontro de uma pedra insensível.
Serginho contava 10 anos quando teve que passar por aquele dor que não pude evitar. Aonde estariam os incompetentes anjos dos pais?
Por ordens superiores, um anjo somente vê o de outro protegido quando autorizado. Esbravejei e os infelicitei. Meu Serginho não podia passar por aquela dor e nem a minha presença na cama com ele, todas as noites, tentando serenar o seu coração foram suficientes para que se acalmasse.
Ficou irritado, colérico e sua doçura terna praticamente desaparecera naquele fôlego tenebroso do luto.
Tentava acalmá-lo nos sonhos, mas sua mente buscava pesadelos.
Fiquei em desespero.
Meus superiores, sentindo minha angústia, vieram ao meu encontro:
- Tu deves deixá-lo. – Disse o Maioral.
- Por quê? Eu o amo?
- Já fizeste tudo por ele. Agora é natural que siga ele outro curso e serás substituído.
Tentei protestar, mas fui tolhido e dali retirado para outras funções.
O tempo correu e, mesmo longe, jamais tive notícias do meu Serginho. Um amigo, entretanto, um dia me soprou:
- Soube que seu protegido é agora um médico!
Fiquei em êxito. Serginho ainda vivia e crescera. Como estaria ele? Que feições adquirira? Quanto bem estaria fazendo ou praticando pelo mundo? Curioso, implorei ao Maioral que me permitisse vê-lo mais de uma vez. Inútil. Ele dizia que eu poderia atrapalhar a obra à qual meu protegido estava destinado. Fiquei vencido pela dor daquela tristeza. Mas não desisti dos pedidos até que um dia, já quase conformado, chamou-me o Maioral:
- Está na hora de rever o seu pupilo.
- Meu coração exultou! Enfim, veria o fruto do meu trabalho junto àquele que tanto queria. O Maioral e eu partimos com nossas asas longas e poderosas. Sobrevoamos a Londres daqueles tempos aonde o progresso tecnológico ainda era apenas uma faísca distante. Paramos sobre o telhado de uma viela escura e distante. O que estaria meu pupilo fazendo dentro do pequeno casebre rústico que me fora apontado? Cuidaria de um parto? Atenderia a um moribundo aliviando-lhe as últimas horas? Emendaria algum osso quebrado? Seja como for, vi saindo de lá uma figura tenebrosa. Era Azrael, o anjo da morte, carregando em seus braços a alma de uma jovem ruiva. Deixava atrás de si aquele rastro de uma luminosidade púrpura que se esfumava aos poucos. Era a emanação típica da morte. Sabia que meu pupilo falhara e a mulher, talvez uma gestante, não devia ter sobrevivido ao parto. Eis, então, que algum tempo depois vejo saindo o meu protegido. Portava a maleta típica dos médicos da época e se trajava muito bem. Caminhou por algumas quadras e pegou um Coche.
O Maioral desceu comigo para vermos dentro do casebre. Ali, o corpo de uma jovem estava em terrível estado com as vísceras de fora. Teria sido uma cirurgia mal sucedida? Ouvindo o que pensava, o Maioral, dentro do seu poder, fez com que minhas vistas retrocedessem no tempo. Vi, então, Serginho comprando a jovem, uma prostituta. Em seguida, com o éter, desfaleceu-a e, munido de suas técnicas cirúrgicas, abriu seus órgãos internos. Via em sua mente a alegria insana de um doente mental. As lágrimas correram pelas minhas faces. Como poderia ter ocorrido aquilo? Esmerei-me ao máximo que pude em seus cuidados? O Maioral, com grande prazer mórbido, fez com que eu visse cada um das suas dezenas de crimes.
Meu coração não cabia em si. Praticamente saltava pela boca. Batendo em meu ombro, fez o Maioral com que alçássemos voo. Flutuamos sobre o Coche de Serginho, agora um homem maduro na casa do 55 anos. Assim que ele desceu do último degrau, seu coração foi perfurado pela foice de Azrael. Era um ataque cardíaco fulminante. Então, meu protegido teve sua alma carregada nos braços do Senhor da Morte. Antes de partir carregando-o, parou diante de nós e olhei dentro dos seus olhos ocos de caveira. Em seguida, vi a face branca de Serginho.
- Ele pesa como mil almas! – Disse o anjo da morte antes de partir para as gruas do inferno.
O Maioral, tocando-me no ombro, disse:
- Parabéns, tu o defendeste e ele conseguiu cumprir o seu destino. Vá e rejubila-te que em breve te daremos nova e notável Missão. Sabia que o teu Serginho é pelos humanos apelidado de Jack, o Estripador?
Passaram-se alguns anos e o Maioral novamente convocou-me:
- Voltemos à Terra!
Em um berço modesto vi a chegada de um novo e frágil varão. O Maioral instruiu-me:
- Cuide dele e que nada abale a sua saúde. Em alguns anos mudará a História do Mundo. Chama-o como quiserdes, mas os pais estão pensando em nominá-lo: Adolf Hitler...