Morto malquisto
O enterro havia acabado e os coveiros saíram rapidamente do cemitério, todos os três se benzendo e fazendo súplicas aos céus. Já sepultaram muita gente, mas nunca haviam sido tomados por uma sensação tão ruim e desagradável. A fama de má pessoa do defunto, Miguel Carvalho das Almas, era conhecida. Poucos compareçam ao seu velório. Era alguém desimportante. Devia a muitos, batia em mulheres, não dava atenção aos filhos. Isso ao longo dos seus 50 anos. Portanto, ninguém lamentou a sua morte.
Como é costume nas pequenas cidades do sertão nordestino o velório acontece sempre na casa do morto, além de uma última encomendação na Igreja Católica. Esta não aconteceu no caso de Miguel, pois ele não era crente. Blasfemava sempre contra Deus, culpando-o pelos infortúnios da sua vida, que, na realidade, o tinham como único responsável.
No entanto, se os vivos pouco ligaram para a sua partida, os mortos não o receberam muito bem em sua derradeira morada. Apesar de ser o mês de outubro, tradicionalmente quente e ensolarado no sertão nordestino, aquele dia especificamente estava nublado e abafado. Não corria vento. Quando os coveiros fizeram seu trabalho mediante uns trocados dos familiares, às 17h00, já estava escuro. Uma hora se passou após o sepultamento, tomado pelo silêncio típico de lugares onde ninguém fala. Contudo, às18h00 barulhos estranhos começaram a ecoar pela superfície da terra seca, entre túmulos de mármore e covas cobertas com barro e flores de plástico sujas. Uivos. Não de animais, de outra coisa...
As covas começaram a revolver e batidas podiam ser verificadas no interior dos túmulos de mármore. Eram os mortos. Estavam insatisfeitos com o novo habitante da sua casa perpétua. Aqueles que haviam sido sepultados há pouco tempo, saíram de dentro da terra. Corpos em decomposição, secos, alguns inchados, outros com pele cobrindo os olhos, mais pareciam trapos. Arrastando-se e caminhando (aqueles que podiam), foram até o mais recente túmulo e começaram a cavar com as mãos ou o que havia sobrado delas.
Sem dizer palavra, apenas cavando instintivamente. Em questão de minutos chegaram no caixão e arrancaram a sua tampa. Lá estava Miguel, morto, com as mãos juntas sobre o corpo. Vestindo o seu terno barato e com algodões no nariz. Quando se lhe puseram as mãos decompostas, os olhos de Miguel se arregalaram e ele balbuciou: não. Arrastaram-no para fora da sepultura, onde deveria repousar, e ao ficar de pé, viu-se diante de um morto encarando-o altivamente, embora não tivesse mais olhos. O líquido que preenche estes, já havia vazado.
Reconheceu João Dezembrino. Havia morrido há duas semanas. Apesar do estado de decomposição, ainda era possível saber de quem se tratava. Miguel perguntou:
- O que está havendo? – Sentia-se como em um pesadelo.
- Você morreu e foi enterrado, nós te desenterramos. – Respondeu Dezembrino com a pele seca e escura, sem expressão.
- Como? Não pode ser...
- Sim, você morreu, mas isso não é o pior. – Continuou o morto.
O que poderia ser pior do que a morte? Veio à cabeça de Miguel.
- Ninguém o quer aqui. Nesse solo, você não ficará. – Disse Dezembrino. Mostrando que desempenhava naquele momento o papel de porta-voz dos demais defuntos.
Miguel permaneceu em silêncio, incrédulo, como sempre fora ao longo da sua vida pregressa.
- Enquanto viveu, você afastou a todos, perseguiu, maltratou, humilhou, renegou. Sua vida foi um desastre. Teve oportunidade de se arrepender, mas não fez assim. Muitos daqueles a quem feriu, aqui repousam, e a sua presença não lhes permite ter paz, especialmente para os recém-sepultados, que ainda não fizeram a passagem.
- E o que acontecerá comigo? – Perguntou Miguel.
- Antes de “descer” (ênfase no descer), terá de encontrar outro lugar para o seu cadáver. Não há lugar para você aqui.
Após essa mensagem, tudo voltou ao normal... Ou quase tudo.
Na manhã seguinte, uma senhora idosa entrava no cemitério fazendo suas preces enquanto se benzia. Ia depositar flores no túmulo do filho. Ao adentrar viu uma pessoa deitada no chão ao lado de uma cova. Apesar do medo e do arrepio, foi até lá. Teve tempo apenas de emitir um agudo grito antes de desmaiar. O corpo de Miguel estava jogado para fora de sua cova, que estava aberta.
A pequena cidade sertaneja ficou incrédula perguntando-se quem faria isso a um morto, mesmo a alguém tão detestável? De certo Miguel tinha muitos inimigos para que não o permitissem repousar após a morte. Só podia ser vingança, pois os demais túmulos não haviam sido tocados. Tornaram a enterrá-lo, em vão. No dia seguinte seu corpo estava fora da cova novamente, e no outro, e no outro. A Guarnição da Polícia Militar da cidadezinha, incapaz de encontrar uma resposta, requisitou o auxílio da Polícia Civil do município vizinho, maior e mais desenvolvido. Tampouco encontraram respostas.
Para uma antiga senhora do lugarejo, conhecedora dos assuntos do outro mundo, a situação estava clara. Os mortos não queriam Miguel ali. Sugeriu ao sobrinho, que repassou ao prefeito, que enterrassem Miguel em outro lugar. Houve uma discussão sobre onde depositar o corpo do homem malquisto. Até que concordaram que o mais conveniente seria fazer um novo sepultamento, dessa vez no quintal da sua velha casa. E assim aconteceu.
No dia seguinte, houve quem tivesse coragem para ir até o túmulo e verificar se estava como o haviam deixado. Estava. Nenhum sinal de profanação. Passados dias depois da sequência de estranhos acontecimentos, a população continuava a comentar e se arrepiar com a fantástica história. Contudo, ninguém queria de visitar o túmulo de Miguel. Lá permaneceu, abandonado, isolado, sem flores nem lágrimas. O mesmo com a sua pequena casa, onde ninguém tinha coragem de encostar, especialmente à noite.