ANTES QUE A NOITE ACABE
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Fingida noite tão parva e obsoleta se faz parecer. O quarto impenetrável bloqueava toda a luz. No nada e no escuro buscava a loucura uma resposta sensata. Queria ouvir o retumbe das palavras jogadas: Quem sou eu! ...sou eu! ...eu! As trevas eram vazias e por isso preenchiam nela o que faltava. Ela também era vazia. Estava vazia. Ideias fixas incomodavam. Tão arraigadas e abrindo tentáculos, presas, interferindo em sua lucidez. Abriu uma fresta da cortina deixando escapar um raio de sol. Lá fora, o dia bonito. Uma menina de uns 5 anos pedalava sua bicicleta pela calçada. Era Letícia, lourinha, vestidinho rosa. Tão branca com as maças do rosto coradas e seus olhinhos sonhadores azuis. Viu graça nisso e até a fez esquecer um pouco a dor.
Era difícil encarar a beleza das coisas porque ela já se sentia há algum tempo sem beleza. Por vezes dominavam uma maldade e uma feiura. Que não era a ausência de encanto, mas sim a prevalência de coisas imundas e grotescas. Era difícil todas as vezes continuar. Porque ela sabia sempre e sempre o que tinha que fazer e isso a atormentava. Mas então mordia os lábios para que a cor voltasse. Passava o blush e a sombra e o batom vermelho e ia construindo uma nova aparência para si mesma. Aos poucos por trás da mera aparência pintada e fingida uma outra Vanessa ia aparecendo. A Vanessa que a própria pintura vinha resgatar. E as amigas e a escola, os pais, o namorado, tudo vinha depois disso e era maravilhoso sentir-se viva e buscar o amor das pessoas. O mosaico de pôsteres, fotos e capas de discos que decoravam as paredes davam uma pista de quem ela era. Todos os ídolos do roque, como potestades, eram energizados com suas crenças, lembranças, decepções e conquistas. Mas Vanessa era tímida. Não era a roqueira que se vestia de preto ou buscava uma identidade para si. Ela interiorizava tudo isso. Era uma parte tão íntima dela, a música, como seus medos e suas paixões. Porque ela era como uma rosa, que se abria aos poucos e para poucos.
19 anos até ali, quantos anos além? Quanto tempo e desse tempo brotariam sonhos e desses sonhos quais germinariam? Ela sabia o que vinha pela frente e essa certeza crucial e infalível era triste. Uma certeza como essa sempre é. Porque a morte é temida quando na verdade deveria ser almejada? Ela sabia. Quando a carne irrigada pelo sangue viceja e o pulsante coração rebenta convulso fazendo o sangue fluir por todo o corpo. E os ossos preenchidos de medula e os nervos e as ligaduras, tendões, protuberâncias e cavidades do corpo. A vida e toda a sua complexidade eram lindos. Os cabelos e as unhas que crescem mesmo depois que tudo para. E mesmo depois no triste fim, como tudo se transforma, transcendendo e crescendo dos confins da terra, brotando das águas e pairando pelo ar.
Felipe, seu namorado, veio lhe buscar com sua motocicleta. Um sujeito magrelo, de cabelos bagunçados que batiam nos ombros. Um jovem explodindo testosterona e com espinhas eclodindo. Vanessa, correndo pulou na motocicleta ainda em movimento. Sem capacete, soltos os cabelos pretos e encaracolados pareciam cobras que se assanhavam.
Agarrada ao namorado Vanessa sentia o calor e era energia, como o sol e fazia bem, nutria o seu corpo. Precisava sentir-se viva de uma forma diferente. Seria possível? Uma alternativa, uma cura. Sabia que não, mas pensar que sim a mantinha viva. Ela acreditava que podia matar o que já estava morto e tentar viver com o que ainda não estivesse. Como torradas parcialmente queimadas. Como um broto, um renovo que consegue vencer a crosta preta e dura do solo incendiado e vingar.
Sempre era vencer o dia para chegar, bem-vinda, a noite. As horas eram longas e as pessoas tediosas. Vanessa tinha certeza que se serviria delas de uma forma bem mais proveitosa se isso fosse possível. Mas certamente levantaria suspeitas. E ela queria, como queria viver uma vida normal, mas aquela repulsa morava dentro dela e se alimentava de nobre sentimentos e eles secavam e pereciam aos poucos transformando-a naquilo gradativamente, como uma cobra que troca de pele.
Os passeios ao final da tarde com Felipe eram uma agradável diversão. Bebiam, fumavam, ficavam jogados e se entregavam ao amor. As leis que regem o universo pareciam ser invalidas ali.
– Não é engraçado ver a cidade aqui de cima? –Disse Felipe, apontando para a cidade lá em baixo. Estavam no ponto mais alto. Um mirante no morro dos cavalos, que tinha esse nome devido a uma antiga lenda do local.
– Olha, tá vendo? Lá a lanchonete, a mecânica, o hotel.
– A venda do sr. Abel, o salão de beleza, a pastelaria. Vistos daqui até parecem outra coisa. Mas é a velha Arroio de Ponte Quebrada. Quero sair daqui.
– Disse Vanessa. O olhar mirava a cidade lá em baixo mas ia além, muito mais. Lugares que ela nunca estivera mas queria conhecer. A vastidão do mundo. Uma vida é muito curta para que se perca numa só cidade, vivendo uma só vida.
– Você diz fugir, gata? – Retrucou Felipe nervoso. Começou a ascender o isqueiro, um hábito que tinha quando se sentia agitado. Olhava pra chama e parecia encontrar nela algum alento, porque trazia certo conforto.
– Não cara, que fugir? Sabe, depois de me formar. Quando começar minha própria vida. Não quero nada com isso aqui. Quero conhecer o mundo e sei que tem muita coisa me esperando fora daqui. Eu sinto.
– Você fala: “Eu começar minha própria vida” Parece que eu não faço parte dessa equação! – Lamentou Felipe desapontado. Subiu o parapeito do mirante e se equilibrando começou a andar sobre a estreita tábua da estrutura.
– Sai daí maluco, quer se matar? Tá me deixando nervosa, desce agora!
– Calma. – Disse ele pulando de volta. A fitava com um sorriso de gratidão no rosto e um renovado brilho no olhar. – Então, se eu me jogasse? Ia sentir a minha falta? Mas não me vê fazendo parte da sua vida? Daqui a 20 anos, por exemplo?
– Você não acha que isso é muito tempo para se pensar? Somos jovens, vamos viver o que está aqui agora. Quando eu faço planos, é mais como traçar um roteiro. Você não se preocupa, só traça as metas para alcançar e eu vou alcançar todas elas!
Beijaram-se. Não havia nada depois nem antes. Acreditaram que só o presente havia, porque de fato era isso mesmo. Intenso, doce, ácido. Tudo que podiam sentir canalizava-se e exauria-se ao mesmo tempo. Uma onda cíclica, inesgotável.
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– Você! – Dizia a voz misteriosa. Ali o vento soprava, os dutos e goteiras fabricavam sons dilacerantes. A névoa rasteira parecia se acumular e subir cada vez mais. Um assovio crescente e sibilante a apavorava. E aquela voz, claro. Breve, potente, grave, como um general ao dar o comando. Mas era ela a travar aquela guerra. Estava acontecendo, agora era real, ela sabia.
– Me esperava, não é? – De novo a voz. Soltou um grito estridente e se recolhia para dentro de si mesma, como se pudesse envolve-la até virar uma concha e desaparecer. Chorava encostada na parede, pedia ajuda, chamava por socorro entre respiros espasmódicos e engasgos.
– Nos sonhos você não tinha medo! Até ansiava por este momento. Me escondia nas sombras e você corria para me alcançar, ver o meu rosto. O que aconteceu? Eu estou aqui agora! E de repente, todo aquele descontrole e o pânico foram se convertendo em uma estranha familiaridade e o alívio foi ocupando os espaços vazios. E tudo fazia sentido agora. Então levantando-se ela caminhou em direção a luz. À frente o viaduto seguia iluminado e as lâmpadas queimadas daquele trecho iam ficando para trás. Ela não via nada a sua frente. Poucos carros passavam àquela hora da noite, naquele momento nenhum. Mas uma sombra no asfalto a fez olhar para cima. No teto, andando como um animal. Cheirava o ar, apertando o cenho e fazendo uma careta medonha com a boca parecia querer sentir algo que ia se perdendo. A figura bizarra de gatinhas a encarava tendo o pescoço completamente torcido e olhos, na cabeça ao contrário, a encarando frios e opacos. As presas proeminentes destacavam-se no sorriso burlesco.
– Você é o meu pai? Quero dizer, foi você quem me tornou assim? Como você? O que eu sou? – Vanessa tinha muitas perguntas, mas a criatura parecia debochar dela ironizando sua inocência numa escrachada gargalhada que a assustou no início. Desprendendo-se a criatura caiu sobre os pés, tão ágil quanto qualquer felino. Com as mãos nos bolsos a fitava, sempre rindo, os olhos castanhos sem brilho, reflexo, estranhamente sem vida. As roupas de uma outra época, quem sabe de um cavalheiro inglês do século XVIII.
– Quem é o nosso pai? Sabe, os humanos se perguntam de onde vieram, quem os fez. Quem os criou. Eles acreditam num Deus, um criador. Mas tem que haver um? E se tudo for bem mais simples? Ficariam desapontados? E se não houver um criador? E se o acaso e o caos forem as respostas? O que eu sei é o que eu sinto e nada mais. Eu tenho um coração que não pulsa. O sangue que circula pelo meu corpo nunca é o meu, só o sangue das minhas vítimas eu tenho o deleite de sentir escorrer quente por alguns segundos. É como viver de novo, mas depois estou morto, não dura muito. Eu sou escravo de algo bem menos nobre que o tempo. Sou escravo do apetite e da fome, do sangue fluído. Seria gratificante saber que sofro de uma doença e que a morte poderia me dar fim. Mas uma estaca não pode perfurar um coração morto. Um facão não pode decepar uma cabeça que já não responde mais a um cérebro.
Minha vida me foi tirada há muito tempo. Há mais de 300 anos eu vivo das vítimas da minha condição de parasita. Sou um monstro que perambulo sem nenhum objetivo. Mas quando eu te conheci achei que minha dor poderia ser partilhada, ou aplacada de alguma forma. Eu sonhava com você, entrava em sua mente e sentia que você estava tentando entrar na minha. Você é forte. Tão jovem ainda e determinada. A criatura passava a mão em seus cabelos e ela não tinha medo. Já não tinha o aspecto grotesco de um animal, mas de uma pessoa, tão humano quanto qualquer um.
– E como isso para? Tem que ter um fim. Não morremos?
– Acredite em mim. Você não vai querer morrer. Um dia na Espanha eu busquei a morte. Pedi para que um escravo me acorrentasse e fugisse. Fiquei sozinho na torre de um castelo abandonado, do qual um dia eu fui dono e senhor de muitos. Eu uivava, implorava, sacudia as correntes e lutava com todas as forças. A sede de sangue te consome e te torna um animal capaz de tudo. Pior que um viciado. Sente a vida aos poucos o deixar. Uma dor lancinante te devora e você sente tudo se deteriorar. Os músculos se rompem, os ossos enfraquecem e se partem. A pele descama e você parece se dissolver como se jogassem soda caustica. Fiquei sem forças e num átimo, como último recurso consegui partir as correntes e fiz o que só um vampiro desesperado pode fazer. A coisa mais odiosa, repugnante e desonrosa de todas. Eu tomei o sangue de um animal que cacei na floresta. Um gato do mato. Só serviu para restituir os tecidos e os outros órgãos e me dar forças para poder caçar sangue humano, porque claro, se ficasse nessas condições sem sangue humano ainda poderia morrer, era só questão de tempo.
Decidi neste dia que a vida faria mais sentido se fosse atrás de seres como eu. Também queria respostas assim como você e também não as encontrei. Você quer vir comigo? – Dargo ofereceu sua mão e Vanessa hesitava. Ela tinha uma vida e era mais do que aquilo ali. Tudo era pequeno, ela sentia-se grande demais para caber em qualquer limite. Ao tocarem-se foi como o sol os iluminando em meio ao nevoeiro da noite. Dargo transformara-se num verdadeiro príncipe de contos de fadas, tão bonito e másculo, a perfeição dos homens num homem. Ela da mesma forma renovou-se como a flor desabrochada que torna a ser botão.
Em rajadas violentíssimas e aceleradas de tempo ela viu na sua frente, como numa visão, seu futuro. Todos os lugares que viajaria, pessoas que conheceria e tudo que passaria em jornadas incontáveis de tempo. Então entendeu que não deveria negar sua atual condição e todas as noites ao lado de Dargo, ela começaria a viver suas aventuras.
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Vanessa acordou sentindo-se mal. Seu estomago revirava-se como roupa suja dentro de um balaio e dor de cabeça, tontura, tudo de uma vez. Amanhecera chovendo e o sábado começava desanimador para ela. Parecia que até o ar era insalubre e doce, uma sensação insuportável. Era como se o que crescia em seu interior começasse a brigar com o que a rodeava. Um conflito de dentro para fora e aumentava de forma colossal. Correu para o banheiro a tempo para o infalível vomito só manchar a água e a porcelana branca do vazo em jorros ferozes. Quando finalmente havia despejado tudo, ela sentiu-se fraca e desmaiou. Seu corpo no chão do banheiro parecia como uma pintura surrealista ou um corpo atropelado numa calçada. A cabeça de lado, um braço para cima, o outro pra baixo, as pernas cruzadas, o cabelo que escorria pela cara lambuzado de vomito. Assim ela permaneceu sem que ninguém na casa acordasse. Apenas o seu gato, que lambendo parte do vomito em seu rosto lhe agraciava e parecia lhe devolver um pouco o ânimo. E ainda assim impassível como presa num sonho, só mexia a língua e gemia baixo, como se tentasse sentir um gosto e não era o vomito do qual estava encharcada e sim um gosto que o sonho que provavelmente estava tendo a sugeria. Era o gosto do sangue que escorria da parede suja no canto. Um pequeno quarto com poucos móveis, uma cama de ferro, dessas antigas com colchão de mola, um armário na parede oposta à cama e uma mesinha que sustentava um ventilador ligado. O sangue derramava-se rapidamente e com sua densidade própria ia inundando todo o quarto. Vanessa lambia o vinho cristão com tanta saciedade que sentia todos os sentidos do corpo potencialmente vivos, deliciando-se naquele banquete. Por onde o sangue fluía com sua força mágica ela se conduzia, rastejando como um animal sobre patas. Até ajoelhar-se e juntar as mãos mantendo tanto sangue quanto fosse capaz de beber. O liquido espumava pela sua boca como lava fervente da boca de um vulcão, nem um lobo devorando sua presa ou coisa que o valha como comparação faria sequer sombra à visão aterradora desta Vanessa do sonho. Mas aí que tudo começou a fica ainda mais estranho, quando seu corpo começou a se desfragmentar e pedaços simplesmente iam desaparecendo de forma randômica, foi quando percebeu, pois que não tinha notado ainda o quadro na parede, apenas com a moldura e o vidro, mas que não tinha retrato, que este quadro passava imediatamente após uma parte sua desaparecida, a formar sua imagem nele, só que a imagem da Vanessa humana e não a criatura monstruosa do sonho.
Eis que terminada a transposição dela para o retrato percebia-se o ar carregado de dor e choro, suspiros e reclamações.
Vanessa, na forma incorpórea, chorava sua condição bestial ao se contemplar no retrato, tão bonita e jovem. Ela sabia que continuaria para sempre bonita e jovem, mas sabia também que o preço disso era alto demais. E sentindo ainda a dor viva e lancinante na carne, nos ossos, que ela acordou e de forma inumana, antinatural, curvou seu corpo como um arco de flecha, sem levantar as pernas do chão suspendia seu tronco e sentando-se abriu os olhos assustada, suando, fedendo, olhou tudo em volta, nada diferente, era a sua casa, nenhuma semelhança com seu sonho, isso era um alívio. Escutou passos indo na sua direção, correu, trancou a porta do banheiro, despiu-se e entrou no chuveiro.
A água quente relaxava. Ficaria ali só deixando a água cair e seus pensamentos fluírem. Até lembrar da maldição que caíra sobre ela e que abraçara mesmo sabendo das consequências. Até sentir, como uma porta batendo na cara, que atos têm consequências. A porta que fechou para sempre era da sua própria vida como ela conhecia, a de sua vida natural.
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Era constrangedor o que o sol fazia com suas habilidades durante o dia. Não poder desfrutar de nenhum dos dons de sua condição de andarilho das trevas deixava-a um tanto frustrada. Mas talvez tivesse uma razão para isso, ela pensava. Quem sabe assim ela não perdesse definitivamente sua raiz humana e pudesse conviver com as pessoas e até fingir levar uma vida normal. Ela não achava isso ruim como um todo, só que às vezes era cansativo.
As coisas de uma mortal tornavam-se mortalmente tediosas e por isso o dia se arrastava e tudo parecia menor, sem importância, o que em algum aspecto tornava sua relação com os mortais uma relação de amor e de ódio. Mas a noite chegou enfim e ela tinha dormido boa parte do dia, o que causava uma eletricidade vertiginosa que corria em seu sangue, como se tivesse acabado de se alimentar.
Chamou um uber e enquanto esperava na sala, espiando pela janela, conversava pelo celular com sua amiga Beatriz. A ansiedade e as expectativas de uma jovem de 19 anos pareciam finalmente florescer nela e essa noite ela sabia, viveria o melhor dos seus dois mundos.
Já no uber uma aleatória experimentação de sensações. Tudo se movendo mais rápido do que o normal. As luzes, o carro, sentia os seus sentidos mais aguçados. Parecia um carrossel enlouquecido. Mas aí tudo cessou e ela de repente focou sua atenção no motorista e pediu para que ele parasse ali mesmo. Naturalmente que Matias, no alto de sua experiência com passageiros malucos não cairia no que notoriamente parecia uma cilada. Só que por um motivo que nem mesmo ele pôde entender ou controlar, simplesmente aceitou e encostou o carro. Passavam por uma região deserta, cercada de mato e a estrada era de chão. A iluminação da rua era precária, mas ele, Matias, parecia tão indiferente ao perigo a que se sujeitava que ansiava empolgado a jovem Vanessa investir. Os salientes seios da jovem eram para ele um delicioso banquete, como frutas frescas ou o mais apetitoso e tenro pedaço de carne. Sua cara era patética, a boca entreaberta, babando sobre ela com aqueles olhos atentos de velho lobo.
Vanessa mordia os lábios e dançava sentada sobre ele. Ziguezagueava como uma cobra, a cabeça e o pescoço, a cintura e o tronco, indo em direções contrárias uns em relação aos outros. As mãos cobriam os seios e depois se encontravam entre suas pernas e ao levantar a cabeça agora já estava transformada. Os caninos, duas presas afiadas e brilhantes, os estranhos grunhidos, o urro, como um urso, os olhos opacos, como se fossem cobertos por uma fina membrana leitosa e a repentina investida. Pulou sobre ele e enfiou as presas nas carnes do seu pescoço. Uma mordida tão forte e violenta que não permitiu a menor reação. E ela continuava; sugou seu sangue cravando seus dentes em várias partes do seu corpo, como se o esfaqueasse. Lambendo seu peito agora ela buscava todo o sangue que jorrava de sua artéria. Passava a mão no rosto, seu lindo rosto agora transformado de forma tão medonha. Sua rude, feroz feição. Tal qual o lobo faminto banqueteando-se sobre sua presa. Com o sangue espargido na face, de forma grotesca, o caminho dos dedos marcados como lembretes medonhos de todo horror.
Agora já o corpo morto e o sangue frio não mais poderiam nutri-la, então como um animal ela abandonou a carcaça. Sobre o capô do carro ela ainda podia sentir o fresco e revigorante sangue caminhando tão vivo e desbravador, como o rio Nilo seguindo seu curso. Eram tantas sensações, uma inundação de energia, uma vertigem. Parecia não se conter em si mesma, tamanha a força das mudanças que aconteciam. Tudo multiplicado em sua mais bruta forma, quase místico. Como se pudesse fazer contato com o cosmos, a natureza. Sentia a força dos animais, sentia as estações do ano, o calor do sol, o frio das calotas polares, todos os sentidos apurados, tudo além do limite humano. E naquela condição em que se encontrava, fosse em qualquer outra festa ou situação claro, não seria bem recebida, chocaria as pessoas. Mas como desde antes de sair de casa ela sabia o que iria fazer, achou a fantasia perfeita para a festa de helloween da escola. E embora a cara de espanto dos amigos fosse engraçada e todos viessem lhe falar impressionados do realismo da fantasia, ela se divertia e achava curioso poder chocar, sabendo que todos não imaginariam nunca que o que estavam vendo era uma vampira de verdade e não uma fantasia de dia das bruxas.
A festa foi o auge. Ela pode ser a adolescente, mesmo encarnada em vampira. Conseguiu controlar aqueles instintos tão primitivos que gritavam para sair de dentro dela. Conseguiu até mesmo beijar, com suas presas ainda expostas. Vanessa dançava, pulava, ria. Estava viva finalmente. Tão viva na sua forma primitiva, pois sendo vampira, vivia nela ainda mais forte sua parte humana.
Finalmente tinha aprendido talvez a lição mais importante de ser uma andarilha das trevas. Finalmente sentia-se completa.