Um estranho de estranho olhar
“Cometeu um erro na maneira como começou... e a maneira como se começa é como se continua”.
Peter Straub
Alto, magro, de preto e com flores na mão. De longe, parecia um enorme e inexpressivo vulto. De perto era uma figura tenebrosa. O rosto amarrotado de angústia e velhice. Olhos pequenos e vermelhos muito vivos. O que chamava mais a atenção era o buquê que trazia. Destoava completamente de seu traje e seus propósitos.
Deixou em um velho túmulo algumas flores. Elas, um pouco murchas em suas mãos, ganharam vida assim que tocaram a terra. Apesar do nobre gesto o homem fedia a culpa. Caminhava lentamente abrindo o ar a sua volta como um abutre abre um corpo: com gana e método.
A menina via tudo, sentada em um encosto de jazigo. Conseguia enxergar a essência das coisas. Via o vulto de preto se aproximando, o som de seus passos e a poeira levantada pelas botas rústicas. As outras pessoas ao redor viam apenas um redemoinho e o sopro morno do vento novembrino. Enxergavam apenas o que queriam, pois estavam com as cabeças repletas de saudades e remorsos, mas sabiam que havia algo de podre no ar.
Há muito tempo a mãe havia lhe dito que ela era diferente. Acreditou naquelas palavras, afinal não tinha mais em quê acreditar. A mãe estava certa e há muito estava morta. A mãe a amava e também amava outro. Como tinha a certeza de ser a preferida da genitora, não procurou concorrer com o outro que veio para ficar. E ficou. Ela teve que sair. Saiu pelo mundo, saiu de cena e voltou quando já era tarde demais.
A presença quente e viva do estranho homem adentrou seu espaço de compreensão. Ele ficou absorto, como se estivesse esperando o fim do mundo. Olhava para frente e nada via. Seus olhos tão acostumados à maldade estavam úmidos. Úmidos e maus. Algumas lágrimas pingaram em seu terno e logo foram absorvidas pelo tecido grosso e sujo. Pigarreou, olhou para os lados e cuspiu sobre a campa.
A menina sentia no mais profundo do ser um sentimento sem nome e ruim. Sentiu tanto e tão profundamente que acabou descobrindo. Então, rápida e incontrolavelmente avançou para o homem. Ele sobressaltou-se e estacou como se puxado por uma corda, uma força. Lançou as flores sobre o túmulo e saiu quase correndo. Segurava o chapéu e o estômago que formigava. De tempos era a primeira vez que a via.
A menina ainda o perseguiu por alguns metros, mas parou ao lado da sepultura da mãe. As flores, como sempre, brilhavam no deserto humano. Ela retornou para o local onde estivera antes. Passou por pessoas que choravam seus mortos, passou por outros que não choravam, mas se ressentiam da morte em vida.
Recostou-se ao jazigo. Não precisava descansar, nem culpar as flores pela maldade do homem. Se se recostava ali era porque podia ver a sua frente o túmulo de sua mãe e o seu próprio túmulo. Esperaria até que ela resolvesse, de onde estivesse, que era hora de sacudir o velho esqueleto para se vingar de certo florista. Talvez isso acontecesse, talvez não. Que importa, pensou a garota, um dia ele virá até nós.