Os campos também possuem Alma
Os campos também possuem alma.
Ano 2000. Interior de Santa Catarina. Os fazendeiros locais não viam com bons olhos aquela família, detentora de um grande latifúndio onde se cultivava cevada, arroz e uva. Ela pouco se relacionava com o restante dos produtores, exceto quando era convidada aos festejos, quando raramente marcavam presença. Era uma família simpática e acolhedora, mas pouco sociável. A vida deles resumia-se a cultivar sua plantação e a vendê-la ao exterior. A cevada, o arroz e as uvas eram exportadas à Alemanha, país de origem dos antepassados da família. O restante da produção era distribuída aos pobres, numa grande festa anual, no mês de maio, que antecedia ao primeiro solstício do ano. Nenhum produtor local era convidado à obra de caridade, apenas os empregados, que também recebiam presentes. Nos pacotes de arroz, cevada e uva havia uma serpente enrolada a uma cruz Ankh. Era a marca da empresa, da família e da religião secreta(de mistério) que, por tradição, a família seguia há milênios. Vieram ao Brasil nos anos 30, fugindo da perseguição nazista que assolava a Alemanha. Como eram ricos e influentes, E NÃO ERAM JUDEUS, não tiveram problemas em sair do país. Chegando ao Brasil, compraram hectares de terras a preços de banana. Na época, o Brasil passava por uma grave crise econômica. Vários produtores haviam falido e estavam vendendo suas terras. Aqui a família se estabeleceu e seus negócios prosperaram. Eram uma das famílias mais bem sucedidas no ramo de exportação agrícola.
Vestiam-se como ciganas, e nos solstícios anuais( junho e dezembro) costumavam chegar caravanas de ônibus à fazenda para os rituais de sua religião. O que espantava para alguns eram as roupas: vestiam-se de branco e usavam pulseiras de prata em forma de serpente. Na testa, ostentavam uma Cruz Ankh, improvisada com óleo de carvão.
O único com quem a família mantinha uma certa intimidade era com um velho comunista, filiado a um partido nanico e de pouca expressão social. O velho candidatara-se a vereador da cidade várias vezes. Seus votos nunca foram maiores que o de sua família. Era amigo de todos, não tinha inimigos, Era também um fazendeiro bem sucedido. Certa vez, curioso com o comportamento da família, perguntou à decana da casa:
- Por que vocês são tão arredios com o restante dos moradores daqui?
- Você acha, Mênfil? não achamos. Nossa família é composta basicamente por mulheres. Cada uma se ocupa de um setor nos negócios. Ninguém aqui tem tempo de andar e passear nas fazendas ou nas casas alheias. Às vezes fazemos umas visitas ao senhor, porque temos uma história em comum. Afinal, fugiu da Alemanha com nossa bisavó. E está aqui desde estão. E o que temos em comum com essa gente daqui? nada. Só compartilhamos a mesma cidade. Pagamos nossos impostos, geramos emprego e fazemos obras de caridade. E isso já basta. O prefeito e alguns vereadores nos adoram. Claro, somos mulheres bonitas , mas também porque enchemos os cofres da prefeitura, diferente de muitos sonegadores que nos rodeiam.
- Compreendo. Mas há algo que me intriga mais do que essa aversão a seus vizinhos. Na distribuição gratuita de sua produção, os empregados das outras fazendas sempre são convidados, os patrões não. Conversei com alguns deles, e eles realmente não gostam disso, nem de vocês, muito menos de pessoas estranhas que anualmente participam de seus festejos nas plantações. Eles realmente se sentem incomodados.
- Eles que se preocupem com a vida deles e que nos deixem em paz.
- Milena, digo isso porque você sabe a origem deles. Eles são descendentes daqueles que nos perseguiram no passado. Então tomem cuidado com essa gente. Eles são capazes de tudo para destruir um desafeto ou um concorrente.
- Por isso não nos relacionamos com eles. Eles não podem jamais saber quem somos , de onde viemos, por que viemos, o que cultuamos e o que fazemos nos nossos festejos.
- Seria interessante vocês se aproximarem mais, serem amistosas sem confessar suas crenças. Uma aproximação para evitar antipatias.
- Jamais. Não suportaria dois minutos conversando com eles.
- Você sabia que a fazenda Germs é de uma antiga família tradicional do Sul dos Estados Unidos? conta-se que depois da guerra americana, eles montaram um grupo cujos membros usavam capuzes e queimavam as casas dos negros. Não me surpreenderia se ainda o fizessem.
- Você é muito ingênuo ou se faz de lerdo. Todos sabem que essa família racista está por trás da chacina da família haitiana que migrou para cá, uns dez anos atrás. Isso porque não toleravam, além da cor da pele deles, a religião que praticavam. Sabia que eles tocavam Vodun nos dias de colheita?
- Sim. Mas nada foi provado contra os Germs. Eles foram inocentados.
- Lembra-se de como eles morreram, Menfil?
- Queimados em cruzes invertidas. E toda sua propriedade queimada, da casa até à ultima planta de cevada. Triste.
- E sabe por que isso aconteceu?
- Não sei.
- Porque falavam demais. Acreditavam na bondade das pessoas. Caíram numa emboscada. Os Germs pertenciam àquele grupo racista KLU KLUX KLAN. E você quer que nos aproximemos de gente assim? o outro fazendeiro, cuja família tem fama de estupradores, tem suásticas nazistas nos móveis da casa. Eu os vi quando lá jantei pela única e última vez.
- E quando será a festa da caridade?
- Amanhã. A partir das 21h, no campo aberto de cevada, dentro do pentagrama.
- Vocês continuam praticando aqueles rituais misteriosos nos campos? não acham que é meio "fora de época" esse besteirol todo?
- O senhor ainda é comunista?
- Sim, firme e forte.
- Não acha que está meio "fora de época" essa bobagem?
- Desculpe, Milena, não quis ofender.
- Não ofendeu. Aliás, está convidado para os festejos de amanhã. Todos os trabalhadores foram convidados e nossas irmãs espalhadas pelo país participarão também. Será uma grande festa.
- E virão como nos solstícios, todas de branco e com a testa marcada?
- Como sempre. Mas não se trata de nenhuma celebração ou ritual. É uma festa. Só haverá uma apresentação antes dos festejos. É a apresentação em homenagem a Dionísio. Só isso. Você virá?
- Sim.
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