Sombra

Nestes dias estive me recordando de coisas muito antigas, quase esquecidas, dos anos da minha mais tenra infância. Era uma época ótima, pois o mundo era interessantíssimo e cheio de inúmeros mistérios. Nutrindo um olhar atento e curioso, cada detalhe era perscrutado minuciosamente, com minha mente pueril buscando respostas às questões que surgiam. Como eu ainda não tinha conhecimento do funcionamento da natureza e das coisas, até mesmo o que era mais simples e corriqueiro me intrigava profundamente, me detendo naquilo que mais chamava a atenção.

Recordo que num dos meus primeiros verões de vida fiquei muito interessado nas sombras. Nas longas tardes no parquinho da creche, eu me detinha a observar o movimento delas alongando-se à frente das árvores e brinquedos conforme o sol percorria a abóbada celeste, e como mantinham um compasso estritamente sincronizado atrás das crianças e das professoras - e, claro, de mim também. Era curiosíssimo como, numas horas do dia, eram mais fortes e delineadas, e noutras, tênues e quase imperceptíveis; isso sem falar nas suas variações de tamanho e comprimento, bem como na reprodução do objeto que as projetavam na direção contrária à da luz, criando mimetismos e ilusões de ótica.

Porém, de tanto reparar, ou, num daqueles acontecimentos que, dizem por aí, revelam-se somente às crianças, minha sombra principiou a se manifestar de formas diferentes às habituais na parte da noite, enquanto eu estava deitado para dormir. Começou de forma sutil, quase um devaneio, mas pude perceber. Foi um processo lento, como se ela, assim como eu, fosse desenvolvendo uma consciência crescente de si e do mundo: primeiramente aparecia daquela forma natural, reproduzindo minha aparência contra a parede. No entanto, conforme as noites iam passando, começava a aparecer em outras partes da parede que não necessariamente estavam na direção oposta da fonte de luz que a criava. Depois, surgia refletida no ar e até desvencilhada de mim, como se fosse um ente próprio.

Embora, como já dito, eu não entendesse plenamente o funcionamento das coisas, aquilo me intrigava porque fugia do que eu já conseguia compreender como sendo algo normal. E, logo cedo, comecei a sentir medo, pois sabia que era um acontecimento inexplicável e ilógico. Havia ocasiões em que a sombra postava-se em frente à luz do abajur que minha mãe deixava ligado e, conforme as noites se passavam e ela ganhava força, chegou ao ponto de obstruir a claridade como se fosse um corpo físico. Isso me apavorava, e não havia noite em que não ocorresse: numa ela estava no chão do quarto; noutra, suspensa no teto; em outra, projetada na parede do meu lado; em mais uma, flutuando acima de mim; na próxima, de pé, ao meu lado... E assim a coisa seguia.

Meus pais perceberam que algo de errado acontecia comigo, pois eu começava e me tornar introvertido e medroso e, toda noite, chorava e relutava em ir para o berço. Mas, como ainda custou um pouco até eu aprender a falar e conseguir explicar o fato de forma compreensível, padeci deste sofrimento sozinho e acuado.

Assim que eles entenderam o que se passava comigo, ficaram agoniados com aquelas agruras. Religiosos que eram, puseram-se a rezar e sempre pediam aos parentes e amigos que intercedessem por mim em suas orações, mas o problema persistia e se agravava, com a sombra começando a movimentar-se e ganhar vida, andando e correndo pelo quarto. Não importa se eu fechasse os olhos ou cobrisse a cabeça, podia sentir seu movimento pelo som de passos e o vento da sua passagem. Não tardou e ela já ameaçava balbuciar sons de palavras, mergulhando-me em pânico.

Sem saber o que fazer, meus pais procuraram aconselhar-se na paróquia do bairro, e o povo de lá os indicou uma benzedeira, que atendeu prontamente ao chamado. Preocupada, ouviu atentamente tudo o que contaram de mim, e veio me ver. Após estudar o caso, ela combinou com eles de, por nove noites, rezarem juntos o rosário no meu quarto, ao lado do berço.

E assim fizeram. Mais uma vez meu olhar curioso teve uma novidade a investigar, que era a daquela senhora, junto de meus pais, a repetir uma série de dizeres ritmados e repetidos, os três de olhos fechados enquanto deslizavam compridos colares de contas entre os dedos. Eu só tinha uma vaga noção do que “rezar” significava, e tentava imitá-los também, pois sabia que tinha alguma coisa a ver com os problemas que enfrentava. Conforme as noites avançavam, a sombra ia ficando cada vez mais fraca e apagada, até que voltou a postar-se em seu lugar normal.

Findada a novena, não mais vivenciei aquela experiência sobrenatural, e tudo voltou ao que era antes. Por fim, acabei me esquecendo daquilo, e só fui relembrar após muito tempo. E, ao relembrar, entendi porque não gosto de sombras até hoje.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 07/06/2018
Reeditado em 07/06/2018
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