A AMA DE LEITE

Se você não desligar agora essa televisão, eu juro que não conto o que aconteceu ontem à noite. E, acredite, você iria gostar de saber. Não vou dizer sequer a que horas ou onde a história se deu; descubra você, se quiser e puder, que faltavam vinte minutos para a meia-noite e Teresa andava na calçada da Avenida de Todos os Santos e... ops, falei demais, mas chega, isso é tudo o que você vai saber se continuar a assistir esse maldito jogo de futebol. Como pode achar mais interessante a semifinal da segunda divisão sul mato-grossense do que a sua esposa passar quase de madrugada em frente ao cemitério enquanto você está de plantão? Se ao menos deixasse de lado um instante a partida – não precisaria de muito tempo, o quanto perderia em uma rápida ida ao banheiro é mais do que suficiente - e olhasse dentro de seu quarto, veria uma Teresa remoçada dando de mamar a uma criança. Como, Teresa e uma criança? Não precisa acreditar em mim, comprove, veja com seus próprios olhos e se pergunte como é possível a uma mulher de cinquenta anos e o útero seco aparecer de repente com um bebê e, pior, amamentá-lo.

Interessou-se? Ora, tem certeza que a derrota do Riopratense para o Atlético de Três Córregos não é mais importante? Prepare-se, pois, que o ocorrido não é para estômagos fracos.

O centro da cidade estava fervilhando de gente, o que se pode esperar de uma sexta-feira em fim de tarde, quando se misturam os que ainda estão a trabalho com os que já chegam para encher as dezenas de bares e casas de má fama. Teresa fora comprar matéria-prima para seu artesanato – pedras de strass, lantejoulas e o que mais encontrasse para ornamentar seus terços – e se perdera no labirinto de ofertas até não ter mais noção do tempo. Quando olhou para o relógio e viu surpresa que os ponteiros apontavam nove horas, deu por terminadas a sua jornada, pegou as sacolas e tomou o caminho do ponto de ônibus. Não tinha pressa de chegar em casa – lembre-se, você estava no hospital, ninguém a esperava –, mas o anoitecer no centro traz consigo uma incrível sensação de insegurança, como se a cada instante pudesse vir um gatuno por trás e levar-lhe a bolsa e as compras. Não via, no entanto, ninguém com aspecto estranho, ainda que os maiores males venham dos rostos mais inofensivos. O primeiro ônibus passou lotado, o motorista nem se dignou a parar; Teresa tampouco entraria, não é de seu agrado atravessar a cidade apertada entre os corpos suados e mal-cheirosos de homens a lhe apertar as carnes. E nem mais um único coletivo sequer passou nos quarenta minutos seguintes. Sua esposa optou por um táxi, custaria mais caro, decerto, mas a deixaria em casa com mais segurança, conforto e decência.

Isso é o que ela pensou.

Que caminho a senhora prefere, perguntou-lhe o taxista, para ela tanto fazia e isso Teresa respondeu. O motorista, pois, pegou a Avenida de Todos os Santos, via expressa entre o centro e o subúrbio. É realmente o caminho mais fácil, mais rápido, sobretudo àquela hora, dez da noite, e os outros acessos tão cheios de carro e gente; mas não seria jamais a primeira escolha de Teresa, principalmente por contornar o cemitério. Assim que visualizou ao longe a casa dos mortos, dois quarteirões adiante, a mulher fez o sinal da cruz, abaixou a cabeça e rezou cada uma das orações que conhecia.

Nem todos os santos puderam evitar. Uma luz se acendeu no painel, e o motorista chiou qualquer coisa entre os dentes, Droga de termômetro, mas vai dar. Não deu. O carro deu um tranco, e mais outro, as sacolas caíram do colo de Teresa e as continhas se esparramaram pelo chão, o motor soltou um uivo agudo para a lua e morreu. O motorista saiu do carro, abriu o capô, a quantidade de fumaça era má notícia. Teresa não entendia o que estava acontecendo, e nem adiantaria que o homem perdesse tempo em lhe explicar. Daqui eu vou andando, disse, depois de esperar por mais de uma hora que o motorista tentasse reparar o defeito, ou não tinha seguro ou era orgulhoso o bastante para julgar-se capaz de resolver tudo sozinho. O lugar era amedrontador, mas Teresa não estava longe de casa. Pegou a carteira, pagou o moço, Tem certeza, ele ainda tentou, mais pelo medo de ficar sozinho que pela possibilidade de suceder alguma coisa à freguesa, Sim, preciso ir para casa. Se essa era sua última palavra, não havia mais o que fazer.

Teresa seguiu firme pela calçada, tentando olhar apenas para a frente. Ao seu lado esquerdo, a avenida agora vazia; à direita, as aleias mal iluminadas do cemitério, a lua cheia a fazer as vezes dos postes inúteis; atrás, o táxi soltando fumaça pelas ventas; e adiante um canteiro de vegetação cerrada de onde um gato se desfazia em miados desesperados. Aproximou-se ainda mais de onde vinha o som, estava cada vez mais alto, mais agudo, mais angustiado. E, para seu espanto, quando ia deixando o canteiro para trás, olhou para o meio da folhagem e viu, entre os espinhos das coroas de Cristo, não um gato, mas um bebê recém-nascido.

Teresa não é especialista em crianças, longe disso, mas se nenhuma das quatro gravidezes chegou a termo, criou bem criado um par de sobrinhos. Pegou a criança com cuidado de evitar os espinhos e o choro cessou. Só por um milagre não havia arranhões ou escoriações. Fosse realmente um gato, teria perdido todas as sete vidas, pensou a mulher, e se sentiu culpada por ter tido medo, quando está evidente a providência divina em atrasá-la e levá-la até aquela calçada.

É uma menina. Essa mesma menina a quem Teresa agora amamenta em seu quarto. Não vai se levantar para ver? Que falta de curiosidade, santo homem! Continuemos, pois.

A menina estava nua, sem marcas de nascença ou de maus tratos. Teresa pensou se seria melhor entregá-la na igreja ou na polícia – não lhe passou pela cabeça deixá-la de volta no canteiro espinhoso –, mas o instinto materno falou mais alto. Levou-a consigo, cuidaria dela como sua, e no caminho para casa traçou planos que chegavam à universidade. Os passos agora eram mais precisos do que nunca. Não podia errar: uma outra vida dependia de que ela não falhasse.

Não foi o medo de errar, porém, que a fez parar pouco antes de chegar ao portão, e sim a dor que sentiu no peito, uma fisgada lancinante nas duas mamas. Ai, a interjeição saiu como um grito prolongado e rouco, obrigando-a a se sentar no chão. Levantou-se logo, estavam sós, não podia se dar ao luxo de parar agora, por mais intensa que fosse a dor. Apertou o tórax com força, talvez isso surtisse algum efeito; e então notou a umidade no sutiã, o líquido saindo pelos poros, o alimento vindo de suas entranhas para aquela vida que acabara de vir ao mundo. Não esperou o conforto do lar para acomodar para o lado o sutiã e colocar a filha – o que a impediria de chamar-lhe filha, agora que até leite tinha? – para mamar.

O medo havia passado, estava tão feliz quanto cansada, e quando viu sua cama não quis esperar por mais nada. Arrumou a menina entre almofadas e desmaiou de sono, trinta minutos depois da meia-noite.

Não reparou Teresa – dormia o sono pesado que buscou durante muitas noites – quando o serzinho ao seu lado começou a se mexer. A menina se arrastou pelo lençol, atravessou escarpas de travesseiros e veio se meter por sob o pijama da mãe, buscando-lhe o seio. Quem a visse não a suporia recém-nascida, porque de fato não parecia: movimentava-se com a desenvoltura de uma criança de uns nove meses. O bebê, pois, abocanhou o seio e pôs-se a mamar; a mãe, desfalecida, nem ao menos sentiu. E assim passaram o resto da noite.

Sua esposa acordou assustada – dormira com a criança afastada, como pode ter se aproximado durante o sono? –, e acabou chegando à conclusão de que fora ela a rolar na cama em direção à filha. Tirou displicentemente a menina do seio e foi ao banheiro para se afeitar. Assustou-se uma segunda vez, tinha pontos de sangue no mamilo e um riacho rubro escorrendo em direção ao outro lado. Como, se a criança ainda não tem dentes? Em seu rosto ao espelho não se mostravam os cinquenta anos: desapareceram as rugas, as pálpebras se elevaram, as linhas de expressão não se contavam tão freqüentes. Uma noite a devolvera a como fora no dia de seu casamento: jovem e feliz. Voltou ao quarto e ali encontrou a criança, deitada na cama, o rosto voltado para o alto e o sangue escorrendo pelos cantos da boca. Procurou por dentes, realmente não os tinha.

Temos todos a tendência de atribuir causa e efeito a ocorrências simultâneas, Teresa não é diferente, e por isso julgou seu rejuvenescimento ao sangue sugado pela menina. Tomou-a mais uma vez em seu colo, ofereceu-lhe o peito e a filha não se fez de rogada. Teresa pôde confirmar o que as evidências sugeriam: não era leite o que a menina sugava, e sim sangue; o espelho tampouco refletia a mulher de trinta anos, tinha vinte e um, dezenove, aparecia como nas fotos do científico, um tanto mais pálida do que então.

Está surpreso? Nem em vinte anos você conhece tão bem a sua esposa, não é? Não sabe dessa vaidade sufocada, do medo da idade e do passar do tempo. Como poderia saber, se nunca lhe deu mais atenção do que ao campeonato acreano de peteca? Grudado a essa televisão, não acompanhou quando as gestações foram interrompidas, quando com o último sangue menstrual se foi a chance de ser mãe. Vá lá agora, entre no quarto, converse com sua esposa – mas cuidado, você pode não a reconhecer! Você bate à porta, entra de mansinho e procura Teresa. Não está na cama. O silêncio no quarto é absoluto. Nada. Procurando bem, sim, você acha as manchas de sangue no lençol que confirmam a minha história. Segue as gotas vermelhas pelo chão, em direção ao banheiro, terminam diante da porta fechada. Teresa, você chama, meu amor, bate à porta, está aí dentro? Nenhuma resposta. O trinco cede com o uso de força, seu coração está acelerado, a maçaneta desliza pelos dedos suados, e o que vê é abominável: deitada na banheira está uma criança envolta em roupas largas, o tórax exposto de cujos mamilos vertem rios radiais de sangue. Teresa? Você corre para abraçá-la, para tê-la em seus braços uma última vez, mas é tarde.

A porta bate. Às suas costas você ouve uma soluçante voz infantil, Papai, o que foi que eu fiz.