Traçando o Caminho
O homem chegou ao hotel, e pediu:
— O quarto dois está livre? Acostumei-me a ele. Já fui hóspede aqui, faz tempo...
— Os patrões não gostam que falemos do passado. Mau agouro — com uma risadinha sarcástica, o recepcionista apontou as fichas para assinatura e entregou chaves e controle da tevê.
O quarto é disforme. Não tenho matemática suficiente para explicá-lo, embora seja simples, muito simples, porém muito disforme. Termina em ponta para o lado da rua onde está a janela. Dela vejo uma parte da cidade, por cima, sem raízes, pelas frondes. A sensação de vulnerabilidade e desequilíbrio crescia, enquanto Nestor se perdia no tempo,sentindo-se exposto aos tetos multiplicados, às últimas ramificações das árvores.
Tenho que me deter ao interior do quarto e depois passar à janela, de paisagem circunscrita, mas que me permite maiores divagações e sem perigo, em segurança. O assoalho tem 31 tábuas, ou trinta, se não contar a última que se apresenta visível apenas pela metade. Talvez fosse melhor dizer 29, porque a primeira também está semi-escondida: acho que o melhor mesmo é restringir-me a uma margem de segurança. de 27 a 32 tábuas. O forro, a contar das menores, tem 59 tábuas, também aqui melhor dizer de 55 a 62 tábuas. Não era fácil a tarefa de contar as tábuas do forro. A vista se embaralhava, a preocupação de acertar levava a erro.
Nestor sentia um medo antigo: é verdade que ainda não vi nenhuma traça por aqui, mas, por precaução, à hora de dormir, vou arredar a minha cama. Mas... o quarto ia ficando numa obscuridade que favorecia a proliferação delas. Ou eram as telhas coloniais? Nestor sempre ligava a existência das traças às telhas coloniais, às ripas de macaúba e aos reboques balofos.
Bem sobre a cabeceira de minha cama, (agora tenho uma cama boa), no forro, há um buraco de onde traças saíam. Começaram a roer as esquadrias da janela, ali no quarto segundo. Nestor não sabia como apareceram. Talvez viessem, ainda filhotes, escondidos nas malas. Foi o homem apoiar-se a uma das janelas e sentir que a madeira se decompunha, esfarinhada. Traças estavam por baixo, gordas, correriam molemente ante a ameaça do inseticida. Já começava a noite, a ouvir o barulho delas na madeira: roque, roque, roque; a janela mal se sustentava e sentia medo de que ela caísse (dava para a cama).
O quarto segundo fora o quarto dos piolhos, que já não apareciam mais. As traças instalaram ali o seu reino absoluto. Se bem que... Nestor percebera que elas o acompanhariam para qualquer lugar a que fosse: escondidas nos livros, enfiadas nos bolsos. Ele encontrava as marcas delas sobre as escovas, cadernos, roupas de cama. Devia ter algum fluido especial que atraía as traças e procurou-o em si diante do espelho. Só o rosto vincado na superfície fria; só o susto dos olhos; só o ar de criança envelhecida... Quem sou eu e o que significo com esta multidão de insetos? O espelho lhe devolvia a pergunta e o ruído. Espelho? Havia um espelho na parede!?
As traças, discretas e fugidias, fugiam da luz... Qualquer coisa no sossego da sombra lhes fazia bem. Era no escuro que aqueles olhos compostos e reduzidos se sentiam em casa. Sempre que elas abrem os livros onde me escondo, fujo, e se por algum motivo me apanham, ficam cobertas de restos das escamas rubras que revestem todo o meu corpo.
E o ruído dos monstrinhos ia crescendo: roque, roque, roque, roque, enchendo o quarto, lascas de madeira iam caindo secas da janela, do forro. O chão estava cheio de detritos e as traças já nem se escondiam, passeavam abertamente, sabiam que a capacidade de luta estava perdida, o homem não era mais uma ameaça. Ele sentia os primeiros suores, ligeiros ainda, mas já espessos, carregados de humores internos, sucos quase mórbidos.
Às vezes, Nestor se via andarilho, as estradas, o pó, o sereno. Sem lágrimas, estalando a cara. Ora se via em desespero, fechado no quarto, fechado no mundo, na iminência das traças. Eram alguns momentos de iIluminação e nestes exatos momentos parte da consciência era retomada. Estas visões aconteceram poucas, pouquíssimas vezes, mas foram as tão só e poucas vezes em que se via acordado, de olhos abertos. O resto do tempo passava em pesadas divagações. A poeira amarelecia tudo e Nestor percebia um leve torpor por todo o corpo. Que sabia ele das traças, para além das tênues memórias? Memórias que, não sendo de nojo ou repugnância, como as que tinha das baratas, ou mesmo de alegria, como as dos bichos-de-conta, ainda assim existiam. Apesar de não impressionantes, as memórias desses insetos estavam impregnadas nele.
Angústia e suor: uma hora da manhã; suor e angústia: duas horas; miríades na cabeça, coração disparado, boca seca, olhos ardendo; voltas e voltas e mais voltas na cama, dentes rasgando lençóis, baba e raiva e gemido; sonho, pesadelo e vigília, bater de asas. Mudava de posições, cansaço. Três horas: um quase desmaiar agônico sobressaltado, a bexiga ardendo.
Por que já dormira naquele quarto? Não aquela noite... Outras, muitas. Nestor adorava os corpos femininos, vê-los mortalmente duros, as vestes ensanguentadas, os pés hirtos, os olhos fechados. Farejava desmaios, pragas, gritos e desconsolações. O medo atraente, mórbido, escuro. Fiz bem a muita gente que não deixei se aproximar de mim. Ficaram me odiando, mas salvas de mim. Para sempre. Houve pessoas que eu salvei e depois tornei a atrair, ficaram mais destruídas que nunca. Outras estiveram em minha órbita querendo ser destruídas, como você, Gina. Como você!
Pesadelos? Fatos? Cascas de desejos quebrados voavam pesadas. E o vermelho boiava e os olvidos se batiam em queixas nas cascas dos desejos partidos. E lá, nenhuma cor se definia em verdade e uma morte se perdia na outra, sem término. Tudo boiando, em escalas, camadas, filigranas... Havia uma mulher chorando debruçada, inclinada, a cabeça afundada nos joelhos. O choro se confundia ao vento, ao lamento; o vento secava as lágrimas, seco soldava o sal na face, só edificada a mulher em pranto... Esvoaçavam os cabelos abandonados e os fios no vento se jogavam:
— Você é mamãe, não é?
— Sou. Pois é...
— Será minha primeira! — A primeira no campo mágico de destruição, sem esforço, ao nível do natural. Outros vultos ficaram no ímpeto de morte; e o vento arrastou tudo, até o sal dos rostos. A irmã, a prima, Cris, Rose, Tereza, Marta, Eva... Quantas foram? Um longo choro silencioso, para sempre estátuas ficadas na imensidão varrida pelo vento.
Matei, com um longo punhal, a minha décima terceira amada; a lâmina ensanguecida resta silente no fundo do rio. Ou na caixa de provas da polícia? Foram tombando uma a uma; doces manchas em queda. Fui levando as mortes nas mãos, a morte tão bonita! Agora os cadáveres afloraram dos túmulos esboroando terrões e vêm em nuvem para a desforra? Quem virá? Quem se levantará do abismo para corroer carnes e ossos?
Mas volto ao quarto, mais precisamente ao buraco de forro, sobre a minha cama, à direita, em cima de minha cabeça. Por ali saíam as traças. Nunca soube exatamente como elas eram. Julgava-as seres brandos e brilhantes que se alimentavam das possíveis substâncias pairantes no ar; daí sua quase transparência, o corpo alvo, os vôos lentos e planantes. Eu os entrevia nas horas de modorra, laminados, esvoaçantes, na região mórbida do ante-sono.
Á medida em que Nestor entrava no território do sono, as traças iam se adensando, tornavam-se grossas e hediondas. Muitas vezes despencavam-se do teto, introduziam-se por baixo do pijama, resvalando-lhe pelas costas. Ele acordava em pânico. Ainda podia perceber o movimento delas escapando-se pelos lençóis e, nas costas, a marca gosmenta da baba branca cristalizada em luzentes estrias, como marcas deixadas por um caracol (a lembrança dos caracóis ao sol lhe tirava um pouco do nojo). A vontade era de tomar banho imediatamente, esfregar com bucha e sabão até o sangue, trocar as roupas de cama, borrifar perfume pelo quarto. Ele quase ia ao vômito. Podia ver por dentro delas: a escura massa decomposta de que eram feitas, em convulsão; e os olhos, os grandes olhos, os olhos humanos do bicho, olhos de gente, estatelados e mansos, mas gosmentos, borbulhantes.
O homem macetou uma delas com as costas, sobre a cama. O lençol se sujou de fezes vivas, o asco lhe subiu à garganta. Fezes vivas e uma cabeça de olhos esbugalhados... sentir o contato mole com o inseto lhe arrepiava até o íntimo. Vou matá-las! parecia-me isto uma decisão inabalável. Uma verdade irreversível que me povoava inteiro. O primeiro problema se interpôs, quase angústia: com quê? Não possuía mais o meu punhal, o contato repelente nauseava e na morte dos bichos não havia amor e magia como quando as mulheres morriam.
A janela do quarto segundo ruiu. Era definitivo. A madeira dela como que se volatizou. As traças corriam famintas. Durmo aos sobressaltos, entre sustos e assustando-me com a realidade. As traças levaram muito longe a sua vingança. Eu disse vingança? A palavra me escapou. É verdade que não sei definir nem imprecisamente a minha culpa. Mas elas vingam, estão vingando, vão vingar...
Nestor já sentia o tronco tomado pelas traças . O ruído surdo do trabalho rítmico, contínuo... Sentiu que perdera alguns dedos, quase sem dor, quase sem sustos. Percebeu que o estavam devorando: um dedo sim, outro não. Estranho os meus pés; mas os dedos perdidos não me fazem falta; como os cabelos de minhas sobrancelhas, e os cílios e o septo que foi devorado quase em carícia, em cócegas, em afagos. Também não me assustaria mais se me afundar nas tábuas carcomidas do assoalho. Ouço o rumor surdo e brando. Aumentaram. São massa potente e inumerável, firmes em sua tarefa, duras, inexoráveis.
A tarefa de respirar se tornou fácil, dois buracos ao nível do rosto. É verdade que meu semblante é estranho: sem nariz, sem lábios, sem sobrancelhas... Tornei-me irresistivelmente simpático sem lábios, estou rindo sempre, tão desgraçado, mas sei sorrir. A miséria é assim. Nestor se ia, consumido, para o ventre dos insetos. Perpassava a intervalos o hálito do seu cadáver decomposto, sentia as entranhas picadas, o vazar das fezes. As traças se mostravam sujas, escorregadias, exalando mau cheiro, roíam-no afobadas, rápidas, com pressa.
Não ofereci resistência e elas foram me tirando a pele. Cortavam longitudinalmente os braços, as pernas, a barriga e me puxavam a pele de uma vez como se estivessem descascando uma cobra ou limpando uma rã. Eu podia ver, sem dor nem espanto, os meus músculos repuxando, articulações, água e sangue.
Libertado da pele, fiquei olhando, por algum tempo, meu couro cabeludo dependurado na beira da cama. Aquilo me recobrira. . . estava pingando sangue. Eu distinguia bem agora, e as traças começavam a engolir as minhas carnes, em grandes bocados — à maneira das cobras engolirem os sapos, ou como as máquinas que moem carne? Não, a primeira imagem explica melhor a coisa. Elas iam me subindo pelo corpo em tarefa devastadora, parece que o meu eu ia ficando cada vez menor, pequenino, desaparecendo, quase uma bolinha de gude, minúscula, obscurecida. E foi o que eu fiquei. Cansadas de comer, as traças roíam por obrigação os restos de um corpo em abandono. Arrotavam de cheias e defecam.
— Estou procurando João Nestor. Ele deixou este endereço nos arquivos e deveria ter comparecido ontem à delegacia. — explicou o agente da condicional, apresentando a identidade.
— Está aqui sim. No quarto que, praticamente, exigiu. E, desde que se entrou para o dois, não saiu mais — respondeu o recepcionista do hotel.
— Engraçado e triste: nos registros dele consta que esteve aqui por mais de quinze anos, quando ainda era um hospital. Foi transferido depois que o prédio foi vendido.
— Mas, afinal, que crime cometeu? — conversavam seguindo pelo longo corredor. Algo os incomodava...
— João Nestor confessou ter matado treze mulheres, como uma criança perturbada trataria suas bonecas de retalhos de pano. Todas elas familiares ou namoradas. Ainda retirou o fígado de cada uma das vítimas e os comeu. Disse que assim as honrava, assimilando-as a si próprio, na perfeição, na beleza que ele coreografou. Foi a maneira que encontrou de nunca ser abandonado ou humilhado. Transformou seu diálogo interior doentio em lógica de consistência interna. Com o julgamento, ficou em tratamento aqui. Psiquiatras acreditam que podem curar esse tipo de doente...
Ao abrirem a porta, sobre a cama (que não tinha mais pés), havia um toco, ao nível do chão, à mercê de uma nuvem de insetos que passavam, nauseantes, por sobre os buracos onde estiveram os olhos, por sobre a boca escancarada, por sobre os buracos vazios das narinas, a cabeça esfolada... A pele, que não fora escapelada, ganhara uma tonalidade azul-bolorenta, inchada, estufada, crescida em alguns pontos. Havia cortes fatais na região da barriga. As unhas sujas e quase arrancadas. Um corpo pervertido e transformado, monstruoso e medonho em ato de fetichismo.
— Que nojo! Ele se mutilou? — o atendente no hotel tapou a boca tentando segurar o vômito. Veja! Ele usou lascas do espelho que ele mesmo quebrou.
— Parece que João Nestor conseguiu uma forma de justiça, um jeito de equilibrar as coisas, e, portanto, uma coisa "boa". Liberou a agressão, a raiva contra si, no seu primeiro momento de liberdade. É... e os médicos acreditaram que estava bem, pronto para voltar à sociedade. Prêmio por bom comportamento... — suspirou o agente responsável pelo acompanhamento do ex-detento.
TEMAS: insetos e hospital.