CRISTINA - CLTS 03
Cristina é a grande maldição da minha vida. Maldita Cristina com suas curvas, com seus olhos e sorriso. Olhos de filhote de foca, castanhos e redondos como duas bolas de golfe. Deus do céu, como eu amei aqueles olhos.
Conheci Cristina na biblioteca. Naquela época eu trabalhava organizando livros por assuntos e etiquetas. Não era um trabalho ruim, embora tedioso. Suava pouco (e caras gordos suam muito) e sobrava tempo para fumar no banheiro dos fundos. Como todos sabem, não é permitido fumar em uma biblioteca, mas eu acabava dando um jeito. Bastava abrir a janela e espirrar um pouco de desinfetante que tudo começava a cheirar como novo. Sinto saudades da fumaça rodopiando em espirais alucinantes até a lâmpada moribunda no teto. Aquela porcaria, o cigarro, foi o primeiro grande mal da minha vida. Uma maldição. Mas depois eu descobri que Cristina era pior. Muito pior. Meus pulmões estão ferrados, mas um coração partido dói mais. Antes eu apenas não poderia subir as escadas do meu prédio, mas agora já não consigo sair do quarto.
Cristina arruinou a minha vida.
Sempre tive o dom de perceber quando o dia seria uma merda. Aquela manhã de maio começou exatamente como todas as outras, com exceção do meu alarme interno tocando sem parar em algum lugar dentro da minha cabeça. Eu não deveria ter saído de casa, mas fui burro o bastante para ignorar aquela vozinha interna que gritava como uma velha com câncer de útero. Quando encontrei cinco pratas no corredor pensei que pela primeira vez eu pudesse estar errado. A sensação é parecida com aquela que você sente quando o teste de gravidez da sua namorada é negativo. Droga. O dinheiro foi como uma piada de mal gosto. Talvez Deus quisesse brincar comigo naquele dia.
Cheguei na biblioteca com os dez minutos de atraso habituais. Cumprimentei o porteiro, um velho negro sem dentes que sempre acenava com alguma piada sem graça sobre meu excesso de peso (e esse desgraçado se parece com alguém da TV, mas quem?); tomei uma bronca da faxineira por sujar com lama o chão que ela acabara de limpar; fumei um ou dois cigarros no banheiro e comecei o serviço de onde havia parado no dia anterior. Livros não se organizam sozinhos e as pessoas possuem o péssimo hábito de deixar tudo jogado depois de usarem. Quero dizer, qual a dificuldade em colocar as coisas no lugar? Bom, isso certamente não se aplica a minha vida.
Cristina estava em algum ponto entre o último cigarro e o quinto livro organizado na prateleira. Ela não era alta e me pediu ajuda para pegar um livro que não alcançava. Bom, eu também não tenho a altura de um jogador da NBA, mas pegar o objeto estava dentro das possibilidades. O livro falava algo sobre cadeia alimentar, ecologia, coisas do tipo. Eu não me lembro muito bem porque naquele momento a beleza estonteante de Cristina parecia sugar todas as luzes e todas as cores daquela sala. Deus do céu como era linda. Eu já falei dos olhos de foca, mas o que não falei é como eles pareciam tão hipnotizantes refletindo a luz da manhã. E aqueles cabelos negros que se moviam como um véu de seda sob uma brisa leve de primavera. Os dentes eram tão brancos que pareciam um horizonte polar, faiscando tanto que quase me cegaram.
Aquilo era estar apaixonado.
Entreguei o livro naquelas mãos macias como uma vagina virgem. Ela sorriu e agradeceu. Não consegui me mover até que ela desaparecesse através da sala de estudos. A garota se movia como um lince, graciosa e lenta como uma predadora. Aquela era a garota da minha vida, a mãe dos meus filhos e foda-se todo o resto. Fui atrás de Cristina e quando a chamei ela me olhou com um ar de curiosidade.
Apenas curiosidade. Um leve ar de interesse por detrás dos seus olhos que não denunciavam nojo ou repulsa. Aquilo era tão assustadoramente diferente, tão absurdamente contrário do que todas as mulheres com quem eu falava que quase perdi o ar mais uma vez. Havia algo inocente naqueles olhos. E eu gostava.
Estava completamente apaixonado.
Foi nesse momento que perguntei o seu nome. Foi ali que ela disse ‘’Cristina’’ com uma voz tão baixa que era quase inaudível. Um timbre que soava agradável como ver os peitinhos da sua prima de quinze anos escapando para fora da camisa num piquenique adolescente. Conversamos durante quase toda a manhã e depois de duas horas eu já sabia que ela tinha uma gata que se chama Frida e que seu prato preferido era torta de banana. Também soube que ela queria se tornar veterinária algum dia e que tinha uma poupança para pagar a faculdade. Soube que os pais se divorciaram quando ela era muito jovem e que desde então não tem visto o pai, já que ele se mudou para o Rio onde vive com a namorada.
Nós tínhamos muito em comum porque eu também era filho de pais divorciados. Bom, mais ou menos. Minha mãe matou meu pai quando eu tinha apenas seis anos, depois de pegar o idiota na cama com uma prostituta. Ela seguiu o velho até um hotel de beira de estrada e atirou na cabeça dele com um rifle enferrujado. Isso é quase como um divórcio, certo? E como Cristina eu não gostava muito do namorado novo da minha mãe. Acreditem, não é muito legal quando um homem de quarenta anos bate punheta e ejacula na sua cara durante um “banho de homens”. Eu não contei isso para minha mãe na época e também não contei isso para Cristina porque não é uma coisa que se diga no primeiro encontro.
De toda forma, eu nunca me senti tão bem quanto naquela manhã. Nós riamos juntos e ela me explicava coisas sobre animais que eu não sabia. Ela realmente vai ser uma veterinária do caralho algum dia. E eu espero do fundo do meu coração que seja mesmo. Eu contei sobre o meu trabalho, mas não mencionei os cigarros porque Cristina não parecia o tipo de mulher que aprecia essas coisas. Mas eu falei para ela que tinha um hamster chamado Nilton, o que não é verdade, mas ela ficou impressionada e disse que gostaria de conhecê-lo.
Preciso comprar um hamster. Anotado.
Quando o relógio marcou onze horas, Cristina fez menção de ir embora.
Eu nunca a tinha visto antes, e provavelmente não a veria novamente. Aquele foi um dos momentos em que um milhão de coisas passam na sua cabeça. Você precisa pensar rápido e medir todos os riscos e benefícios. Você precisa ser um estrategista.
Havia todo um futuro naquele momento. Eu poderia deixar aquela garota ir embora assim? Estava suando como um porco e isso é um dos problemas que afastam as melhores garotas. De repente meus dedos procuravam os cigarros no fundo do bolso da jaqueta, mas eles não encontraram nada além de papéis de bala e uma borracha gasta.
Então eu decidi o que deveria fazer. A ideia surgiu como um estalo na minha mente e eu quase podia ouvir o “click” disparando. Eu chamei Cristina e ela olhou para mim. Olhos de foca. Olhos de lince. Olhos de maldição. Vi naqueles olhos o pênis pequeno e grosso do meu padrasto, se movendo para cima e para baixo, duro como uma pedra. Vi minha mãe no tribunal do juri sendo inocentada após comprovada a insanidade mental da infeliz. Vi meu próprio rosto. Vi a mulher que amava.
Eu a beijei.
Foi quente.
Foi molhado.
Foi rápido e o som parecia o de uma bexiga estourando.
Então ela gritou.
É aqui que temos uma falha nessa porra de história. Para ser bem sincero eu não sei muito bem o que aconteceu depois. O mundo inteiro começou a girar e tudo ficou cinza. Haviam pessoas entrando naquela sala bem iluminada e haviam barulhos de livros caindo.
Me lembro de ter corrido para meu apartamento e trancado a porta. Me recordo de ter bebido quase cinco litros de água de uma vez. Depois eu urinei nas calças e comecei a chorar. Cai no sono e dormi quase cinquenta horas. Tive pesadelos dos quais não me recordo e acordei com o barulho de alguém batendo na porta. Eu sabia o que era, mas abri a porta mesmo assim.
Outro apagão. Nesse momento minha memória falha. Só consigo sintonizar a partir do momento em que assinei a nota de culpa e fui jogado como preso preventivo nessa penitenciária. Estou em uma cela segura, entre aspas, com outros nove presos. Todos predadores sexuais. Recebi uma visita do oficial de justiça. Minha audiência foi marcada para daqui três meses. Eu deveria indicar um advogado, mas não tenho condições de pagar por um e por isso o estado nomeará um defensor para meu caso. Eu espero que dê tudo certo.
Tudo bem. Eu sabia que Cristina tinha dez anos. Foi um erro, se era isso que você gostaria de escutar. Mas em minha defesa, fazemos coisas loucas quando amamos. Minha mãe matou meu pai com um tiro na cabeça, meu padastro gozou na minha cara e eu me apaixonei pelos olhos de uma criança.
Está tudo bem. Eu só gostaria de fumar um cigarro.
Tema: Maldição.
--------------------Nota do Autor-------------------------------
É uma preferência pessoal, mas eu não gosto de terror sobrenatural. Acho que a vida real é muito mais assustadora do que qualquer ficção. Assim, de todos os significados da palavra maldição, "o que tem consequências funestas; desgraça, calamidade." é o que mais me agrada.