FANTASMAS NO PORÃO

Somos como janelas em construções antigas, que têm bolhas, áreas onduladas, marcas sujas, manchas de tinta e outras distorções e obstruções. Cada um de nós tem áreas de clareza e áreas de obscuridade.” John e Barry Stevens- Isto é Gestalt- Vol.3
 
 
     A aflição deve ter sido realmente grande. Algo de francamente assustador aconteceu naquele sonho para ele ter pulado da cama daquele jeito. Foi uma coisa horrível. Saltou como se tivessem atirado uma cobra em sua cama, ou então como se o tivessem atacado com uma faca ou coisa parecida. Parecia um gato, no qual alguém jogara uma panela de água quente. Na queda bateu com a boca na quina do criado mudo e logo sentiu o líquido quente e viscoso descer-lhes pelos lábios. Passou a mãe pelo rosto molhado. “È sangue”, concluiu.
Estava escuro, muito escuro no quarto. Sua mulher havia acordado com o barulho que ele fizera na queda. Mas ela já estava acostumada com esses acontecimentos. Não era a primeira vez que via aquilo. Volta e meia o marido tinha desses rompantes noturnos, onde ele chutava, mordia, socava o ar e batia em tudo que estava perto.  Não foram poucas as vezes em que ele lhe dera socos e caneladas dormindo. Por isso ela exigira a troca da antiga cama por outra, bem larga, para que ela pudesse manter uma boa distância entre os dois. Era isso ou então iriam dormir em camas separadas.
Ele preferiu a segunda alternativa. Comprou a cama mais larga e fizeram um acordo. Ele iria para a cama mais cedo e ela sempre um pouco depois. Acordo que a ela serviu muito bem, pois era seu costume ficar até mais tarde trabalhando no computador. Seu trabalho como webdesigner rendia mais na madrugada e por isso ela já ia dormir muito tarde habitualmente. Assim, se na hora em que ela fosse para a cama, percebesse agitação no sono dele, prenúncio da tempestade que se passava na sua mente, ela já ficava de sobreaviso e não se deitava sem a muralha de proteção dos travesseiros, que ela sempre colocava no meio deles nessas ocasiões.
 Coisa estranha era aquela, ela pensava. Afinal, como pode um homem tão calmo quando acordado ser tão agitado e violento dormindo? Ela o conhecia há mais de trinta anos. Há mais de vinte e cinco convivia com ele. Durante todo esse tempo nunca o vira sequer maltratar uma pessoa, nem com palavras ou gestos, quanto mais com comportamentos agressivos. Não fazia mal a uma mosca.
Seu marido era comedido, carinhoso e extremamente gentil com todos. Entretanto, quando essas coisas aconteciam no sono, ele se transformava numa pessoa completamente diferente. Seus olhos pareciam duas brasas furiosas, queimando de ódio e desejo assassino; sua testa transpirava como se estivesse lutando pela própria vida. Todo seu corpo parecia uma fúria total, possuído por uma entidade cuja paixão era uma só: lutar, lutar.
  Contra o que ele lutava tanto, perguntou-lhe um dia. “Se eu soubesse, se eu conseguisse me lembrar”, disse ele, com um suspiro, “talvez eu pudesse controlar isso.”
Sim, sem dúvida, ele gostaria muito que esse mister Hyde que se hospedava no seu inconsciente desaparecesse e nele ficasse apenas o Dr. Jekil que ele era em estado de vigília. Porque ele não gostava nada daquela duplicidade de caráter que se manifestava durante o sono e que já lhe rendera um dedo quebrado e agora, neste último tombo, seis pontos no palato superior. Ficou com uma feia cicatriz no rosto, como se tivesse nascido com lábios leporinos. Isso o irritava muito. “Se ao menos tivesse ganho essa cicatriz  em uma briga de verdade, por alguma razão relevante”, dizia ele, “ talvez tivesse valido a pena.”
   Foi então que ele foi procurar um terapeuta.
 “Você precisa aprender a lidar com a própria mente” disse o terapeuta. “Nossa mente é como um computador, que é programado pela linguagem”, disse o barbudinho esquisito, que ficava recortando figuras de papel enquanto ele falava.      
  “Você vê um pássaro voando e deseja voar igual a ele. Então sua mente constrói uma imagem sua voando como um pássaro. Essa imagem é a linguagem da mente consciente, ou seja, uma imaginação que ela cria. Mas você sabe que não pode voar. Então sua razão bloqueia essa imagem e não a deixa passar para os nervos e músculos. Aí quem fala é a linguagem da razão, a linguagem de superfície. Mas a nossa mente profunda, através dos nossos sentidos, recebe todas as informações do mundo. A imaginação de você voando foi registrada no seu inconsciente. E nele não existe a barreira das impossibilidades. Nele nós somos todas as coisas. Todo o bem e o mal do mundo. Somos luz e sombra, adultos e meninos, macho e fêmea, observador e objeto observado, enfim, tudo que existe no território do possível e do impossível. Mas só podemos trabalhar efetivamente com um pedaço muito pequeno dessas informações, que é a parte filtrada pela razão. Por isso dizemos que o mundo é um território, enquanto o que realmente sabemos dele é uma pequena fração, que é o mapa que a nossa consciência faz dele.”
“A diferença entre um cientista e um louco”, concluiu o terapeuta, “é que o cientista tem uma estratégia para organizar a sua as informações de uma forma lógica e o louco não.”
     
    Depois de algumas consultas e muita conversa o terapeuta propôs fazer com ele um exercício chamado Mudança de História Pessoal. Tratava-se, na verdade de um exercício de regressão mental, na qual o indivíduo entra num estado de transe quase hipnótico e vai desarquivando, nas suas experiências passadas, as partes da informação que a mente consciente cancelou na hora de montar o resumo que ela passou à memória.
    “A memória” explicou o terapeuta, “na verdade, é um arquivo de mapas de experiências passadas, mas ali só encontraremos o que a nossa consciência julgou importante conservar. A totalidade da experiência sensorial que uma informação nos trás nunca é conservada intacta na mente consciente. Não há memória RAM suficiente para isso no nosso Hard Disk cerebral. Por isso a mente omite, generaliza e cancela grandes porções da informação que os nossos cinco sentidos recebem. O exercício de Mudança de História Pessoal é uma espécie de soft que nos permite recuperar essas informações jogadas para a lixeira. E a lixeira da mente é o inconsciente," informou ele.
   “O que Freud fez”, continuou o terapeuta, “foi mexer nessa lixeira. Por isso ele levantou um monte de coisas mal cheirosas, como o Complexo de Édipo, o Complexo de Thánatos, a inveja do pênis, que ele dizia que as mulheres têm, etc, etc. Essas bobagens todas não são mais que informações não catalogadas nem analisadas pela mente consciente, que foram arquivadas sem identificação no nosso inconsciente.”
 
    Ele achou uma certa lógica no discurso do terapeuta. Se o nosso cérebro funciona como um computador, ele deve ter mesmo uma lixeira onde a gente joga as informações que não interessam. Coisas que a gente vê, ouve e sente, mas não dá o devido valor. Ou então experiências que nos trazem dor e a gente procura, o mais rápido possível, nos livrarmos delas. 
     O tal exercício, em si mesmo, era fácil de fazer. Bastava ter uma boa capacidade de concentração. Ele tinha que imaginar que estava na porta de um porão e ia começar a descer os degraus que o levavam para dentro dele. Foi aconselhado a não ter medo da escuridão que ia encontrar nem das coisas que ia ver, ouvir e sentir. Não sabia quantos degraus ia ter que descer nem o que iria encontrar em cada um deles. Tinha apenas que levar com ele uma certeza. Tudo que ele encontrasse seria informação. Não eram fantasmas, nem monstros, nem espíritos, nem entidades de espécie alguma. Eram apenas informações.
      “Cada degrau é um tempo em sua vida. Você está descendo esses degraus”, disse o terapeuta. “Quando eu disser para você parar em algum degrau, você para e eu vou perguntar se você quer ver o que está acontecendo ali, entendeu? Se você disser sim, eu vou acender uma luz para que você possa ver, está bem?”
      "Está bem”, respondeu ele.
 
     “Quantos anos você tem agora?” perguntou o terapeuta. “Trinta e cinco anos”, respondeu ele.
      Na verdade, o terapeuta havia pedido para ele fechar os olhos e dar alguns passos para trás. E à medida que ele fosse andando em direção ao seu passado, que ele fosse repassando, mentalmente, as experiências que havia vivido. Como se estivesse desfiando as contas de um rosário. À medida em que ele repassava suas experiências passadas, a expressão do rosto, o movimento das órbitas oculares, a coloração da pele, os batimentos cardíacos e o comportamento dos músculos e nervos, que constituem a nossa linguagem não verbal, o terapeuta detectaria quais as experiências haviam sido mais significativas no passado dele.
      “A mente consciente registra a informação através da linguagem falada, que é a de superfície. A mente inconsciente através da emoção, que é a linguagem de profundidade”, explicou o terapeuta.
     “Quantos anos você tem agora”, perguntou o terapeuta, depois de levá-lo mais alguns passos em direção ao passado.
     “Uns quinze anos”, disse ele. Sua voz soava diferente agora. Não havia mudado de tonalidade, mas sim de entonação. Parecia mais jovial, mais solta, quase de adolescente. Sua postura corporal mudara também.
      “Você quer ver o que está acontecendo aí?” perguntou o terapeuta. A um sinal de concordância que ele fez com a cabeça, o terapeuta simulou, com um estalar dedos, o som de um interruptor acendendo uma luz.
     “Descreva o lugar onde está agora, as pessoas que estão com você, o que estão dizendo, o que você está fazendo, o que elas dizendo e fazendo, etc”, disse o terapeuta, que estava monitorando a experiência interna dele pelas suas expressões não verbais.
     E ele descreveu cenas da sua adolescência, pessoas com quem conviveu, coisas que viu, ouviu e sentiu quando tinha essa idade.
       
      E assim ele foi entrando cada vez mais para dentro de si mesmo. Mais alguns degraus em direção ao passado, cada vez mais fundo, mais escuro. Juventude, adolescência, infância. Luzes acesas pelo estalar de dedos do terapeuta. Ele viu a namorada que o deixou falando sozinho e com o órgão na mão; a primeira carteira de trabalho assinada e o olhar do chefe quando foi despedido. Sofreu de novo a dor da rejeição quando foi tirado do time por que era ruim de bola. O medo que sentiu quando sua mãe o deixou sozinho na porta da escola e foi embora.  Viu o olhar acusador do pai quando fez uma arte e a careta de nojo da mãe quando limpava o seu cocô.    
       “Que idade você tem agora?”
       “Não sei. Eu sou muito novo”.
       “O que você está vendo ai?”
      “Nada, só uma substância líquida, gelatinosa, que parece sangue.”
      “Tem alguém ai com você?”
      “Tem.”
      “Você a conhece?”
      “Não sei.”
      “É um homem, uma mulher, um garoto como você?”
       "Acho que é uma mulher."
       "Onde ela está?"
      “Em algum lugar na minha frente, mas eu não estou vendo ela”
        “Você quer vê-la?”
         “Quero, mas tenho medo.”
        “Porque você tem medo?.”
         "Acho que ela não gosta de mim".
         "Como é que você sabe disso?"
         "Ela tomou um remédio para me tirar da barriga dela".
 
      E nesse justo momento ele saltou em cima do terapeuta e o agarrou pela garganta. Apertou e apertou.  Esteve a ponto de matar o homem. Não fosse a secretária e o segurança do prédio, que acorreram aos gritos desesperados dele, isso teria mesmo acontecido.
       Assim foi aquela experiência que ele teve ao descer ao porão da sua inconsciência. Faria outras depois, com o devido controle. E à medida que ia desenterrando essas velhas informações, ele as ia entendendo melhor. Fez coisas bizarras nessas visitas. Conversou com baratas e descobriu porque tinha medo e nojo delas. Dialogou com seu pai e sua mãe, ambos já mortos. Eles lhe explicaram direitinho o que e significavam aquelas “lutas noturnas” que os dois pareciam travar quando ele era ainda um bebê, ocasião em que seu pai subia em cima da sua mãe e os dois gemiam como se estivessem lutando. Descobriu que sua verdadeira mãe, na verdade era outra mulher, que tentara abortá-lo e depois o abandonara recém-nascido, em um orfanato. Sua irmãzinha lhe explicou porque chorava tanto. Conversou com cientistas que lhe explicaram como se formam os raios e as tempestades. Com todos aqueles monstros que tanto o assustavam na sua infância. Eles lhe deram informações sobre suas verdadeiras consistências. E ele compreendeu que tudo não passava de informação. Informações que estavam arquivadas no seu arquivo morto, sem identificação ou com identificações falsas. Mas que quando a mente consciente não exercia a sua missão de censora, elas subiam ao andar da consciência, como fantasmas que estavam aprisionados em uma masmorra e foram de repente liberados.
 
     Já faz mais de um ano que ele dorme tranqüilo e não briga mais em seus sonhos. Mas na vida diária ele mudou muito. Já não é mais aquela pessoa tranqüila e extremamente gentil que era antes. Quando se sente irritado com alguma coisa não faz questão de esconder seus sentimentos. Ele chama isso de franqueza, transparência, autenticidade. Diz que os nossos sentimentos e crenças devem ser confrontados e expostos de dia para que elas não se transformem em monstros noturnos.
      Um dia desses ele quase saiu no tapa com um companheiro do clube de serviços que eles freqüentam.. Ele não se lembrava de ter brigado com ninguém desde que era garoto.
  “O que aconteceu com o seu marido?”, perguntaram os companheiros. “Ele sempre foi tão calmo, tão gentil. Agora está mais agressivo.”
      Sua mulher diz que não sabe. E também não sabe se era melhor ficar se prevenindo à noite para não levar socos e pontapés ou agora, por ter que ficar alerta para afastá-lo da próxima briga em que ele vai se meter.
     Ela só tem certeza de uma coisa. Quem meche com os fantasmas que moram no porão do inconsciente nunca mais será o mesmo.