O LIVRO DOS QUATRO

Estou coberto agora, dos pés à cabeça. A verdade é que estou dentro de um necrotério e receio que em breve terei meu corpo aberto para uma autópsia, o que me deixa mais gelado que esses corpos ensacados que destilam o fedor de morte infestando o lugar.

O que me trouxe aqui foi uma sucessão de eventos os quais tem uma só vertente, procedem de um mesmo mal e se espalharam tal qual os afluentes de um rio, causando as desgraças que eu irei relatar, tanto na minha vida quanto nas vidas das pessoas as quais tiveram seus destinos alterados, sucumbindo ao mal.

Tudo começou em um dia comum, no verão de 1995. Eu sou professor universitário, e aliás, desculpem não ter me apresentado de maneira apropriada, me chamo Reinaldo Antunes, leciono na Universidade Federal de Santa Catarina, a matéria que com tanto zelo tento passar a meus alunos é filosofia, talvez uma das mais difíceis de ensinar, por ser algo compreendido de formas diferentes de pessoa para pessoa.

A rotina de um professor não é fácil. São correções, revisões, planos de aula e lidar com os alunos todos os dias, sabendo da responsabilidade nas mãos, de formar mentes que futuramente estarão lecionando também, ou de algum modo formando opiniões com suas profissões, ou baseando as suas próprias, de acordo com o que aprenderam aqui, em parte comigo, é complicado.

Todas as noites, depois de ministrar as aulas, ia para um bar, que ficava perto da universidade, e enchia a cara para esquecer uns problemas ou ficar remoendo outros, quem sabe pra que se bebe afinal? Cada bêbado tem a sua própria desculpa. Mas talvez nenhuma desculpa seja mais justificável que a de um bêbado, sabiam? Avaliem por si mesmos as ironias sopradas por um porta-voz da filosofia.

O problema daquele bar, era que alunos também o frequentavam e algumas alunas eram tentadoras demais para que o meu frágil escudo de moralidade pudesse resistir. Elaine, Priscila, Aline, Carol, eu estava mesmo era perdendo o controle da situação. Por isso resolvi dar um basta e deixei de ir ao bar e por um tempo larguei mesmo todo o convívio social.

É difícil você convencer a sociedade e mesmo que eu tivesse me lixando para tudo, não queria perder o emprego. Droga, talvez eu seja o mais depravado professor do mundo.

Nestes tempos de privação, frequentava muito a biblioteca municipal e através dos seus corredores ladeados de prateleiras monumentais forradas com os mais variados livros eu pude vislumbrar exemplares comuns, outros não raros, mas não mais editados, e que só podiam ser encontrados em sebos ou escolas e universidades. Nestas horas de quietude eu me afundava em leituras e procurava sempre os maiores volumes e aqueles que se aprofundassem em algum assunto nebuloso, que as áreas das ciências não eram suficientemente eficazes para contemplar. Ocultismo, telecinésia, feitiçaria, espiritualismo, a para-normalidade abrangia uma gama enorme de pseudociências, que passaram a me fascinar.

Mas a carga de leitura daqueles livros, atenuada com a carga extenuante do ofício de professor, tiveram reflexos pesados sobre a minha saúde. Não me alimentava direito, dormia mal. Então passei a diminuir minhas visitas à biblioteca, o que com o tempo foi me causando uma ansiedade tremenda. Eu estava mesmo assolado e enredado, sendo consumido pelas minhas pesquisas sobre as estranhas manifestações que permeiam o mundo físico. Achei que seria impossível estar pior até cair em minhas mãos aquele curioso livro. Não tão volumoso, aquele tomo constava de 200 páginas, como pude apurar numa rápida folheada. Sua capa era de couro preto e a encadernação de excelente qualidade, com arremates nas costuras muito bem acabados. De cara já me chamou atenção o título, formado não pelo alfabeto romano, mas símbolos, que descreverei: um peixe fisgado por um anzol, projetado para fora d'água formando uma curva ascendente com seu corpo cônico. Ao lado um leão em posição majestosa, sobre duas patas desferindo suas garras desafiadoramente, com seu rugido bravio. Seguindo o leão uma pomba vista do alto em posição de voo e aureolada com os raios do sol sob ela e por fim uma corça que bebia água num lago. Todas as gravuras em baixo relevo dourado, reluziam em seus filetes aquele brilho sedutor que logo aprisionou meus pensamentos.

Os dias foram passando e se tornando enfadonhos e as aulas sempre temperadas com doses de humor e sarcasmo, o que divertia os alunos e facilitava o entendimento do assunto, deram lugar a um explanar verborrágico e tedioso. Queria voltar pra biblioteca para continuar um escrutínio do volume cabalístico. Com este intento o aluguei e corri pro meu apartamento. Os cômodos sempre fechados puderam respirar quando abri a janela do escritório. O cheiro de mofo levantou, queimando minhas narinas, me fazendo reagir com asco e tosse.

Larguei as pastas e a mochila e agarrei o livro com as duas mãos. Devagar folheava suas páginas como se nunca o tivesse visto. Na primeira folha imprimia-se o título da capa em preto. Embaixo, onde encontraríamos o nome do autor, dizia: De autor desconhecido. Na segunda página uma xilogravura incômoda. Um velho, com uma longa barba escanhoada à Bandholz. Uma postura imponente, olhos inflamados de ira e semblante fechado. O que me perturbava não era tão somente a expressão do velho, mas a forma como aquela xilogravura fora apresentada. Finíssimos riscos sulcados no rosto da gravura tornavam ainda mais realístico o desenho e o impingiam uma decrepitude aterradora.

Passei a devorar o livro avidamente. A gélida atmosfera tão bem descrita, o hálito do personagem, seus pensamentos e suas aflições, passaram a percorrer os meus pensamentos, preenchendo os espaços como o sangue preenche os vasos sanguíneos. Eu não lia, mas fora transportado pra dentro daquelas páginas, quebrando a barreira da quarta parede e sofrendo as sutilezas mais imperceptíveis que afetavam o pobre Nubyk. Expor a história que li neste primeiro capítulo era difícil, quando eu ainda estava zonzo com os absurdos contidos em suas páginas, mas vou tentar, transcrevendo na integra alguns trechos:

“Em imemoráveis tempos, numa época em que os ventos da prosperidade sopravam longe da aldeia de Zesmick, naquele país gelado, onde a pesca e a caça eram árduas e muitas vezes seus habitantes em busca do sustento morriam congelados ou de fome, Nubky percorria a planície branca à procura do alimento para ele e sua mulher Gurnyeva. Sua parka, forrada de pele de foca, mantinha seu peito aquecido e as kimiks protegiam os pés do gelo cortante. O modo de pesca tradicional da foca era perigoso e requeria uma habilidade herdada de pai para filho. Os arpões manipulados com precisão transpassavam as focas pelos buracos no gelo e as armadilhas muitas vezes pegavam os próprios caçadores que poderiam morrer se caíssem na água fria, abaixo dos grossos blocos congelados.

Nubky, mesmo cuidadoso e perito neste tipo de pesca, sofreu naqueles dias. Foram três dias longe da sua aldeia até encontrar o urso. Ursos polares eram perigosos e mesmo famintos e fracos causavam estragos, mas eles rastreavam comida, então, se ficasse ao longe perseguindo o animal, poderia encontrar as caças.

A fome, contudo, é implacável e a jornada longa em busca do alimento às vezes é tão desesperada que leva os caçadores aos mais impensados atos.

A lança atingiu o flanco esquerdo do urso, que se alimentava. O predador urrou bravamente, como se dissesse que lutaria por sua vida. Nubyk procurou não fazer contato visual com o animal, o cercando por trás e pensando na próxima estratégia. Mesmo machucada a fera corria, com a lança pendurada, que veio a cair no momento em que subia uma pequena colina. Munido da arma, Nubyk procurou o melhor momento para atacar, mas o cansaço o fatigava notadamente, perdia a corrida para sua presa. O rastro rubro deixado na neve registrava a quantidade de sangue que o urso perdera. Talvez fosse só questão de tempo até que caísse de fraqueza e ficasse vulnerável. Mas embora Nubyk confiasse no esgotamento físico do bicho, sabia que teria que agir, para acabar enfim com aquela caçada, se não ele próprio não aguentaria. Mas a desagradável surpresa logo à frente o fez desanimar e retroceder. Ali estava outro urso, o que ele achou deveras estranho. Predadores geralmente são territorialistas e encontrar outro tão perto foi muito azar. Sabia que não podia enfrenta-los e correu por sua vida. Os dois ursos se enfrentariam disputando ele próprio como prêmio. A desértica amplitude branca e a nevasca que caia, dificultavam seu avanço e a exaustão física o fez cair por fim. As patas esmagaram seus ossos e os dentes, como lanças, dilaceraram sua carne. Estava servida a refeição e nem ele, nem Gurnyeva jantariam aquela noite. Mas os ursos satisfeitos pastavam entre as tripas estiradas sobre o ventre aberto de Nubyk”.

Nossa, não me ativera à hora, era três da manhã e teria que acordar cedo e começar a corrigir alguns trabalhos. Perdi completamente a noção do tempo. Mas me renderia ao sono, pela extenuante carga fisiológica e se quisesse prosseguir com as rotinas do dia seguinte sem sofrer danos.

Minha disposição melhorou depois que comecei a ler o livro e as aulas voltaram a ter o mesmo pique empolgante de antes. Já conseguira me desprender do livro quando encarava as obrigações do ofício e até minhas voltas pelos bares para uma ou duas biritas tiveram lugar neste novo momento da vida. Numa dessas noites de boemia conheci Irene, uma morena de olhos puxados, exótica e sensual. Acabou comigo na cama e depois desta noite passamos a nos encontrar com frequência, o que de certa forma me distraiu do livro.

Quando acordei uma noite e não a encontrei do meu lado na cama, fiquei chateado. Pensei que pudesse ter ido embora e depois de beber um copo d´água na cozinha pude visualizar na sala uma sombra negra que se erguia do sofá. Semelhante uma noiva vestindo um longo véu que se moldava a sua cabeça como um involucro, a sombra avolumava-se soberba como uma assombração. Parado, já imaginando que poderia ser Irene, tentei controlar os batimentos cardíacos, respirando fundo e contando até dez mentalmente. Acendi a luz da luminária no canto, sobre a escrivaninha em que costumava trabalhar. Irene não se mexeu. Reconheci ela, porém continuava parada. Me aproximei e a vi com o tal livro nas mãos. Seus olhos arregalados e fixos à frente, sua boca aberta de onde escorria uma baba branca. Ela estava em choque. Retirei o livro de suas mãos com cuidado. Testei seus reflexos com uma pequena lanterna que tirei da gaveta no hack da sala, deixada sempre à mão para alguma emergência. Não poderia ser acordada bruscamente naquelas condições, seria um choque enorme, encontrava-se na fase de sono REM e me perguntava o que teria causado isso?

Se Irene não acordasse logo poderia jamais acordar, entrar em estado de coma e até morrer. Então minha preocupação se abrandou quando escutei seus gemidos e a vi mexendo a cabeça e acordando. Quando ela me viu entrou em surto, começou a berrar e agitar os braços, dizendo coisas desconexas, frases soltas, sem sentido. Estava nua, correu para o quarto, vestiu as roupas e ia saindo. Tentei demonstrar preocupação, eu me importava com ela, eu acho. Disse que se acalmasse, ficasse ali, que não poderia ir pra casa naquele estado e amanhã conversaríamos sobre o que aconteceu. Ela parou, sentou no sofá, eu passava as mãos nos seus cabelos negros e lisos e ela chorava segurando minha mão. Só a confortei, sem nada dizer. A levantei e a coloquei na cama, ela dormiu rapidamente.

Na sacada, tomando um ar fresco, sentado numa velha cadeira de balanço, herança de minha falecida avó, tomava uísque e lia o segundo capitulo daquele livro. O capitulo encontrado aberto em posse de Irene, e lendo a história tive medo que aquele mesmo fenômeno ocorrido com ela, se repetisse comigo. Seria perigoso continuar, tive a intenção de parar três vezes, mas algo me impelia a ler, como uma força da qual não tinha controle.

“Os olhos do leão encaravam o adestrador como um assassino que encara sua vítima. O velho leão ainda era forte e valente, chateado talvez por estar tão longe da mãe África. Os espetáculos armados, mais ridículos do que as encenações teatrais e tudo que aquele leão pôde em sua vida contemplar das manifestações culturais do homem civilizado, tornaram-se intoleráveis ao longo dos anos. Ele sabia que se devorasse o adestrador, o que tinha muita vontade, seria rejeitado, aposentado ou até morto, então obedecia. Não podia reclamar das refeições e sabia que tinha sido mais maltratado antes do que agora. A idade o tinha tornado obediente, até pacato, sem razões para os abusos.

Mas ele já não saltava como antes, não rugia como antes, e até o público parecia cada vez menos acalorado e entretido. Os tempos estavam mudando e não era culpa dele e sim das pessoas. Embora não entendesse no começo porque as pessoas o aplaudiam de pé quando era preso numa jaula com um homem segurando uma cadeira e um chicote e o fato de a natureza o ter criado como um temido predador, veloz, com garras e dentes afiados, não chamava a atenção dessas mesmas pessoas dessa forma. Ele caçando uma gazela nas savanas não era interessante, mas sendo domado pelo homem sim?

Aquela noite seria sua última apresentação, ele sabia. Ouviu os adestradores e demais artistas do circo comentarem e temia por seu futuro. Fez aquela apresentação lindamente, estufava seu peito e urrava como nunca. A elegância e a destreza do seu caminhar, o rabo balançando e o chicote que tilintava como uma ameaça, tudo correu perfeito. Foi aplaudido de pé por 10 minutos. Orgulhoso ele se despedia do circo, temendo pelo seu futuro, mesmo assim aproveitou o momento.

No celeiro, onde ficavam todos os animais do circo, ao ser transportado de uma jaula para outra, o leão inesperadamente tentou romper a minúscula fenda que se formou quando as portas das jaulas foram encaixadas uma frente à outra. Os adestradores, quatro homens fortes, pediram ajuda gritando e o pânico começou a se alastrar pelo circo. Em poucos minutos alguém apontaria uma espingarda com dardos tranquilizantes e tudo estaria acabado para ele, pensou.

O leão, determinado, cravava suas garras contra as barras de ferro e com as patas traseiras fincadas no chão usava toda a sua força para escapar. Aos poucos a cela em que estava foi cedendo, e quando houve espaço suficiente para que pudesse escapar ele investiu contra seu adestrador. As unhas estendidas como facas afiadas rasgaram a pele e a carne do rosto do homem que desfaleceu caindo como um boneco. O leão o arrastou para longe, desaparecendo para além das montanhas. Foi tudo tão rápido, que embora os homens não demorassem a agir, foram incapazes de fazer alguma coisa para impedir a fúria do leão.

Protegido pela mata, sabia que tinha pouco tempo. Tinha abatido um deles e viriam atrás dele. Então, lembrou-se das savanas africanas, as saltitantes zebras e antílopes e teve sua recompensa por todos aqueles anos de serviço. Comia a carne humana imaginando ser um suculento quarto de zebra. A carne humana definitivamente não era saborosa e era um animal patético demais para valer a pena ser caçado. As fibras da carne não eram firmes, tenras e o gosto não se comparava à mais asquerosa caça que pudesse conseguir na África. Consumiu o homem até aplacar sua fome e então sumiu pela floresta. Tentou como pôde viver clandestino pelas fazendas caçando o gado gordo dos fazendeiros. Até ser morto por um deles certo dia. O fazendeiro, que com a ajuda de outros homens queria cortar sua cabeça e decorar a parede da sala, se assustou ao perceber que o leão ria satisfeito. Devia estar sonhando com a mãe África quando morreu. Via velozes e elegantes gazelas saltitarem onde só haviam vacas”.

Ao fechar o livro pude entender o que Irene sentiu, de certa forma. Mas as coisas que o livro trazia ao ser lido iam além. Era como se abríssemos não um livro, mas a boca do inferno. Não sei se quero falar dos efeitos que a leitura do livro causavam, ainda.

Espere, escuto um barulho. Vem vindo alguém. A luz se acendeu e ouço passos em minha direção. O pano é erguido, mas continuo como morto. Terei de ser rápido, o legista se desvia na direção dos instrumentos cirúrgicos e pega um bisturi. Eu levanto a mão segurando firme o instrumento cortante. O homem, misto de incredulidade e raiva, usava toda a sua força recuando aquele afiado bisturi que ameaçava a sua vida e o empurrando contra mim. O homem era mais forte que eu e estava vencendo aquela queda de braços mortal. Temia por minha vida. Foi ai que sem entender o que aconteceu, eu vi o homem se desequilibrar e cair sobre mim, com o olho direito perfurado pelo bisturi. Infelizmente minha força não foi suficiente para manter equilibrado e suspenso o peso daquele homem corpulento e a extremidade cortante do bisturi entrou na carne do meu braço perfurando-o até a clavícula. Senti o instrumento raspar no osso e uma dor lancinante me fez gritar. Empurrei o homem levado pela dor e também cai da maca, derrubando comigo os instrumentos cirúrgicos, que por pouco não me atingiram. A perfuração doía muito embora não sangrasse tanto quanto achei que deveria. Eu enfaixei o ombro ferido com um trapo que rasguei dos lençóis e peguei as chaves do cinto do homem morto para poder escapar.

Voltei pro meu apartamento e procurei o livro. Dentro da pia, que estava seca, joguei o livro e enrolei pedaços de papel que pude encontrar, papel-toalha, sacos de pão, jornais velhos. Joguei álcool e toquei fogo em tudo. Rapidamente o fogo se expandiu e a labareda deu lugar a um fogo consumidor que em menos de um minuto devorou tudo, menos, para o meu assombro, o livro. Permanecia intacto, indestrutível. Então eu temi que o que estrava escrito em letras ínfimas na sua contracapa pudesse ser verdade e que para me livrar daquela maldição teria de fazer aquele diabólico ritual.

A terceira história do livro maldito irei narrar agora. Amedrontado pelo que terei de fazer, sem emprego, com a vida totalmente destruída a esta altura, não me resta nada a não ser relatar a cruel história do Padre Josefo:

“O padre, sozinho na igreja pretendia deixar tudo arranjado e sair logo. Sua agenda daquela quinta-feira à tarde encerrara e depois da última confissão, quis ele mesmo se ocupar de umas coisas. Ao virar-se para sair um reflexo de luz passou pela sua visão periférica e surpreendido viu o vitral mais alto de uma das vinte compridas janelas daquele lado ser iluminado pelo sol. Era o desenho de uma pomba vista do alto em posição de voo, circundada por uma áurea dourada. Se não fosse estranho que só aquela pomba fosse iluminada pelo sol, o vidro quebrou-se ainda em vários pedaços e o Padre caiu, segurando o rosário santo e fazendo orações e o sinal da cruz. Uma pomba branca invadiu a igreja e começou a atacar o padre beliscando seus olhos. O homem afligido segurou o pássaro e o jogou longe, ergueu-se, tropeçando e caindo. Estava cego de um olho e tentava se orientar até a sacristia, onde conseguiria as chaves das portas da igreja, que estavam fechadas. A pomba voltou a atacar o padre, que pendurou as chaves na batina e usou o próprio sacrário para se defender da ave raivosa. Conseguiu assim sair da igreja e jogou o sacrário no chão. Ao se ver rodeado de fiéis que atônitos o flagraram sair do templo ensanguentado e com o sacrário nas mãos, correu para o carro e acelerou para qualquer lugar longe dali. Quando a igreja foi aberta no outro dia de manhã e os primeiros fieis buscaram a casa de Deus para suas orações, os gritos foram ouvidos. Na parede do altar, no lugar onde antes havia um cristo de gesso, o Padre Josefo crucificado no lugar. Mãos e pés pregados na cruz da maneira como Jesus foi pregado. Debaixo dos seus pés uma faixa na qual se liam essas palavras:

“Esforça-se homem de Deus, para que os despojos da sua obra apodreçam aos pés dos homens””.

A polícia batia à porta. Eu sabia que era só questão de tempo. A loucura, os demônios, tudo me levou àquilo. Um acesso de loucura me fez cometer o crime, talvez o livro ou o que o livro despertava. Eu matei, eu... não, não ouso, paro por aqui.

Já tinha tudo preparado. Uma mochila com algumas poucas coisas, peças de roupas, livros e alguns mantimentos. Pulei a janela usando a escada de incêndio e não fui notado pelos policiais. Não sabia onde passar a noite. Com algum dinheiro que saquei, aluguel um quarto de hotel e passei a noite ali. A última garrafa de uísque foi comigo e me fez companhia enquanto eu narrava a derradeira história do livrinho.

“O acidente, disseram, tinha sido bem feio. Foi um deslize, coisa boba. Desviei a atenção por um segundo pra mudar a estação da rádio e pum, um animal atravessou a pista e ao tentar recuperar o controle da direção cai da ponte direto no rio. Não sei como sobrevivi e me assolava sempre o pensamento que na verdade eu ainda estava no fundo do rio, morto. Foi no hospital que o vi pela primeira vez. Três metros de altura, não conseguia se manter de pé ali, por isso andava curvado sempre. Um homem albino, de uns olhos incômodos que não conseguia se olhar por muito tempo, transparentes e mesmo assim profundos. As linhas do rosto castigado davam a impressão de ser um ancião, com a idade incontável das eras todas sobre ele. O grande chapéu abaloado caía-lhe sobre os olhos e uma sombra projetada sobre o nariz deixava apenas a ponta aparecer, como se fosse o bico de uma águia. Os dentes amarelos e estragados me enojavam e a língua que raspava sempre os caninos me irritava. Ele sentava-se na minha frente e começava a dizer coisas sem sentido. Queria me enlouquecer, tenho certeza. O homem branco como a neve, que se vestia inteiramente de preto, ria de mim e fazia brincadeiras com os que chegavam e não podiam vê-lo. Numa vez sua orelha caiu e ele juntou e comeu, em outra oportunidade ele saltitava atrás da minha mãe fazendo gestos obscenos e macaqueando enquanto fazia piadas que eu não entendia.

Antes do acidente estava a caminho do seminário, me tornaria padre em breve. Cinco anos devotados à Deus e agora estava numa cama, recém-saído de um coma, tomando sopinha de canudo e passei até a fazer piadas. Meus parentes não me reconheciam mais. Aquela vocação, minha fé, meu recato, tudo pareceu desaparecer com o acidente. Enquanto me recuperava o gigante albino parecia mais próximo e passei a considera-lo como parte da minha vida, como minha sombra. Mas a companhia dele não me fazia bem, alterava o meu humor ou instigava-o de maneira involuntária, ele agia sobre mim de forma espantosa. Depois que sai do hospital, sem saber o que fazer, perdida a vocação do sacerdócio, passei a viver como um libertino do século XVIII. Bebidas e mulheres eram a minha companhia sagrada e em tudo o meu amigo se divertia comigo.

Deixei a casa dos meus pais e fui morar na Europa, mais precisamente na Irlanda. Lá me adaptei bem e entre bêbados e prostitutas encontrei meus amigos e minhas distrações. Um dia enquanto curava uma ressaca brava contemplando a bela e dourada aurora que parecia incendiar as nuvens, eu tive uma visão impressionante. Era uma corça. O bicho, que bebia água no lago, parou e ficou me olhando. Fiquei incomodado, desviei o olhar mas percebi que mesmo depois de tempo ele continuava me fitando. Procurei o meu amigo, o gigante, mas ele não estava por perto. Então com os olhos em chamas e falando como o meu amigo gigante a corça falou: “Uma alma valorosa se resgata à alto preço””.

E depois de secar aquela garrafa de uísque eu dei mais uma olhada no livro, antes de criar coragem para o ato final. Ser amaldiçoado desta forma, sentindo na minha própria pele as penosas e violentas mortes daqueles personagens desgraçados era um castigo cruel demais para ser merecido por alguém que teve o azar de encontrar o maldito livro. Fui parar no necrotério sofrendo a primeira morte, pobre Nubyk. As garras invisíveis quando me rasgaram dilacerando o meu rosto causaram uma dor intensa, mas nada foi pior do que ter a pele, a carne e os ossos congelados. As fibras rasgando-se e partindo-se, o gelo queimava e a dor sentida, espremia meu coração do tamanho de um amendoim esmagado por uma prensa. Eu morri, morreria mais três vezes, a não ser que, a não ser, as palavras. As inscrições em letras pequenas diziam que de 30 em 30 anos o amaldiçoado livro, escrito provavelmente pelo próprio diabo, tinha de ser deixado em qualquer lugar para ser descoberto por alguém e a partir daí o ciclo começava, você podia passa-lo para alguém, se livrando da maldição. Vislumbrando em seu pensamento, de forma bem especifica o rosto da pessoa e dizendo o seu nome em voz alta: “Meus olhos, meus ouvidos, minha boca, miram, escutam, evocam o deus da escuridão. Aprendi os seus caminhos, sei de cor a lição. Capturado eu me rendo a ti e passo a outro a maldição. *******, que sobre ti caia agora o martírio dos quatro ancestrais do livro. Os quatro primeiros amaldiçoados. E que a roda continue a girar”.