Estava eu sentado à mesa com a minha mulher e filhos, ela falando pelos cotovelos e eles se desentendendo como sempre, quando vi, não sei se no corpo ou fora dele, uma luz alva e cândida como o alvorecer de um outono estelar que brotou do nada a mim e se instalou nos meus olhos de uma forma a mim indescritível e simples como a força de um vento primaveril.

Lembro-me de ter dito algo sem sentido que os convencera da minha profissão de homem familiar em órbita ao mundo cotidiano e me equilibrei velejando no sabor daquela onda luminosa circular que se fortalecia do centro da mesa ao encontro da minha face inebriada. Não sei ao certo de que modo, mas ainda sinto nos dedos o frescor magnético daquele contato imediato de grau elevado. Ao fim não havia nem mulher nem filhos comigo, exceto quando os revisito sentado no mesmo cenário e da mesma forma, sensitivo, ainda tendo àquela luz comigo, após sessões de entorpecimentos sóbrios... Éramos felizes, mas eu não era o mesmo e nem quero voltar a ser como mais um entre os mortais adequados às migalhas do espírito. Satã havia me dito que eu seria como a Luz da Manhã, herdade a mim outorgada pela entrega sacrificial legítima, superior ao pacto Abraâmico pela morte do pequeno Isaque.  

Onze anos depois, imagino que não sou deste mundo. Ele é endiabrado e eu o chefe dos demônios, talvez nascido para provar a existência de Deus através do oposto que tenta negá-lo. Mas, de modo sarcástico e honesto, admito. Prefiro as minhas luzes ao empecilho de gente alheia aos meus valores. Quando a polícia me pegou eu advertia à minha esposa, pela língua decepada, de que não fora minha a culpa das vísceras infantis sobre a comida posta, ainda com cheiro de humanidade.

 
John Grafia
Enviado por John Grafia em 27/05/2018
Reeditado em 27/05/2018
Código do texto: T6347862
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