ZOOFRENIA
Outra lua. A jovem recebe a força do satélite, pelas luzes no quarto. Alvoroça-se. Sabe que seus pais já dormem, por isso sai. Abre a janela encostada e senta no peitoril. Pula. Cai no gramado da casa. O céu está límpido como os olhos azulados da garota, apesar do tom escuro. Muito estrelado. Ela fixa os sentidos no astro imenso, poderoso. Sente o cheiro do que virá. Dirige-se ao muro, que delimita o fim da propriedade e o início dum terreno baldio, perfeito aos encontros consigo mesma.
Conforme os passos aumentam, as forças da garota se alteram. Só de camisola e roupa íntima por baixo, não importa. A pele se exaspera. Os olhos eriçam-se. As orelhas crescem. Ficam pontudas, junto ao desejo nervoso que a aflora. Os poros delicados alargam-se para abrigar pelos ásperos de início agudos, mas com pouco íngremes, feitos sob medida à ladeira emocional da metamorfoseada.
Uivos. Alucinadamente jogados ao céu de namorados. Mas a nova menina só pensa no corpo e sangue: de qualquer movente apetecível. Vê ao longe um cachorro deitado, rendido ao matagal incomunicável e bem professo, ao menos nas narinas da pretendente que, como se engatinhando, achega-se à presa. A desrazão material que lhe suspira ágil. Igual à necessidade motriz nos músculos e nervos e ambições gástricas.
Contudo, no meio da distância ao bote, algo a freia. A moça já se tornara da mesma outra em diversas ocasiões. Mas agora protesta. Enfrenta a condição interior, como uma nobre alma escrava que luta pela abolição.
Quem sabe se em segundos? Impera-lhe o gosto dos significados. À medida da dentição estraçalhando os ossos como poeira, as ligações nervosas como doce amargo, as vísceras como afrodisíaco... Outro cachorro lhe surge, justo na hora em que o apetite se transforma em um monstro maior que a sua condição...
Estardalhaços. Berros. Silêncio. Igual à primeira vítima.
A jovem se refaz em casa como quem retorna do malfeito de alguma magia negra ou escolha. Pasma. Refeita num alguém inconjugável. Nua. Fora e dentro. Sobre corpos fragmentados. Roupas esfarrapadas, ainda dando salubre à mastigação barulhenta e, musicalmente, encharcada. Sobre o chão viscoso e rubro. Muito malcheiroso. Tanto que lhe brotam náuseas. Na sala de estar...
Mas não há cachorros como em seu sonho, ou pesadelo.