À espera do fim - CLTS-03

Acordou sobressaltada, assustada, com o celular despertando. Era sábado, sete da manhã, não iria trabalhar, mas esqueceu de desativar o alarme. Olhou para o outro lado da cama, estava vazia. Seu marido também não tinha motivos para estar acordado. Jane levantou e foi até a cozinha preparar o café. O marido devia ter ido à padaria. Enquanto fazia o café, ligou o rádio para ouvir música. Mas um cara apavorado gritava na rádio: “Todos sumiram!!”, dizia ele. Mais um maluco falando besteiras, pensou ela.

A padaria era a 50 metros de casa, e nada do marido chegar. Resolveu mudar de estação, e mais um maluco falando coisas desconexas, pelo menos para ela. Desligou o rádio para não acordar as crianças. Beto estava demorando demais para chegar. Resolveu começar o dia... Foi até a área de serviço e colocou as roupas na máquina para lavar, trocou de roupa e lavou o rosto. Pensava no que iria fazer no fim de semana. Talvez um passeio com as crianças. Jane e Beto trabalhavam muito no escritório de contabilidade que abriram. Seria bom, um dia diferente para as crianças, um casal. Juninho, o mais novo, com 5 anos, e Melissa, a princesinha da casa, com 6, passavam o dia na escola e sua avó as pegava no fim do dia.

Nada do Beto chegar... Resolveu ligar. Sem sinal. Depois de tanto insistir, ouviu o celular dele tocando no quarto, onde estava carregando. Deve ter esquecido, pensou. Foi até o quarto das crianças para acordá-las e dar o café com biscoitos mesmo, já que o pão não chegava. Abriu a porta devagar para não assustá-las. Não estavam lá! Olhou embaixo da cama, eram espertas, deviam estar se escondendo... Não estavam. Começou a procurar pela casa. Nada. Será que o Beto levou as crianças pra dar um passeio? Se perguntava... Mas ele não era disso, e não faria isso sem me avisar.

Penteou o cabelo e foi até a padaria para tentar encontrar o marido. Se as crianças estivessem com ele, com certeza, iria escutar muito! Padaria fechada. Estranho, não era Natal nem 1 de janeiro. Começou a reparar ao seu redor. Estava tão preocupada com as crianças que não se deu conta de nada.

Várias pessoas chorando nas ruas, desesperadas por não saberem de seus familiares. Começou a ficar nervosa com tudo aquilo. Chegou mais perto de um grupo de pessoas e ouviu uma senhora falando que seu marido havia sumido. Que alguém devia ter levado ele, sequestrado. E ficou mais preocupada porque a cadeira de rodas dele havia ficado. Um homem de meia idade estava sentado na calçada, desolado, achando que a esposa havia trocado ele por outro. Dizia que ela andava estranha desde que havia entrado pra “igreja”. “Aqueles crentes safados!” – vociferava.

Jane não sabia o que fazer. O bairro que morava era um lugar pacato, os vizinhos mal se conheciam. Apenas cumprimentos formais pra um ou outro. Moravam ali há dois anos, desde que abriram o escritório. Resolveram sair da cidade grande para dar uma vida melhor pras crianças e ficarem perto da avó, que os auxiliariam no cuidado das crianças. Dona Selma morava ali perto, era uma senhora de seus 65 anos, viúva, e que vivia da pensão do marido, militar reformado que havia falecido um ano antes. Resolveu ir até lá, ver a sogra, quem sabe os três não estivessem por lá...

No caminho, se deparou com vários carros abandonados na rua, com portas abertas. Outros, com motoristas e passageiros feridos, esperando uma ambulância que nunca aparecia. Um caos. Começou a pensar o pior. Correu até a casa da sogra. Tudo fechado. Dona Selma sempre deixava uma cópia da chave no vasinho de filodendro pendurado na varanda. Dizia que era para uma eventual perda da chave. Jane abriu a porta da sala. Tudo em silêncio. Dona Selma sempre acordava muito cedo. Regava as plantas, cuidava da Geminha, uma gata siamesa de quase um ano, adquirida depois da morte do marido. Companhia inseparável de dona Selma.

Nada! Foi até o quarto, cozinha, banheiro, todos os cômodos da casa, não encontrou ninguém. Foi até os fundos, no quintal repleto de arvores frutíferas, uma paixão de dona Selma. A vasilha de comida da Geminha estava vazia. A gata também não estava por lá. Quando já estava saindo pelo portão pra voltar pra casa, na hipótese de Beto ter voltado com as crianças, seu celular tocou. Coração acelerou. Era Diana, sua prima, nervosa, dizendo que sua mãe havia desaparecido. Que já havia ido até a delegacia do bairro para registrar o desaparecimento, mas desistiu, pois, a fila estava dobrando a esquina. Todos com o mesmo propósito e contando histórias bem parecidas. Muitos haviam sumido!

Diana havia ligado para vários parentes para saber se alguém havia falado com a mãe dela. Os poucos que atenderam, disseram que estavam procurando outras parentes também. Jane entrou em desespero total.

Desligou o celular na cara da prima, voltou correndo pra casa na esperança de reencontrar sua família. No caminho, encontrou novamente o homem que estava sentado na calçada. Dessa vez, morto com um tiro na cabeça. Havia se suicidado. Pessoas em volta comentavam que ele estava se culpando por causa da bebida. Que a mulher havia sumido porque ele era um bêbado desgraçado.

Jane chegou em casa. Ninguém. Lembrou que não havia procurado na garagem. Foi como um foguete até lá. Tudo no seu devido lugar. Carro, ferramentas, algumas caixas de livros velhos, uma bola furada, que Juninho havia ganhado no Natal e só. Nem sinal deles. Ligou para alguns amigos do marido. Ninguém atendia – bando de vagabundos, praguejou. Foi até a sala, ligou a TV e começou a passar pelos canais. Todos com o mesmo tema. Acidentes aéreos, engavetamentos, naufrágios, incêndios, fuga de presos, hospitais lotados em toda a cidade, todo o país, todo o mundo! Mudou mais uma vez de canal. Dessa vez, uma mesa redonda, com vários representantes da sociedade e cada um dava sua versão sobre o que teria ocorrido. Uns falavam em abdução alienígena. Que muitos de nós havíamos sido pulverizados por esses monstros. Outros diziam que algum país usou uma arma biológica que só atingia determinados tipos de pessoas. Um padre e um pastor concordavam em um possível arrebatamento, que Jesus tinha voltado e levado os seus. O defensor da versão alienígena confrontou os dois, perguntando por que eles haviam ficado, se Jesus levaria apenas os bons. Mudos.

Jane só queria saber de sua família. Desligou a TV e olhou pra mesa da sala. Notebook ligado. Como não havia pensado nisso. Beto ficava até tarde trabalhando. Olhou o e-mail e as redes sociais. Nada de suspeito ou que pudesse dar uma pista. Ao lado do notebook, uma bíblia que Beto sempre carregava na mochila e nas vezes em que sobrava tempo para ir à igreja. Jane não gostava de ir. Lembra de ter ido poucas vezes, mas sempre achava um tédio. Beto já havia chamado, mas não forçava a barra porque Jane tinha personalidade forte. Viu um marca-texto no meio da bíblia, abriu na página demarcada e tinha um texto sublinhado: “E quando Eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para Mim mesmo, para que onde Ru estiver estejais vós também” (João 14:3). Será que o padre e o pastor estavam falando a verdade? Passou a ler o Apocalipse pois havia ouvido, certa vez, um pastor falando sobre o fim dos tempos. E lendo o livro, passou a comparar com tudo que estava passando na TV. Como assim? Então esse Jesus vem, leva meu marido e meus filhos e me deixa aqui sozinha? Sentiu um vazio enorme dentro de si. Começou a se perguntar por que não havia aceitado o convite do marido de ir na igreja, aquele lugar tão tedioso, cheio de gente sorrindo uma alegria besta. Que horror!

Chegou uma parte do livro que falava sobre demônios, anjos, guerras, dor, tristeza e morte. Parecia um filme de terror. O tempo foi passando, dias, meses, e Jane tentava viver como dava. O escritório de contabilidade agora funcionava em sua sala. Não havia mais clientes importantes para bancar sua remediada vida. Todos os dias, passava horas a fio olhando as fotos de seus filhos e de seu marido. No fundo, ainda tinha uma pífia esperança de eles aparecerem do nada. Na TV, agora companheira fiel, notícias sobre uma guerra sem precedentes no Oriente Médio. Haviam relatos de pessoas atacadas por seres estranhos em todos os lugares. Outra noite, passou ao vivo, um homem se jogando de um prédio de 15 andares. Se esborrachou no chão, mas... não morreu!! Pedaços do homem por todos os lados e ele ainda vivo com o que sobrara de seu tórax e cabeça.

Resolveu ir no mercado, comprar algo pra comer. Estavam tudo pela hora da morte. Morte... já havia pensado nisso várias vezes deste aquele fatídico dia. Nunca teve coragem. Pensava em como Beto reprovaria aquele ato. Jane havia decidido procurar uma igreja, embora tivesse certeza que não daria em nada. Se havia padres e pastores ainda na Terra, é sinal de que eles não eram exemplos a se seguir. Mas foi.

Igreja aberta. Entrou em silêncio, deixou a porta aberta para iluminar o ambiente. Bancos empoeirados, paredes com muitas teias de aranha. Já havia passado quase um ano... Olhou a cruz pendurada na parede. Tirou a poeira do banco com um lenço que sempre trazia em sua bolsa. Sentou-se e começou a dizer algumas palavras a quem deveria estar naquela cruz. Queria aceitar o que tinha acontecido. Já havia entendido, mas aceitado? Não conseguia. Foi uma conversa franca. Falou tudo que estava entalado na garganta. Estava mais leve agora. Levantou, com a sensação de dever cumprido. E se dirigiu até a porta sem olhar pra trás. Ao sair, escuridão. Não se deu conta de quanto tempo permaneceu lá dentro. A escuridão era intensa, quase que palpável. Olhou no relógio, 3 da tarde. Como podia estar escuro? Eclipse? Não mesmo.

Sentiu um aperto no peito. Um frio gélido, quase mórbido, tocou-lhe a pele. As pernas tremeram. Pôde sentir a presença de alguém à sua frente. Um cheiro ruim, forte, asfixiante, tomou conta do lugar. Não conseguia se mexer. De repente, um empurrão lhe joga ao chão. Bateu forte com a cabeça. Uma dor intensa. Quando ia se preparando pra levantar, o autor do empurrão senta por cima de seu corpo, impedindo que se levante. Recebeu dois socos no rosto e sentiu uma unha entrando em sua carne, na altura do peito. Abriu os olhos e viu uma criatura horrenda, aparentava ter uns 3 metros de altura, tinha a aparência de um inseto. A criatura preparou outro soco. Não pôde se defender. Sentiu o gosto acre de sangue a escorrer pela boca. A ferida no peito ardia como que uma queimadura. Muita dor. Apagou.

Sentiu a boca seca. Acordou em um quarto, com duas camas de solteiro, uma escrivaninha no canto e um ventilador que cumpria bem o seu papel. Não tinha noção de onde estava. Tentou levantar-se, mas foi impedida por uma dor lancinante. Então se deu conta de um curativo em seu peito e vários cortes em seu rosto. Soltou um gemido de dor. O dia estava claro, podia ver o sol da janela entreaberta. Tentava lembrar-se do que aconteceu.

A porta do quarto se abre e entra um homem franzino, de seus 50 anos. Trazia uma xícara de chá e um copo de água. Sentou-se ao lado de Jane e ofereceu-lhe a água. Bebeu sem perguntar nada.

– Teve sorte! – disse o homem. Mais um pouco e você estaria em pedaços. Jane arregalou os olhos e indagou o que havia acontecido depois que apagou. O que era aquilo que a atacou. Onde estava e quem era o homem que havia cuidado dela.

Seu Alfredo, esse era o nome dele, pediu para que ela tomasse o chá. Era um analgésico caseiro feito com gengibre. Santo remédio, dizia ele. Não havia mais remédios em farmácias e os chás eram a única alternativa para o tratamento. Após confirmar que o chá havia sido todo tomado, começou a relatar o que havia acontecido. Jane havia sido atacada por um demônio.

– Ele ia despedaçar o seu corpo. Mas não pode te matar, ninguém consegue morrer agora. Sente prazer no sofrimento da pessoa. Um homem que passava de carro viu o ataque e parou pra te ajudar. Ele pegou a chave de roda e acertou no demônio. Conseguiu desviar a atenção do bicho, que foi pra cima dele com todo o ódio possível. Arrancou-lhe os braços e pernas como que se papel fosse. O homem ficou só com o tronco e a cabeça, jogado no chão. O sangue escorrendo, esvaziando seu corpo. Enquanto o demônio se divertia com o que sobrou do homem, eu consegui trazê-la para dentro da igreja. Aqui é o quarto onde o pastor dormia. Eu era o zelador da igreja. Durmo nessa outra cama. O demônio queria arrancar seu coração. O homem te salvou. O que sobrou do corpo dele continua vivo na calçada. O coração batendo no peito rasgado.

Jane indagou por que o homem não havia sumido também. Ele disse que, embora fosse zelador na igreja, não frequentava a mesma. Que era apenas um trabalho pra ele, mas que começou a ler o livro sagrado depois que muitos sumiram. Mas o mais preocupante viria depois, quando seu Alfredo disse que tudo aquilo não teria um final feliz, não haveria um “Venci!”. Que todos iríamos morrer, quando toda aquela tribulação passasse. Ao acordar no outro dia, Jane resolveu ir pra casa, mesmo que desobedecendo os conselhos do velho Alfredo. Saindo à rua, deparou-se com os restos vivos do seu herói. Olhou pro céu. Sol forte. Não conseguia correr com a ferida no peito. Ainda doía muito. Mas precisava ir pra casa. Foi cambaleando, tropeçando em pedaços de corpos. Um alto-falante no poste avisava para não saírem de casa. Muitos demônios estavam atacando naquela região e não havia como se defender. Sentiu fome. Entrou em casa procurando o que comer. Encontrou a geladeira aberta, a cozinha revirada, despensa vazia. Os que ficaram, estavam invadindo as casas à procura de comida e água. Ligou a TV. Um homem falava de paz no Oriente Médio. Um acordo selado com todos os países e Israel havia decretado uma trégua. Pelo menos uma boa notícia, pensou ela.

Não era uma boa notícia. Era a pior de todas. A confirmação do fim.

Foi caminhando até a porta do quarto das crianças. Queria sentir o cheiro delas. Abriu a porta. Não abriu mais os olhos. Jane jazia viva na cama de sua filha. Olhos arrancados. Coração batendo em cima do peito. Respiração ofegante. O lençol branco havia virado uma enorme poça de sangue. Não havia mais nada a se fazer a não ser esperar pelo último versículo.

Tema: Apocalipse

Marcelo Smith
Enviado por Marcelo Smith em 11/05/2018
Reeditado em 11/05/2018
Código do texto: T6333143
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