Tristura
Bem ao norte do globo terrestre, existe um pedaço de terra isolada do resto do mundo. Onde navegantes e barcos repletos de tripulantes se perdiam em suas viagens pelo hemisfério, por conta das tempestades que os arrastavam para a costa da ilha.
Existe nela um povoado localizado bem no centro, com um número considerável de moradores bem peculiares.
Tal ínsula foi batizada com a acunha de Tristura, pois reza a lenda que qualquer ser a pisar neste local seriam perseguidas e dominadas por um demônio antigo que habita por lá, e agora vaga pela cidade levando consigo desgraça, ódio e tristeza.
No ano de mil trezentos e cinquenta e sete, havia desembarcado ali o navio de um colonizador europeu chamado Pedro.
Ele era um amante de lendas antigas e um viajante nato, levava a esposa e filha para suas expedições e lhes passava todo conhecimento adquirido, essa prática perdurava por três gerações em sua família, conhecida como "Os Cabrais" em Portugal.
Atracou nas margens e junto deles uma tropa com quarenta marinheiros ajudava na excursão, vendo a planície do leixão chamou um de seus escrivães e ditou uma carta descrevendo a ilha como bipolar.
"Neste dia de hoje,
Dezoito de maio de mil trezentos e cinquenta e sete.
Eu o saúdo nobre rei de Portugal e Algarve, filho legitimo de Afonso IV.
Descrevo aqui minha chegada e estadia a ilha de Tristura.
Uma ilha de florestas petrificadas pelo gelo, tão densas quanto os mares do oceano
atlântico que banham as praias de nossa terrinha, e de um calor
descomunal longe do centro da mesma. Um pedaço de terra bipolar."
Na mesma manhã, ele e os tripulantes do navio resolveram levantar acampamento para passar alguns dias ali e fazerem expedições pelo local.
No dia seguinte sua esposa e sua filha levantaram mais cedo para preparar o café, elas distanciaram-se do abarracamento em busca de outros mantimentos locais, procurando principalmente na flora local.
Em seguida ouviu-se gritos femininos vindo da floresta, tão aterrorizantemente altos que acordou Pedro e o restante de seus homens, rapidamente ele e os subjugados que o acompanhavam prepararam as armas e foram à procura de sua esposa e filha.
Ao entrarem na mata fechada, sentiram a diferença de temperatura em relação as margens, com a neblina densa e um frio cortante. Pedro percebeu-se só após alguns metros percorridos, ao longe ele ouviu gritos abafados, parecia ser de quem o acompanhava, um a um os gritos ecoavam e sumiam subitamente.
Um forte silêncio o arrepiava, e o vento soprava em sua nuca de pelos eriçados, tomado pelo pavor ele correu para dentro da neblina e lá se deparou com algo nunca visto antes.
O pequeno local era tomado por casas de madeira que cheiravam a umidade e podridão, as pessoas eram apenas errantes que viviam com rostos tristes e olhares vazios. Entrando e saindo de suas casas lamentando-se por algo e queixando-se com murmúrios sorrateiros.
...
Trechos de Minha Tristura - Páginas avulsas do diário de Pedro do ano de mil trezentos e sessenta e quatro.
"Eu caminhava por entre essas pessoas vazias, tomadas por uma sensação de dor descomunal visível em seus rostos, e as perguntava sobre minha esposa e filha, mostrava a elas o desenho de minhas garotas e recebia apenas silêncio e olhares frios.
Um dos moradores locais as reconheceu e apontou para uma casa ao longe, coberta por musgo e cercada pelo que parecia ossos. O cheiro de enxofre se intensificava a cada passo que eu me aproximava do local.
A porta estava recostada, e pela fenda lateral via-se o tremular de uma lamparina fraca. Tento empurrar a porta de uma só vez, porém ela está emperrada, coloco mais força e o barulho vindo dela e tão aterrador quanto os gritos ouvidos antes.
Ao fundo do cômodo o que se via eram velas e crânios, rodeando um trono negro de madeira podre com verniz envelhecido, o cheiro tosco inundava o local e me deixou de certa forma inebriado.
O ser assentado nele era uma criatura alta e fétida. Tinha dentes pontiagudos que lhe saltavam a boca, além de olhos arregalados e amarelados, os braços eram grandes assim como o seu corpo branco e esguio.
Em cada uma de suas mãos sujas por sangue, cinzas e lama, jaziam dois corações... Ele estava de cabeça baixa e ao me ver sorriu e logo se levantou de seu trono, olhando-me diretamente nos olhos, me causando náuseas e uma espécie de transe, ouço o som oco de algo que cai do seu colo e rola até meus pés lentamente até tocá-los, fintando-me novamente estava os olhos frios de minha filha.
A visão embaça e o meu corpo descolore, caminho pra trás e sinto o chão amaciar-se ao toque da sola de meus pés, caio subitamente tendo três últimas imagens alocadas em meu cérebro: A cabeça decepada de minha filha me encarando, os corações ensanguentados naquelas mãos horrendas, e o demônio de pé sorrindo para mim.
...
Ao acordar novamente senti meu corpo molhado e estava muito frio, as velas estavam apagadas e a casa em uma penumbra assustadora, o demônio se foi com elas. Só então que o vazio formou-se dentro de mim, eu chorei por muitas horas, gritei e blasfemei contra os deuses.
Os dias seguiram cinzas e iguais, eu virei um errante também e entendia os que ali moravam.
A dor o medo e os gritos nunca se esvaiam, não tenho ideia de quanto tempo eu fiquei ali, porém acabei por achar meu caminho de volta ao acampamento...
Ao chegar o que vi foi neve e as barracas destruídas pelas fortes tempestades, aquilo me causou confusão pois não era assim quando eu tinha chegado.
Somente o barco estava intacto, como se o demônio quisesse que eu fosse embora e explanasse ao mundo o que vi e vivi aqui, procurei por tudo que me fosse útil e que ainda tivesse utilidade, as joguei no navio e parti, sem saber ao menos como voltar apenas fui."
...
Epílogo
Chegando em sua cidade natal o explorador foi considerado louco, e internado em um hospício cristão. Alguns anos depois morreu de tristeza, deixando para trás seu diário "Trechos de Minha Tristura" que descrevia a ilha como amaldiçoada, destruidora da felicidade e casa de um demônio, o qual ele batizou como 'Taciturno Lúgubre'.
Passados duzentos anos a ilha foi colonizada, e no centro dela foi construída a cidade de Plastem, hoje a história se tornou apenas uma lenda, "A Lenda de Taciturno Lúgubre", da qual é ridicularizada pelos moradores da região, embora muitos digam já terem sentido a presença do demônio os observar ao irem dormir.
Coincidência ou não uma coisa é certa, os moradores da ilha Tristura não sabem sorrir nem amar. Eles não conhecem a alegria ou a paixão, são gélidos e não há vestígios de compaixão neles, o amor se esvai no momento da conquista ou da chegada, é apenas algo passageiro, os mesmos se denominam monstros ou demônios aceitando assim seu papel.
Talvez Taciturno Lúgubre tenha arrancado também os corações dos moradores daquela região, como fez com a filha e a esposa de Pedro.
Fim.
Matheus Lacerda e ideia da excelente escritora anônima e musa de inspiração: Samara Felicia.