INVASOR DE CORPOS
“Sabemos agora que toda partícula tem uma antipartícula, em relação à qual ela pode se anular.(...) Poderia existir um antimundo e antipessoas, feitas de antipartículas. No entanto, se você encontrar seu antieu, não aperte a mão dele! Vocês desapareceriam ambos num grande foco de luz.”
Stephen W. Hawking- Uma Breve História do Tempo.
Eu comecei a imaginar que alguma coisa estava errada comigo quando minha mulher olhou para mim daquele jeito. Foi um olhar de desconfiança, de estranheza, perplexidade. Olhar de alguém que acaba de descobrir no companheiro de vinte anos uma faceta desconhecida.
Não, não era nenhuma coisa ruim. Pelo contrário, era coisa muito boa. Para ela, pelo menos. Vi isso na comunicação não verbal do seu rosto, no movimento dos seus olhos. Ela estava feliz com aquilo que parecia ser uma mudança qualitativa que parecia estar ocorrendo em mim.
Uma mudança para melhor, segundo ela. Mas quando uma pessoa começa a se comportar de modo diferente do que sempre fez, o desconfiômetro é imediatamente ligado. Principalmente desconfiômetro de mulher. Geralmente elas acham que o seu homem está tendo um caso e por isso procura compensar a sacanagem que está fazendo na rua com mais carinho e atenção em casa. Foi isso que ela me disse e eu, juro por Deus, não entendi bulhufas o que estava acontecendo, pois para mim, não estava fazendo nada diferente do que sempre fiz.
Nunca me considerei grande coisa. Sei até que não sou um caráter sem mácula, mas fiel a ela eu jamais deixei de ser. Não estava tendo um caso nem fazendo nada que pudesse me envergonhar. E nada havia mudado em mim. Eu continuava sendo como sempre fui. Mas minha mulher jurava que sim, que eu andava mudado. Que eu tinha me tornado mais carinhoso, mais participativo, mais gentil com ela e com as crianças. Solicitei o testemunho delas e elas confirmaram. Notara também que eu me tornara mais atencioso e simpático com as pessoas. Antes eu era uma espécie de cavalo xucro. Dava patada a torto e a direito. Disse até que eu havia me tornado mais cuidadoso no trânsito. Que não avançara nenhum sinal amarelo no último mês, nem desrespeitara faixa de pedestres, como costumava fazer amiúde.
No entanto, eu tinha certeza que nada mudara com relação às minhas convicções e idiossincrasias. Pedestres continuavam a ser um estorvo para mim. Sinal amarelo uma zona de disputa onde o mais rápido vence. Eu ainda pensava e fazia as mesmas coisas que sempre fiz e não tinha lembrança de qualquer mudança no meu comportamento habitual. Mas ela insistia que sim. Que eu mudara. Que estava até mais viril no sexo. O que, depois de vinte anos com a mesma mulher, reconheçamos, é uma façanha. Eu não acreditava muito nisso. Se fosse com outra mulher podia ser. Touro só é touro por que sempre troca de vaca. Pelo menos era isso que eu costumava dizer para mim mesmo, embora, como já disse, eu não fosse de caçar aventuras fora de casa. Não por virtude de caráter, mas por uma razão muito prática: amantes custam caro e quase sempre dão dor de cabeça.
Mas todas as pessoas que conviviam comigo começaram a dizer a mesma coisa. Que eu estava mudado. Não fisicamente, é claro. Mas de personalidade. Que parecia estar mais jovial, mais inteligente, mais participativo, mais simpático, mais tudo isso e menos egoísta, menos egocêntrico e coisas tais que eu nunca reconheci ser, mas que todo mundo parecia achar que eu me tornando. E eu, na verdade, não via nada daquilo acontecendo em mim.
Salvo o fato de que estava me sentindo cada vez mais fraco, mais ausente de mim mesmo, mais esquecido de si próprio. Sim, houve momentos que eu me peguei na rua sem saber quem era e para onde estava indo. Foram momentos de total apagão neurológico, nos quais a minha própria identidade era esquecida e eu sequer sabia meu nome e onde morava, o que fazia na vida e coisas tais.
No início foram alguns lampejos de esquecimento. Começou assim, com pequenos escotomas, minúsculos laivos de perda de acuidade visual, nos quais eu não conseguia ver as chaves do carro que estavam na minha frente, ou então começava a procurar os óculos que estavam no meu próprio rosto; ou esquecia que o relógio estava no pulso e ficava revirando a casa atrás dele. Eu havia lido que escotomas são manchas que aparecem no campo da sensibilidade visual das pessoas, “escondendo” certos pontos ou regiões do nosso campo visual, e que isso era normal nas espécies mamíferas. Todas as pessoas têm uma espécie de “ponto cego” em seus campos de visão. Mas eu não sabia que isso po-dia ocorrer também com os campos da memória, da sensibilidade tátil e com a sensação do próprio ego.
Era, no entanto, o que estava ocorrendo comigo. Aliás, é o que está ocorrendo comigo. Eu estou simplesmente me apagando aos poucos. Li uma vez um conto em que um feiticeiro desenhava o retrato de uma pessoa, recitava uns mantras e rabiscava uns símbolos demoníacos em cima dele e depois ia apagando aos poucos o desenho com uma borracha. E á medida que ia apagando, a pessoa desenhada se sentia cada vez mais fraca, até morrer, quando os últimos traços eram apagados. Era uma espécie de adaptação do Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde. Mas muito assustador. Principalmente quando a gente sente que um processo desses está ocorrendo conosco e não se consegue descobrir a razão.
Consultei três médicos e nenhum deles encontrou nada de errado comigo. O primeiro foi um clínico geral, que me encaminhou a um neurologista, pois acreditava que o meu mal estava ligado ao sistema nervoso. Eu estava perdendo a energia vital. Algum distúrbio químico estaria acontecendo em meu sistema neurológico, ou então era o estresse da vida que estaria me consumindo. Mas os testes de laboratório, as tomografias computadorizadas, os exames radiológicos, encefalogramas e outros exames a que o neurologista me submeteu, não encontraram absolutamente nada de errado comigo. Também não era Alzheimer, ele me garantiu. Meu organismo estava perfeito. Fui então a um psiquiatra. Bastaram duas seções com ele para perceber que também não estava com nenhuma doença psíquica.
Sim, ninguém me perguntou, mas também fui a um Centro Espírita. O médium que me atendeu disse que o meu caso era de infecção fluídica. Explicou-me que há espíritos de pessoas mortas que encostam em gente viva e ficam sugando as energias espirituais de seus hospedeiros. São como vampiros que, ao invés de sugar o nosso sangue, chupam a nossa energia espiritual a ponto de causar sérios danos à nossa saúde física e psicológica. Com isso ficamos prostrados, somos envolvidos por uma atmosfera mental de pessimismo, medo, insegurança, pois eles enchem nossas psiques de formas mentais grosseiras, que nos martirizam mentalmente levando-nos, muitas vezes, ao descalabro mental. Ás vezes até ao suicídio.
Tudo bem. O diagnóstico pode até ter sido muito preciso, pois é exatamente isso que estou sentindo. Parece que um vampiro me visita toda noite e suga a minha energia vital enquanto estou dormindo. Não é meu sangue que ele leva. Pelos exames que fiz, os meus cinco e meio litros continuam intactos. Para o tamanho de homem que eu sou, o médico disse que está perfeitamente normal.
O trabalho de exorcismo que o médium fez para mim não adiantou nada. Fiz três secções de “mesa branca” e nessas secções ele “conversou” com três espíritos, que segundo ele, estavam “encostados” em mim. Pela conversa percebi que os ditos cujos não sabiam que estavam mortos e por isso andavam “encostados” em mim, na ilusão de ainda ter um corpo. Com isso “chupavam” meu fluído vital. Só não entendi como os três conseguiam conviver no mesmo “cavalo” sem brigar.
A verdade é que, se eles foram embora, levaram também a maior parte do meu fluído vital. Pois eu continuo me sentindo cada vez mais fraco mentalmente, cada vez menos eu mesmo.
Sinto que estou morrendo neurologicamente, que é para não dizer espiritualmente. Apesar de tudo ainda não consegui acreditar nessas coisas. Mas agora sei que é um processo irreversível, que está ocorrendo no interior da minha mente e a partir dos meus neurônios, vai refletindo em todas as células do meu corpo. Mas é um procedimento completamente diferente de todo e qualquer outro processo de morte que algum ser vivo jamais experimentou. É uma morte psíquica, na qual o organismo sobrevive e até se renova, mas é a consciência de si mesmo que está se desvanecendo e o ego vai se apagando como uma vela cujo sebo está acabando. A apoptose e a homeostasia acontecem normalmente, o organismo continua vivo, mas o estofo vital, de onde vem a energia que alimenta a psique, esta desaparece, como em uma bateria gasta, cujas placas estão irremediavelmente oxidadas e não mais permite recargas.
É uma morte ontológica. Nenhuma religião, nenhuma doutrina, nenhuma filosofia sequer conseguiu descrever uma forma de morte assim. As religiões costumam matar o corpo para preservar o espirito e a alma. Mas isso é porque o corpo é a única coisa que se pode ver, ouvir e sentir. Alma e espírito, se é que existem, são realidades que estão além dos nossos sentidos. Só podemos matar aquilo que vemos, ouvimos ou sentimos. Por isso acreditamos que essa suposta parte de nós, que é o espírito, sobrevive à extinção do organismo e que a alma é uma substância imortal que nos é incorporada quando nascemos. E sendo assim, volta ao lugar de onde veio, o centro da energia universal, que é Deus.
Mas há quem diga que alma e espírito também podem morrer. Porque eles não são imortais. Elas são substâncias, uma, o espírito é a soma dos nossos desejos, dos nossos pensamentos, dos nossos sentimentos, das nossas dores e alegrias. Ele nasce conosco e se desenvolve à medida que crescemos. Nosso espírito é o nosso eu. Torna-se bom ou mau na medida em que também escolhemos o caminho do bem ou do mal. E quando o nosso corpo falece, ele sobrevive como energia dispersa pelo ambiente em que ele se formou até que o organismo em que ele habitou se dissolva completamente. Já a nossa alma é a fonte que nos anima. Ela é uma centelha de energia que vem do Cosmo e é sustentada pelo pólo positivo que é a matéria na qual ela se hospeda e pelo pólo negativo que existe em um universo paralelo ao nosso. Quando o pólo positivo, que é o nosso organismo, desaparece, pela morte física, nossa alma sobrevive na sua forma de existência negativa, até que outro pólo positivo, ou seja, outro corpo lhe seja oferecido para que ela possa compor novamente uma corrente energética real. Isso é, em suma, o que os espiritualistas chamam de reencarnação.
Quem me disse isso foi ele, o meu antieu, a centelha negativa da minha alma, que se cansou de ser negativa e agora quer experimentar a positividade. Ele quer ser eu. Ele quer amar, sofrer, gozar, por que no universo paralelo onde ele co-existe, ele reflete tudo que eu sou nesta dimensão, sem, no entanto, sentir essa existência. Por isso é que eu vejo, escuto e sinto o meu espírito se extinguindo lentamente como se fosse uma mina de água que está secando por falta de chuva e a minha alma sendo arrancada de mim como uma rolha de garrafa que está sendo puxada aos poucos. Sinto-me como uma bateria que está sendo descarregada e não consegue pegar mais carga. Mas o meu corpo, esse eu sei que ele está, de alguma forma, se conservando, e cada vez com mais energia, vigor e sensibilidade. É o meu antieu que está fazendo isso.
Não sou eu que digo isso, mas as pessoas que me conhecem. Elas me reconhecem me elogiam por essa mudança, congratulam-se comigo por eu ter me tornado uma pessoa melhor, como eles dizem, mas eu, eu que já fui, eu que estou no estertor da minha agonia nesta dimensão do universo, sei que esse indivíduo simpático, solerte, agradável e viril que eles elogiam e recebem com prazer e satisfação, muito mais do que me recebiam, não sou eu.
Ele, o outro, o meu antieu está ocupando o meu lugar no universo das realidades positivas e assumindo tudo o que eu sou como ser humano. Isso me incomoda, porque sei que ele é melhor do que eu. Ele vai ocupar o meu lugar no afeto dos meus amigos, no coração e no corpo da minha esposa e no afeto dos meus filhos. E ela, eles, os meus filhos, os meus amigos vão amá-lo mais do que amaram a mim. Mas ele não é eu! Ele não é eu!
Eu sei que estou chegando ao fim desta extraordinária experiência. Sei disso porque o tenho visto, sim, já invadindo o próprio campo energético do meu ser, que é o meu espírito. Sim, o outro eu já está andando ao meu lado, já me substitui no espelho, quando me olho, usando as minhas roupas, os meus sapatos, o meu aparelho de barba, os meus óculos, e até os meus mais insignes pensamentos. Nem sei se ainda tenho alguma coisa que possa chamar de minha, ou se ainda posso falar de mim. Ele já se apropriou de quase tudo que eu sou. Já o peguei até fazendo amor com a minha mulher. E ela parecia estar gostando mais do que quando fazia comigo. Ele já assumiu a minha essência física quase que totalmente e eu já não tenho nenhuma força para confrontá-lo.
É com o último lampejo da minha consciência que escrevo este registro. Se não conseguir terminá-lo já sabem por quê. Ele está chegando, se aproximando, eu sinto, e desta vez será definitivo. Ele é o meu antieu.
Não sei como ele conseguiu manipular a mecânica das leis quânticas para romper o muro que separa a dimensão da existência positiva da existência negativa. Mas ele fez isso. E agora está aqui. Mas ele sabe, e eu sei, que nós dois não podemos conviver no mesmo espaço dimensional. Um dos dois terá que se anular. E esse serei eu. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu estou reencarnando sem morrer fisicamente, no mesmo corpo, com o outro pólo da minha alma!
Ele está chegando, e desta vez vem para ficar. Ele sabe que não pode tocar em mim e eu sei que não posso tocar nele. Por isso não quis ocupar o meu corpo abruptamente. Ambos desapareceríamos em uma grande explosão de luz que destruiria todo o universo. Ele é esperto e não quer isso. Ele quer o meu lugar. Talvez estivesse esperando por isso há milhões de anos. Talvez me invejasse e sempre quisesse viver neste lado do seu universo paralelo onde as coisas podem ser sentidas. E foi me puxando para o seu lado do universo aos poucos. Como se fosse um aspirador cósmico. E à medida em que me esvaziava ia assumindo os espaços vazios porque sabia que no universo não podem existir vácuos. Praticamente já assumiu tudo que eu sou. Cada célula do meu corpo. Cada gota do meu sangue. Cada neurônio do meu cérebro. Devagarinho, sem alarde, sub-repticiamente, para que eu não percebesse e achasse um meio de reagir. Agora não tem mais jeito. Os pólos já estão completamente invertidos. Agora ele é o positivo e eu, eu serei o negativo pelo tempo em que este universo durar. De ora em diante não sentirei mais nada. Ele agora já sou eu. Meu antieu.
“Sabemos agora que toda partícula tem uma antipartícula, em relação à qual ela pode se anular.(...) Poderia existir um antimundo e antipessoas, feitas de antipartículas. No entanto, se você encontrar seu antieu, não aperte a mão dele! Vocês desapareceriam ambos num grande foco de luz.”
Stephen W. Hawking- Uma Breve História do Tempo.
Eu comecei a imaginar que alguma coisa estava errada comigo quando minha mulher olhou para mim daquele jeito. Foi um olhar de desconfiança, de estranheza, perplexidade. Olhar de alguém que acaba de descobrir no companheiro de vinte anos uma faceta desconhecida.
Não, não era nenhuma coisa ruim. Pelo contrário, era coisa muito boa. Para ela, pelo menos. Vi isso na comunicação não verbal do seu rosto, no movimento dos seus olhos. Ela estava feliz com aquilo que parecia ser uma mudança qualitativa que parecia estar ocorrendo em mim.
Uma mudança para melhor, segundo ela. Mas quando uma pessoa começa a se comportar de modo diferente do que sempre fez, o desconfiômetro é imediatamente ligado. Principalmente desconfiômetro de mulher. Geralmente elas acham que o seu homem está tendo um caso e por isso procura compensar a sacanagem que está fazendo na rua com mais carinho e atenção em casa. Foi isso que ela me disse e eu, juro por Deus, não entendi bulhufas o que estava acontecendo, pois para mim, não estava fazendo nada diferente do que sempre fiz.
Nunca me considerei grande coisa. Sei até que não sou um caráter sem mácula, mas fiel a ela eu jamais deixei de ser. Não estava tendo um caso nem fazendo nada que pudesse me envergonhar. E nada havia mudado em mim. Eu continuava sendo como sempre fui. Mas minha mulher jurava que sim, que eu andava mudado. Que eu tinha me tornado mais carinhoso, mais participativo, mais gentil com ela e com as crianças. Solicitei o testemunho delas e elas confirmaram. Notara também que eu me tornara mais atencioso e simpático com as pessoas. Antes eu era uma espécie de cavalo xucro. Dava patada a torto e a direito. Disse até que eu havia me tornado mais cuidadoso no trânsito. Que não avançara nenhum sinal amarelo no último mês, nem desrespeitara faixa de pedestres, como costumava fazer amiúde.
No entanto, eu tinha certeza que nada mudara com relação às minhas convicções e idiossincrasias. Pedestres continuavam a ser um estorvo para mim. Sinal amarelo uma zona de disputa onde o mais rápido vence. Eu ainda pensava e fazia as mesmas coisas que sempre fiz e não tinha lembrança de qualquer mudança no meu comportamento habitual. Mas ela insistia que sim. Que eu mudara. Que estava até mais viril no sexo. O que, depois de vinte anos com a mesma mulher, reconheçamos, é uma façanha. Eu não acreditava muito nisso. Se fosse com outra mulher podia ser. Touro só é touro por que sempre troca de vaca. Pelo menos era isso que eu costumava dizer para mim mesmo, embora, como já disse, eu não fosse de caçar aventuras fora de casa. Não por virtude de caráter, mas por uma razão muito prática: amantes custam caro e quase sempre dão dor de cabeça.
Mas todas as pessoas que conviviam comigo começaram a dizer a mesma coisa. Que eu estava mudado. Não fisicamente, é claro. Mas de personalidade. Que parecia estar mais jovial, mais inteligente, mais participativo, mais simpático, mais tudo isso e menos egoísta, menos egocêntrico e coisas tais que eu nunca reconheci ser, mas que todo mundo parecia achar que eu me tornando. E eu, na verdade, não via nada daquilo acontecendo em mim.
Salvo o fato de que estava me sentindo cada vez mais fraco, mais ausente de mim mesmo, mais esquecido de si próprio. Sim, houve momentos que eu me peguei na rua sem saber quem era e para onde estava indo. Foram momentos de total apagão neurológico, nos quais a minha própria identidade era esquecida e eu sequer sabia meu nome e onde morava, o que fazia na vida e coisas tais.
No início foram alguns lampejos de esquecimento. Começou assim, com pequenos escotomas, minúsculos laivos de perda de acuidade visual, nos quais eu não conseguia ver as chaves do carro que estavam na minha frente, ou então começava a procurar os óculos que estavam no meu próprio rosto; ou esquecia que o relógio estava no pulso e ficava revirando a casa atrás dele. Eu havia lido que escotomas são manchas que aparecem no campo da sensibilidade visual das pessoas, “escondendo” certos pontos ou regiões do nosso campo visual, e que isso era normal nas espécies mamíferas. Todas as pessoas têm uma espécie de “ponto cego” em seus campos de visão. Mas eu não sabia que isso po-dia ocorrer também com os campos da memória, da sensibilidade tátil e com a sensação do próprio ego.
Era, no entanto, o que estava ocorrendo comigo. Aliás, é o que está ocorrendo comigo. Eu estou simplesmente me apagando aos poucos. Li uma vez um conto em que um feiticeiro desenhava o retrato de uma pessoa, recitava uns mantras e rabiscava uns símbolos demoníacos em cima dele e depois ia apagando aos poucos o desenho com uma borracha. E á medida que ia apagando, a pessoa desenhada se sentia cada vez mais fraca, até morrer, quando os últimos traços eram apagados. Era uma espécie de adaptação do Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde. Mas muito assustador. Principalmente quando a gente sente que um processo desses está ocorrendo conosco e não se consegue descobrir a razão.
Consultei três médicos e nenhum deles encontrou nada de errado comigo. O primeiro foi um clínico geral, que me encaminhou a um neurologista, pois acreditava que o meu mal estava ligado ao sistema nervoso. Eu estava perdendo a energia vital. Algum distúrbio químico estaria acontecendo em meu sistema neurológico, ou então era o estresse da vida que estaria me consumindo. Mas os testes de laboratório, as tomografias computadorizadas, os exames radiológicos, encefalogramas e outros exames a que o neurologista me submeteu, não encontraram absolutamente nada de errado comigo. Também não era Alzheimer, ele me garantiu. Meu organismo estava perfeito. Fui então a um psiquiatra. Bastaram duas seções com ele para perceber que também não estava com nenhuma doença psíquica.
Sim, ninguém me perguntou, mas também fui a um Centro Espírita. O médium que me atendeu disse que o meu caso era de infecção fluídica. Explicou-me que há espíritos de pessoas mortas que encostam em gente viva e ficam sugando as energias espirituais de seus hospedeiros. São como vampiros que, ao invés de sugar o nosso sangue, chupam a nossa energia espiritual a ponto de causar sérios danos à nossa saúde física e psicológica. Com isso ficamos prostrados, somos envolvidos por uma atmosfera mental de pessimismo, medo, insegurança, pois eles enchem nossas psiques de formas mentais grosseiras, que nos martirizam mentalmente levando-nos, muitas vezes, ao descalabro mental. Ás vezes até ao suicídio.
Tudo bem. O diagnóstico pode até ter sido muito preciso, pois é exatamente isso que estou sentindo. Parece que um vampiro me visita toda noite e suga a minha energia vital enquanto estou dormindo. Não é meu sangue que ele leva. Pelos exames que fiz, os meus cinco e meio litros continuam intactos. Para o tamanho de homem que eu sou, o médico disse que está perfeitamente normal.
O trabalho de exorcismo que o médium fez para mim não adiantou nada. Fiz três secções de “mesa branca” e nessas secções ele “conversou” com três espíritos, que segundo ele, estavam “encostados” em mim. Pela conversa percebi que os ditos cujos não sabiam que estavam mortos e por isso andavam “encostados” em mim, na ilusão de ainda ter um corpo. Com isso “chupavam” meu fluído vital. Só não entendi como os três conseguiam conviver no mesmo “cavalo” sem brigar.
A verdade é que, se eles foram embora, levaram também a maior parte do meu fluído vital. Pois eu continuo me sentindo cada vez mais fraco mentalmente, cada vez menos eu mesmo.
Sinto que estou morrendo neurologicamente, que é para não dizer espiritualmente. Apesar de tudo ainda não consegui acreditar nessas coisas. Mas agora sei que é um processo irreversível, que está ocorrendo no interior da minha mente e a partir dos meus neurônios, vai refletindo em todas as células do meu corpo. Mas é um procedimento completamente diferente de todo e qualquer outro processo de morte que algum ser vivo jamais experimentou. É uma morte psíquica, na qual o organismo sobrevive e até se renova, mas é a consciência de si mesmo que está se desvanecendo e o ego vai se apagando como uma vela cujo sebo está acabando. A apoptose e a homeostasia acontecem normalmente, o organismo continua vivo, mas o estofo vital, de onde vem a energia que alimenta a psique, esta desaparece, como em uma bateria gasta, cujas placas estão irremediavelmente oxidadas e não mais permite recargas.
É uma morte ontológica. Nenhuma religião, nenhuma doutrina, nenhuma filosofia sequer conseguiu descrever uma forma de morte assim. As religiões costumam matar o corpo para preservar o espirito e a alma. Mas isso é porque o corpo é a única coisa que se pode ver, ouvir e sentir. Alma e espírito, se é que existem, são realidades que estão além dos nossos sentidos. Só podemos matar aquilo que vemos, ouvimos ou sentimos. Por isso acreditamos que essa suposta parte de nós, que é o espírito, sobrevive à extinção do organismo e que a alma é uma substância imortal que nos é incorporada quando nascemos. E sendo assim, volta ao lugar de onde veio, o centro da energia universal, que é Deus.
Mas há quem diga que alma e espírito também podem morrer. Porque eles não são imortais. Elas são substâncias, uma, o espírito é a soma dos nossos desejos, dos nossos pensamentos, dos nossos sentimentos, das nossas dores e alegrias. Ele nasce conosco e se desenvolve à medida que crescemos. Nosso espírito é o nosso eu. Torna-se bom ou mau na medida em que também escolhemos o caminho do bem ou do mal. E quando o nosso corpo falece, ele sobrevive como energia dispersa pelo ambiente em que ele se formou até que o organismo em que ele habitou se dissolva completamente. Já a nossa alma é a fonte que nos anima. Ela é uma centelha de energia que vem do Cosmo e é sustentada pelo pólo positivo que é a matéria na qual ela se hospeda e pelo pólo negativo que existe em um universo paralelo ao nosso. Quando o pólo positivo, que é o nosso organismo, desaparece, pela morte física, nossa alma sobrevive na sua forma de existência negativa, até que outro pólo positivo, ou seja, outro corpo lhe seja oferecido para que ela possa compor novamente uma corrente energética real. Isso é, em suma, o que os espiritualistas chamam de reencarnação.
Quem me disse isso foi ele, o meu antieu, a centelha negativa da minha alma, que se cansou de ser negativa e agora quer experimentar a positividade. Ele quer ser eu. Ele quer amar, sofrer, gozar, por que no universo paralelo onde ele co-existe, ele reflete tudo que eu sou nesta dimensão, sem, no entanto, sentir essa existência. Por isso é que eu vejo, escuto e sinto o meu espírito se extinguindo lentamente como se fosse uma mina de água que está secando por falta de chuva e a minha alma sendo arrancada de mim como uma rolha de garrafa que está sendo puxada aos poucos. Sinto-me como uma bateria que está sendo descarregada e não consegue pegar mais carga. Mas o meu corpo, esse eu sei que ele está, de alguma forma, se conservando, e cada vez com mais energia, vigor e sensibilidade. É o meu antieu que está fazendo isso.
Não sou eu que digo isso, mas as pessoas que me conhecem. Elas me reconhecem me elogiam por essa mudança, congratulam-se comigo por eu ter me tornado uma pessoa melhor, como eles dizem, mas eu, eu que já fui, eu que estou no estertor da minha agonia nesta dimensão do universo, sei que esse indivíduo simpático, solerte, agradável e viril que eles elogiam e recebem com prazer e satisfação, muito mais do que me recebiam, não sou eu.
Ele, o outro, o meu antieu está ocupando o meu lugar no universo das realidades positivas e assumindo tudo o que eu sou como ser humano. Isso me incomoda, porque sei que ele é melhor do que eu. Ele vai ocupar o meu lugar no afeto dos meus amigos, no coração e no corpo da minha esposa e no afeto dos meus filhos. E ela, eles, os meus filhos, os meus amigos vão amá-lo mais do que amaram a mim. Mas ele não é eu! Ele não é eu!
Eu sei que estou chegando ao fim desta extraordinária experiência. Sei disso porque o tenho visto, sim, já invadindo o próprio campo energético do meu ser, que é o meu espírito. Sim, o outro eu já está andando ao meu lado, já me substitui no espelho, quando me olho, usando as minhas roupas, os meus sapatos, o meu aparelho de barba, os meus óculos, e até os meus mais insignes pensamentos. Nem sei se ainda tenho alguma coisa que possa chamar de minha, ou se ainda posso falar de mim. Ele já se apropriou de quase tudo que eu sou. Já o peguei até fazendo amor com a minha mulher. E ela parecia estar gostando mais do que quando fazia comigo. Ele já assumiu a minha essência física quase que totalmente e eu já não tenho nenhuma força para confrontá-lo.
É com o último lampejo da minha consciência que escrevo este registro. Se não conseguir terminá-lo já sabem por quê. Ele está chegando, se aproximando, eu sinto, e desta vez será definitivo. Ele é o meu antieu.
Não sei como ele conseguiu manipular a mecânica das leis quânticas para romper o muro que separa a dimensão da existência positiva da existência negativa. Mas ele fez isso. E agora está aqui. Mas ele sabe, e eu sei, que nós dois não podemos conviver no mesmo espaço dimensional. Um dos dois terá que se anular. E esse serei eu. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu sei disso. Eu estou reencarnando sem morrer fisicamente, no mesmo corpo, com o outro pólo da minha alma!
Ele está chegando, e desta vez vem para ficar. Ele sabe que não pode tocar em mim e eu sei que não posso tocar nele. Por isso não quis ocupar o meu corpo abruptamente. Ambos desapareceríamos em uma grande explosão de luz que destruiria todo o universo. Ele é esperto e não quer isso. Ele quer o meu lugar. Talvez estivesse esperando por isso há milhões de anos. Talvez me invejasse e sempre quisesse viver neste lado do seu universo paralelo onde as coisas podem ser sentidas. E foi me puxando para o seu lado do universo aos poucos. Como se fosse um aspirador cósmico. E à medida em que me esvaziava ia assumindo os espaços vazios porque sabia que no universo não podem existir vácuos. Praticamente já assumiu tudo que eu sou. Cada célula do meu corpo. Cada gota do meu sangue. Cada neurônio do meu cérebro. Devagarinho, sem alarde, sub-repticiamente, para que eu não percebesse e achasse um meio de reagir. Agora não tem mais jeito. Os pólos já estão completamente invertidos. Agora ele é o positivo e eu, eu serei o negativo pelo tempo em que este universo durar. De ora em diante não sentirei mais nada. Ele agora já sou eu. Meu antieu.