DCUW 01 O Viajante

O Viajante

O. S. Berquó

Sentei-me em minha poltrona preferida e peguei o leitor de e-book. Mal tinha começado a leitura e Júlia saiu do banheiro, pouco depois entrou na sala conferindo o conteúdo de sua bolsa.

- Tem certeza que não quer ir comigo, amor?

- Júlia, você sabe que não gosto muito deste tipo de evento. Além do mais, estou lendo um livro que me interessa para o trabalho. Pode ser promissor.

Júlia riu quando eu disse isto.

- Que desculpa esfarrapada, não é aquele e-book de ficção que você me falou?

Dei uma piscadela e sorri.

Ela entendeu, me deu um beijo e disse que não demoraria.

Depois veio o acidente que mudaria nossas vidas.

Mudaria?

**********

Não sei quanto tempo depois - as medidas se perderam depois que acionei a esfera - eu estava no meio do oceano olhando para o mar calmo que se apresentava a minha frente com a alma doída de desespero e pude perceber um leve ondular na superfície de azeite.

Os outros marujos, companheiros de infortúnio, jaziam semi-desmaiados no fundo da embarcação. A luminescência esverdeada das algas que se acendiam com o movimento repentino do mar pouco a pouco foi dando lugar a um tom azulado, leve, profundo. Fiquei meio que hipnotizado pela beleza dos movimentos do mar, pelo bailado harmônico das marolas que como a seguir os volteios de uma batuta invisível brincavam com as ondas tímidas e direcionavam a claridade que vinha das profundezas.

Quase conseguia ouvir a melodia chorosa da luz moldada pelo dançar das águas. E foi ai que percebi. Bem junto à amurada em que escorava meu corpo cansado, quase ao limite azul da superfície, uma imagem era formada. Meu coração parou naquele momento: Júlia. O rosto de Júlia sorria para mim logo abaixo do início das águas. Senti um gosto salobro em meus lábios. Mas não era o mesmo dos borrifos das ondas daquele mar gigantesco, as lágrimas que fugiam de meus olhos sem esperanças invadiam minha boca e temperavam com o seu sal o meu sofrimento.

*****

No momento em que recebi a confirmação da morte de Júlia, no hospital central da ilha, foi como se o mundo tivesse acabado. Uma escuridão repentina invadiu meus olhos naquele instante e foi tão fundo dentro de mim que a sensação foi de ter a alma despedaçada. Acordei minutos mais tarde dentro de um quarto que não era o nosso. Lembrei-me do que estava acontecendo... e chorei.

No dia seguinte tive que ser forte para prestar minhas últimas homenagens ao grande amor da minha vida. Mas em meio a dor cruel da despedida, tive momentos de felicidade ao ver o quanto aquela jovem maravilhosa era querida por seus colegas de trabalho e seus alunos de história.

Quando conheci aquela que viria a ser minha companheira para toda a vida, ela era a nova contratada do museu marítimo de Nantucket. Cabia a ela ministrar aulas sobre a história da ilha e acompanhar turistas em suas visitas aos diversos recantos do museu. Eu estava em um grupo dirigido por Júlia.

Fiquei encantado desde o primeiro momento. Claro, ela era muito bonita, mas meu interesse ia além. Por um destes acasos da vida fui encontrar uma linda conterrânea numa ilha baleeira pertencente ao estado de Massachusetts. Júlia era, assim como eu, gaúcha de Porto Alegre. Coincidência que, não posso negar, facilitou as coisas para mim.

Em pouco tempo começamos a sair, e como a ilha não oferecia muitas oportunidades de laser, nosso namoro foi relativamente breve. Decidimos morar juntos em menos de seis meses.

Dias depois da tragédia que tinha levado Júlia, resolvi voltar ao trabalho. Eu precisava fazer alguma coisa para me afastar um pouco daquele sofrimento atroz que não me deixava dormir, que me fazia acordar aos soluços noite após noite.

Minha querida esposa se fora em decorrência de um estúpido acidente de trânsito. Chovia naquela noite. Ela não tinha ainda muita experiência no trânsito, mesmo assim não deixou de ir para seu encontro com o grupo de estudos esotéricos. Em uma das curvas da estrada...

Tínhamos sabido da novidade há pouco mais de um mês. Ela estava grávida. Sempre me vi como uma pessoa feliz, mas após aquela noticia que minha querida menina – como costumava chamá-la - me deu, com o olhar marejado pela emoção e o sorriso mais belo que jamais vira em toda a minha vida, tive a maior sensação de felicidade que imagino que uma pessoa possa ter. Foi um sentimento de plenitude, de vida, de amor intenso. Meu coração disparou naquele momento. E quando a abracei, quando a aconcheguei junto ao meu peito, pude sentir, nitidamente senti, que seu coração batia tão forte quanto o meu.

Depois de tudo, quando ia ao laboratório, onde sempre passei a maior parte dos meus dias e noites, questionava meu empenho. Eu poderia ter dedicado bem mais do meu tempo a ela. Sempre fui meio obcecado por minhas pesquisas cientificas e estava chegando a um estágio muito importante e promissor: o protótipo do Viajante estava quase pronto e isto exigia muito de mim.

Meses antes, eu estava cheio de teorias e equações na cabeça e com uma nítida sensação de estar num beco sem saída. Comecei, então, a praticar um hábito sugerido por um antigo professor de física nuclear dos tempos de faculdade: “leia ficção cientifica, meu jovem” dizia ele. Segundo este professor, e ele tinha razão, cientistas sabem muito de ciências, cálculos, teorias e equações, mas tem péssima imaginação. Ele comentou que leu sobre isto em algum lugar e que não foi por outro motivo que ao longo da história as inovações tecnológicas e o progresso da ciência parecem ter perseguido os vôos imaginários dos escritores de ficção.

Li de tudo. Os clássicos, claro, como Júlio Verne, K. Dick e Isaac Asimov, mas fui além e busquei novas visões em autores menos conhecidos... ou até quase totalmente obscuros. E foi numa destas garimpagens literárias que encontrei algo diferente. Parecia uma grande bobagem, e foi exatamente isto que me atraiu. A “teoria” que me interessava estava em um conto relativamente curto chamado “A Décima Segunda Porta”, escrito por O. S. Berquó. Fazia parte de um e-book de contos deste autor com o nome de “A Fórmula do Nada”, que encontrei numa de minhas incursões pelos arquivos menos votados da Amazon.

Passei a encarar os pontos frágeis de minha pesquisa pela perspectiva daquela história. Acabei mudando totalmente o rumo de algumas abordagens até que cheguei ao novo projeto do “Viajante”.

Fiquei muito empolgado em fugir do beco sem saída em que me encontrava nas pesquisas, mesmo que fosse para perseguir uma idéia quase absurda, uma verdadeira heresia em termos de projetos de ciências. E este entusiasmo, esta nova e inusitada abordagem acabou por roubar um pouco mais do tempo que poderia ter dedicado a Júlia.

Pensar nisto, quando ia ao laboratório, acabava por me trazer um sentimento ambíguo. Por um lado me deixou mais tempo longe de minha esposa, por outro, agora vejo, de algum modo, nos aproximou.

Diferentemente de mim, ela foi sempre uma pessoa espiritualizada, que acreditava em vida após a morte, reencarnação, destinos, universos paralelos e coisas semelhantes. Eu, como cientista, nunca dei crédito para este tipo de coisa. Mas, depois daquele continho diminuto e do progresso que tive em dar outros rumos ao meu projeto, passei a ver as coisas de outro modo. Parecia que Júlia estava mais viva. Ela, durante aquele tempo todo, agora sei, viveu mais do que eu. O engraçado é que ela dizia que eu estava fora do meu próprio tempo. Nunca entendi aquilo, mas, mesmo sem entender, então poderia experimentar.

Voltei para casa para organizar as coisas antes de partir. Como não sabia quanto tempo ficaria ausente, fui até os vasos de especiarias que Júlia cultivava com zelo e enterrei os feijões que ela tinha comprado dias antes. Reguei abundantemente, como ela faria. Peguei minha jaqueta e saí.

Até então as incertezas de uma viagem no tempo, além, claro, das questões técnicas do Viajante, me causavam receio em ativar o artefato. A profusão de paradoxos que tal aventura encerra não tem par em outra atividade humana. Voltar no tempo? Alterar algo que já aconteceu? As implicações deste tipo de coisa poderiam ser imensas, pesadas e, principalmente, imprevisíveis. Na teoria eu tinha certeza de que era possível, mas e na prática? O que de fato poderia ocorrer? O paradoxo que principalmente me afligia era que se eu ativei o viajante porque Júlia morreu, voltei e impedi sua morte, não haveria motivo para eu acionar o Viajante e nada aconteceria.

Mas existiam outras possibilidades. E se a teoria de linhas do tempo estivesse certa? O que me importaria que eu passasse a viver com Júlia e ser feliz mesmo que em outra linha de tempo, num universo paralelo? Cheguei ao cais com mais dúvidas do que com certezas. O loop temporal que eu estava prestes a abrir, de algum modo, já fazia parte de mim.

O próprio ancoramento, por assim dizer, que me possibilitaria retornar não era uma certeza. Baseava-me, vagamente, na história de Jamil e sua Décima Segunda Porta, quer dizer, que há algo além de nós, além da física de partículas como conhecemos. Na verdade, era uma conclusão contrário sensu. Minha relação com Júlia, disso tinha plena certeza, era algo mais forte do que o tempo, e somente isto poderia me fazer voltar.

Cansado daquele sentimento de vazio que me consumia, contrariando todas as regras de segurança do instituto e aproveitando-me da condição de pesquisador chefe, retirei o Viajante de seu habitáculo e coloquei-o no bolso direito da jaqueta, já que no bolso esquerdo ficavam minhas chaves e não queria causar danos ao artefato. Meu objetivo era ativá-lo no lugar certo. Peguei meu carro e segui direto para a marina.

Nosso veleiro estava atracado nas docas do lado leste. O Blue Wind, um pequeno veleiro branco de doze pés, era o lugar em que mais ficávamos em lugar nenhum, como, brincando, costumávamos dizer. Sempre que tínhamos uma folga juntos, tomávamos nossa pequena embarcação e partíamos meio sem rumo. Parecia, portanto, ser o lugar ideal para finalmente ativar a esfera de força. Ali teria tudo de Júlia. Seu cheiro, suas lembranças, talvez até o som de suas risadas ainda ecoassem pelos recônditos daquele pequeno barco. Era o ancoramento que eu buscava.

Não demorei a chegar, o porto de Nantucket ficava bem perto dos laboratórios do instituto.

Desci à cabine sem acender a luz. Não queria que aquilo demorasse muito tempo. Tirei a esfera de meu bolso e acionei o primeiro código. O Viajante disparou um flash prateado e começou a estabilizar sua cor azulada, esperando o próximo comando.

O princípio fundamental do Viajante, uma pequena esfera de carbono vítreo que encerra um núcleo de íons quânticos com spins contrários, era interagir com o usuário de modo a torná-lo parte do elemento com mobilidade temporal. Eu ainda não dominava todos os detalhes de comando, mas entendia sua forma básica de funcionamento, de modo que não tinha nada a perder. Tudo o que mais me importava na vida tinha sumido num estúpido instante de tempo.

******

Não me esqueço da expressão calma nos olhos de Júlia ao me fitar de dentro das águas azuis. Aquela visão inacreditável parecia, em minha situação desesperadora, um convite ao descanso. E o que mais eu poderia querer? Encontrar o alívio para todas as minhas dores, acabar com meu sofrimento nos braços dela, era muito mais que um prêmio. Acho que fiquei um longo tempo olhando para seu rosto. Olhar para ela me enternecia, aliviava. Mas houve uma mudança. Os olhos de Júlia começaram a demonstrar aflição. Continuei estático, paralisado, mirando fixamente a imagem da mulher que mais amei. Ela, por fim, ergueu seus braços em minha direção num nítido convite para que me juntasse a ela nas profundezas. Não resisti. Deixei meu corpo escorregar por sobre a amurada baixa do bote baleeiro e me juntei a minha amada nas geladas águas do Pacífico.

Nem bem tinha me afastado da embarcação, tentando encontrar Júlia em meio a coloração azul-esverdeada que me circundava, e um estrondo enorme explodiu atrás de mim jogando para o alto meus companheiros e tudo o que havia na embarcação. Pedaços do barco se espalharam ao meu redor. A claridade fraca que vinha das águas me permitiu ver o contorno escuro do enorme cachalote. Ele tinha acabado de destruir o baleeiro, menos de um minuto depois de eu entrar na água. A luz azulada tinha sumido, restando apenas a luminescência esverdeada das algas do Pacífico. Júlia não estava mais ali.

Desesperado, nadei na semi-escuridão até encontrar um pedaço grande da madeira dos destroços no qual me agarrei. Estava explicado o sumiço do terceiro barco, aquele que se perdeu e nunca foi encontrado. Tentei localizar os outros marujos, mas não achei ninguém, eu estava sozinho no meio do oceano. A visão de Júlia, parece, veio apenas para me tirar dali antes do ataque.

Quando amanheceu e despertei sobre aquela diminuta parte de nosso bote, fiquei pensando em como fui parar ali, em como dedilhei a esfera no interior do Blue Wind e em o que realmente estava esperando quando acionei os comandos. Não sabia o que pensar. Às vezes me sentia mais próximo de Júlia, como na noite anterior em que sua imagem me salvou. Seria algum tipo de contato? De algum modo estávamos nos comunicando? Minhas precárias condições, imagino, embaralhavam o meu raciocínio. O ocorrido seria apenas a imaginação de um desesperado? Ou, talvez, nada disto estivesse realmente acontecendo e minha mente fosse uma espécie de prisioneira de um vácuo temporal e estivesse vivendo de sonhos?

Como cientista, e em tais condições, questionava minha sanidade. Acionar um protótipo de tal poder e do modo como fiz foi sem a menor dúvida o ato de uma mente atormentada. E tudo o que aconteceu até ali desde que dedilhei a superfície do Viajante era tão inesperado e incrível que pensar assim me levava a desconfiar de tais acontecimentos.

*********

Lembrava-me bem, a inicialização do processo foi simples, como o esperado. Segurando-me no balcão da cozinha do nosso veleiro para não cair com o balançar do mar agitado, pressionei a esfera nos pontos e no ritmo indicado e vi seu brilho se intensificar por apenas um instante.

Quando abri os olhos novamente ainda estava escuro. Não sei por quanto tempo estive desacordado, ou na espécie de limbo que pode envolver uma movimentação temporal artificialmente induzida, mas a julgar pela dormência que sentia nas pernas parecia ser um largo período. Isto não estava previsto, pelos meus cálculos iniciais a transferência seria imediata, o que não parecia ser o caso. Continuava no barco, isto era certo, pois podia sentir nitidamente o balançar da embarcação. Aliás, o mar parecia estar bem mais encapelado.

Ainda no escuro, enquanto tateava o entorno em busca do Viajante e de algo em que me segurar, percebi um odor diferente, que não devia estar ali. Era fétido, de ranço gorduroso ou algo assim. À medida que minha consciência retornava à normalidade, percebi outras coisas assustadoras. O mar estava muito revolto, e ouvia sons. Gente falando. Numa das guinadas do barco, já erguido, senti que algo bateu contra meus pés. Tateei e encontrei a esfera. Coloquei-a no bolso, puxei o zíper e saí em busca da escada para subir ao convés.

Meu coração se acelerou naquele momento. O porão da embarcação era enorme, não era o Blue Wind. A uns cinco metros adiante de mim, pude ver o clarão que parecia ser de um relâmpago entrando por uma abertura na parte de cima, corri até lá e deparei-me com uma escada de madeira. Subi lentamente e quando coloquei minha cabeça para fora senti uma espécie de vertigem. O convés estava em enorme confusão. Marujos apressados corriam para todos os lados para dominar a embarcação que sofria com uma borrasca pesada. Havia homens nas velas, outros tentavam amarrar os barris que se espalhavam contra a amurada.

Subi os últimos degraus e me segurei nas cordas de estai da verga. Os relâmpagos continuavam de modo que em um desses clarões, quando me aproximei do castelo de popa, pude ver o nome da embarcação: Essex.

Fiquei lívido, eu conhecia a história, qualquer um de nossa cidade conhecia. O Essex tinha sido um baleeiro que partiu em sua ultima viagem em novembro de 1820. Acabou por ser afundado por um cachalote furioso nesta sua derradeira aventura. Tal fato tinha inclusive inspirado Melville a escrever o romance Moby Dick.

O viajante tinha funcionado, afinal. Em poucos instantes eu saltei duzentos anos para o passado. Por um momento, mesmo sem perceber, fiquei meio que inebriado, vaidoso talvez, surpreso pelo sucesso, quase que certamente. Afinal, era um protótipo, e seu uso seguramente uma irresponsabilidade. Um vagalhão enorme, porém, estourou na amurada de bombordo e tirou-me do transe delicioso do triunfo.

Tentei voltar ao porão. Quando estava quase chegando às escadas, contudo, fui puxado violentamente pelo colarinho. Um Marujo mal encarado em um grito rouco de um inglês arcaico me ordenava a ajudar a prender os barris. Aos tropeços e molhado até os ossos, comecei a recolher os barris e amarrar às cordas junto a dois tripulantes.

Meu trabalho foi minha salvação. Quando a tempestade amainou e pudemos nos recolher, exaustos, aos reservados da tripulação menos graduada no castelo de proa eles perceberam que eu era um clandestino. Fui levado ao capitão. O interrogatório foi breve e, como além de ter trabalhado duro durante a tempestade eles achavam que eu me vestia e falava de modo estranho, passei por algo como um lunático e fui poupado de castigos maiores. Coube a mim a partir daí auxiliar o cozinheiro do navio. Não posso negar que foi um grande alívio receber tal incumbência e não ser açoitado ou jogado ao mar sem dó nem piedade.

Nos dias seguintes, embora toda a tensão dos acontecimentos, tive o prazer de poder andar pelos recantos de tão famoso navio. Sempre que me sobrava tempo, passeava pelo convés absorvendo um pouco daquele museu vivo em que me encontrava. O Essex tinha quase trinta metros de comprimento e possuía três mastros, além do gurupés. Construído em carvalho sólido, com revestimento de pranchas de pinho de dez centímetros ele ainda, apesar dos anos, parecia em muito bom estado.

Mesmo assim, não consegui ficar totalmente calmo. Entre todas as pessoas que estavam naquela embarcação eu era o único que sabia qual seria o seu destino. Confesso que ficava gelado quando pensava nisto.

Os dias foram passando e nos aproximamos do cabo Horn. Foi uma travessia tempestuosa em que enfrentamos vagalhões enormes que normalmente vinham de estibordo, mas, pela habilidade do capitão e do imediato, sempre posicionados a barlavento, conseguimos contornar o cabo mais temido do mundo e entrar em águas do Pacífico.

Depois da tempestade um período de calmaria tomou aquele espaço vasto de oceano. Estávamos no sul do continente americano, zona conhecida de caça aos cachalotes. Depois de uma semana os marujos já estavam impacientes diante da demora em avistar os borrifos característicos dos grupos de baleias vagando pelo oceano. O cesto da gávea era permanentemente ocupado por dois marujos de olhos atentos.

Depois de um dia duro descascando quilos de batatas e cozinhando outro tanto de porco salgado, me recolhi a minha rede no convés inferior para descansar meu corpo moído. Abri o zíper de meu bolso e apanhei a esfera. Olhei para meu protótipo com orgulho. Ele tinha me levado até ali, se ao menos funcionasse parcialmente como eu havia projetado poderia me trazer esperança de vida. Sim, vida.

Eu não era nada sem Júlia. O diabo foi perceber isto somente depois de sua morte. Mas se aquele pequeno artefato funcionasse como eu imaginava, se eu conseguisse dominar aquele poder imenso que tinha em minhas mãos... O remorso me corroia quando as imagens de minha menina invadiam meus pensamentos naqueles momentos de solidão. Seus sonhos de viajar, conhecer outros lugares, culturas exóticas, povos de lugares distantes nunca me empolgaram. Ela tinha fascínio por culturas ancestrais como os incas, maias e astecas, como os kmer do Camboja, a dinastia ming na china. “Estes lugares são museus a céu aberto” dizia ela. Lembrar-me destas coisas que ela me segredava com entusiasmo e de meu contido desdém me esmagava o peito.

Por outro lado, meu sentimento de remorso nos mantinha unidos. Por isto fui até nosso barco. Esta era a teoria maluca. Algo de especial. Sim, não material. Uma espécie de emaranhamento quântico pessoal. Embora as coisas não estivessem ocorrendo como eu desejava – ou imaginava- um fato não poderia ser ignorado: eu tinha obtido mobilidade temporal... e isto me aproximava dela.

Não posso esquecer, no inicio do terceiro dia de calmaria Nickerson, do alto do cesto da gávea, gritou: baleia!!!. Eu me encontrava junto à mezena, na parte de trás do navio, iniciando meu dia de descascar batatas. Todos correram para a amurada de estibordo para avistar os borrifos que aconteciam a talvez meia milha de onde estávamos. Meu coração gelou por um instante. Eu conhecia a história e, além disto, Júlia nunca se cansou de me abastecer com novos pormenores sempre que, depois de alguma aula ou debate, quando ela chegava, entusiasmada, com aquele brilho nos olhos de quem gosta do que faz, me contava mais e mais detalhes do acontecido.

Os barcos foram baixados imediatamente. E, como eu já esperava, Chase, o imediato, retornou com sua baleeira avariada por uma cauda de baleia menos de uma hora depois. Paralisado junto à amurada, eu não tirava os olhos do horizonte enquanto Nickerson usava o martelo auxiliando o imediato no reparo do barco. Foi ai que avistei o cachalote. Ele era enorme. Ficou parado de frente para o Essex por alguns minutos, na linha do oceano. Cachalotes machos são solitários, só se juntam a um grupo de fêmeas na época da procriação e rechaçam com violência qualquer macho que se aproxime. Acho que foi isto que aconteceu.

Foram três batidas violentas e o navio começou a adernar. Os homens, atônitos, não sabiam o que estava acontecendo. O enorme cachalote nadou para longe e não mais foi visto. Mas o Essex estava condenado.

Os registros contam que três barcos abandonaram o navio que soçobrava aos poucos em meio ao mar calmo. Um deles era chefiado pelo capitão George Pollard, outro pelo imediato Owen Chase. Eu estava na terceira embarcação. Destas três pequenas baleeiras, uma se perdeu e duas foram resgatadas. Uma chegou ao continente e outra foi recolhida por um navio inglês. Ao todo foram oito sobreviventes, e, ao que me consta, nenhum era eu. Lembrar disto me deixou pálido, completamente apavorado. Pensei em usar o Viajante. Não tinha como. Eu estava no meio de um oceano com profundidades abissais, a esfera me levaria para anos antes ou depois... ali mesmo onde estava no momento. Impossível, portanto.

*****

Depois da destruição de nossa baleeira e da morte de meus companheiros na noite em que tive aquela visão, fiquei à deriva por três dias com mar calmo e sol escaldante. Estranhamente, me mantive calmo e atribui tal força à aparição de Júlia, dias antes, que ainda me fortalecia. No entanto, no início do quarto dia as coisas começaram a mudar.

O amanhecer foi com nuvens pesadas e em poucas horas uma tempestade violenta se abateu sobre mim. Segurei-me aos destroços como pude. Os vagalhões enormes jogavam a frágil casquinha em que me encontrava como se fosse uma folha seca em meio a um turbilhão. Tentei ser forte, mas sabia que não agüentaria por muito tempo.

Quando fui impulsionado para a crista de uma das vagas, tive a sensação de ter visto ao longe o pico de uma montanha, mas foi apenas por um segundo e na vaga seguinte aquela visão havia sumido. Senti que já não tinha mais forças e desisti de lutar.

Quando acordei estava numa praia de areias claras. Pedaços da baleeira estavam espalhados ao meu redor. Devo ter ficado muitas horas sob aquele sol quente, pois minha pele estava quebradiça pelo sol e pelo sal. Levantei-me com dificuldades, mas não consegui caminhar, estava fraco, exausto. Com muito esforço comecei a engatinhar em direção as palmeiras que estavam próximas. Era um esforço tremendo cada movimento, achei que não conseguiria, que iria finalmente encontrar Júlia, embora não do modo como havia planejado.

Pessoas chegaram e ficaram ao meu redor. Quando recobrei os sentidos estava em uma choupana de palha aos cuidados de uma velha senhora. Pelas feições pude ver que me encontrava entre nativos de alguma ilha do pacífico sul.

A senhora de pele escura, muitas rugas e um doce sorriso de poucos dentes, com muita calma, me hidratava com água de coco e espalhava um óleo fino sobre o meu corpo nu enquanto entoava uma melodia simples. Quando me dei conta do que estava acontecendo tentei me levantar, precisava recuperar a esfera. Com bastante esforço consegui sentar na esteira e então pude ver minhas roupas penduradas em uma corda num dos cantos do lugar. Relaxei.

Alguns dias depois já estava refeito. Nunca vou ter como agradecer os cuidados e o carinho que recebi daquele povo simples. Com o coração apertado e um profundo sentimento de gratidão, decidi que era hora de partir. Um navio mercante inglês, na verdade um maravilhoso Clipper de seis mastros, que estava fundeado na baia para reabastecimento de água e mantimentos zarparia na manhã seguinte. Não poderia perder tal oportunidade. A esfera me oportunizava mobilidade temporal, mas ainda não se movia espacialmente. Portanto, eu precisava voltar para Nantucket. Parti.

Naquelas latitudes os ventos calmos ajudavam a fazer jus ao nome do oceano em que navegávamos. O Pacífico nos oferecia uma viagem calma, mas eu tinha pressa em voltar para casa. Cheguei a Nuntukcet numa noite fria de outono. O ano era 1821. Era hora de usar o Viajante novamente. Antes, porém, por pura curiosidade resolvi andar pela minha cidade. Nada era como eu conhecia. Prédios baixos, quase todos de madeira e com postes antigos ainda com iluminação a óleo davam um ar de nostalgia. Tentei encontrar o endereço onde morávamos, mas foi impossível, ele ainda não existia.

Voltei para o cais e me postei junto aos antigos armazéns do porto. Queria esperar a noite chegar para acionar a esfera. A ideia era retornar um bom tempo antes do fatídico dia em que Júlia foi para sua reunião esotérica. Como eu não dominava totalmente a esfera quis dar uma boa margem de tempo para não errar. Assim que o sol se pôs, respirei fundo, dedilhei a superfície lisa do artefato e me concentrei o mais que podia para encontrar alguma conexão. Entrei no vórtice temporal imediatamente.

Quando abri os olhos a noite já se despedia. Alguns trocados jogados à minha volta demonstravam a solidariedade do povo de Nantucket. Aproveitei os vinténs e peguei o ônibus para casa. Um leve azulado se desenhava no horizonte. Olhei ao meu redor e pude perceber que tinha voltado. Reconheci os prédios da marina e o mobiliário urbano. Sorri com apreensão. Não tinha como ter certeza da data.

Fui direto para casa, o porteiro de plantão não queria me deixar entrar. Tive que ser firme com ele. Por fim, ele me deixou passar e fui até o apartamento. Minhas chaves não funcionaram. Recuei e olhei novamente para o número acima da porta: 312. Sim, este era o meu apartamento. Quer dizer, o apartamento de Júlia, ela tinha ganhado o imóvel de seus pais assim que entrou para a faculdade e ali fomos morar depois que nos casamos. Sem paciência para ficar esperando, apertei a campainha. Insisti.

Momentos depois Júlia abriu a porta toda despenteada e com cara de quem recém tinha despertado. Lágrimas chegaram aos meus olhos. Sem dizer nada, abracei-a com força. Beijei-a como se nunca a tivesse beijado antes. E começaram os gritos. Júlia me empurrou com força e gritou por socorro. Fiquei sem ação, quanto mais eu tentava alguma coisa para acalmá-la, mais ela gritava. Não demorou até que os guardas chegassem. O porteiro que eu não conhecia tinha ligado para a polícia assim que eu subi.

Algemado, na saída, perguntei ao cretino do porteiro que dia era aquele: 30 de outubro foi a resposta seca do coitado. Sim, mas de que ano? – perguntei. 2014, disse ele, com cara de espanto. Quase tive um troço. Eu tinha voltado dois anos antes de conhecer minha mulher.

Fui colocado na viatura enquanto os guardas colhiam alguns nomes certamente para incluir no inquérito. Eu não poderia chegar à delegacia, sabia o que aconteceria. Tirariam todos os meus pertences e colocariam em um envelope que eu só receberia quando saísse da cadeia. Eu não poderia esperar.

Com muito esforço e tendo cãibras nos braços, consegui fazer a esfera rolar para o assento ao meu lado. Mais uns espichos e dedilhei sua superfície lisa. Tudo sumiu mais uma vez.

Abri os olhos em frente ao meu prédio, todo molhado pela chuva intensa, quase embaixo de um carro que eu conhecia. Era o carro de Júlia. Bom sinal. Devia ser a época certa, mas o carro estar ali poderia ser mau sinal. Ela só o deixava naquele local a noite quando ia sair para algum de seus encontros de estudos. Apressei-me e entrei no edifício.

Desta vez o porteiro me conhecia, mais um bom sinal. Ele apenas estranhou quando pedi para que apertasse o botão do elevador. Assim que chegou para me ajudar foi que viu que eu estava algemado. Pedi que fosse comigo até o meu apartamento, pegasse as chaves do meu bolso e abrisse a porta. Quando entrei, vi que Júlia estava no banho, pelo barulho do chuveiro. Perguntei ao Richard, o porteiro, que dia era. Era a exata quarta feira em que ocorreu o acidente. Richard foi embora, buscar algo que eu encomendei. Júlia saiu do banheiro vestindo um roupão. Meus olhos lacrimejaram quando a vi.

-Já chegou, amor? – Disse ela, ao me beijar. – Vou me arrumar que daqui a pouco vou ter que sair.

Nisto tocou a campainha do apartamento. Julia estava próxima e foi abrir a porta.

Richard, o prestativo porteiro, entrou com um cortador de vergalhões e uma lima gigante. Diante da expressão de surpresa de Júlia, ele disse, solene: vim tirar as algemas de seu marido, dona Júlia.

Júlia ficou me olhando meio pasma com a notícia.

-;Pegadinha do pessoal do instituto, querida. – falei, com um sorriso amarelo.

Ela, como estava atrasada, deu de ombros e foi se arrumar no nosso quarto. Richard terminou o serviço rapidamente e recebeu sua bem merecida gorjeta que peguei na gaveta do guarda louças.

Peguei uma toalha e me sequei um pouco. Sentei-me em minha poltrona preferida e peguei o leitor de e-book. Mal tinha começado a ler e Júlia, linda como sempre e amada como nunca, veio me dar um beijo de despedida.

-Adorei que você plantou meus feijões, amor, quando você fez isto? Como eles germinaram rápido!

Fiquei sem palavras. Júlia pegou suas coisas e se virou para mim.

-Tem certeza que não quer ir comigo, amor?

- Júlia, você sabe que não gosto muito deste tipo de evento. Além do mais, estou lendo um livro que me interessa para o trabalho. Pode ser promissor.

Júlia riu quando eu disse isto.

- Que desculpa esfarrapada, este não é aquele e-book de ficção que você me falou?

Dei uma piscadela e sorri.

Quando ela estava chegando à porta se deu conta de que estava sem as chaves do carro.

-Paulo, não sabe onde estão as chaves do carro?

Levantei a mão sacudindo as chaves e com um largo sorriso no rosto, disse:

- Eu estava brincando, querida, deixa que hoje eu dirijo.

E levantei-me para ir com ela.

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 19/04/2018
Reeditado em 19/04/2018
Código do texto: T6313202
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