Olhar demoníaco e um sorriso doentio

Eu era um jovem oficial e estava inseguro quanto ao comando que me fora dado. Sabia tudo que deveria ser feito, sabia das possíveis mortes e de todo horror que acontece após a ordem de atacar.

Era uma ansiedade terrível que me custava certa energia para controlá-la, pensando em tudo que precisava pensar para que os pensamentos não me atormentassem com providências exageradas e precauções descabidas.

Fui procurar sozinho os conselhos de um general reformado. Sua pequena casa, de um homem que não conhecera casamento e filhos, tinha suas peculiaridades como coleções de armas, troféus e fotografias de campanhas. Um sofá que era como um trono de um rei que já não comandava mais, mas que merecia ainda o devido respeito.

A cozinha era singela e extremamente simples comparada aos ornamentos honoríficos da sala.

Me atendeu com generosidade, mas só após saber das minhas recomendações. Me olhou de forma severa e me perguntou se era atrás de táticas e estratégias que ele estava sendo procurado - perguntou como quem já sabia da negativa da resposta.

Meditou por alguns minutos, eu mesmo não havia dito muita coisa, já que ele mesmo se dispunha a saber o que queria mais do que eu mesmo. Alisou a barba branca e me disse:

"Procura por este olhar, me observe e diga o que vê!" Eu via algo ao mesmo tempo doentio e demoníaco em seu olhar. Ele voltou ao semblante anterior e sorriu como quem não havia feito demais. Minha conversa acabou por ali, agradeci e fui embora.

Aquele olhar demoníaco parecia obviamente um gracejo de um velho já afetado pela demência. Mas como poderia escolher pra quem olhar e quando? Tomei tudo aquilo como mera distração e me concentrei da batalha que estava por vir.

Matamos bastante, eu poderia dizer vencemos, não importa. Destruímos tudo que nos dificultava o caminho e atrasava os objetivos. Os caminhos abertos pela guerra são pavimentados com dores terríveis, atrocidades e finalmente a morte.

Glórias, bravura e heroísmo não vencem uma guerra, mas é pelas mãos do que operam com inteligência e perícia a morte é que o sofrimento que a vitória é assegurada - como um prêmio, não sejamos hipócritas.

Após este banquete de sangue que servimos aos que pagam nossos salários, voltei pra casa e reencontrei meus familiares. Viram o rapaz jovem, cheio de glória e com uma carreira brilhante cheia de futuro pela frente. Viam meu sorriso, meu semblante concentrado e tranquilo de uma rapaz jovem e bonito.

Me olhei no espelho por acaso e vi o mesmo rosto demoníaco que eu vira antes no velho general. Ninguém mais via, viam sorriso, um rosto concentrado e limpo. E não conseguia ver outra coisa que não fosse aquele rosto demoníaco e um sorriso doentio.

Eu olhei então para as pessoas. E elas nada viam de anormal. Eu não via mais meu rosto normal. Via cada vez mais feições diabólicas que eram invisíveis aos demais. Parecia um feitiço que talvez o velho tenha me colocado.

Antes que eu enlouquecesse, o procurei para matá-lo caso não desfizesse o feitiço. Abri a porta com um chute. O velho riu e disse que sabia por que eu havia voltado: você acha que um simples homem faria tudo o que você fez? Você sabe o que fez e por que fez melhor que os seus próprios soldados e ainda assim que se sentir um anjo?

Há muitas formas de vender sua própria alma e não há devolução. Este olhar demoníaco sempre estará a espreita e este sorriso doentio também. Nunca vai esconder de você mesmo o que foi capaz de fazer.

Saquei a arma e atirei no velho. O filho da mãe morreu sorrindo como liberto. E depois apontei pra mim, mas não terminei o ato interrompido por amigos que me seguiram preocupados com meu transtorno.

Tive que fazer escolhas. Me tornei um cínico e guardei o segredo só pra mim. Minha esposa beijava um demônio, meus filhos brincavam um diabo, mas só eu que via isto.

Após décadas de segredo, foi uma mentira que permitiu a sanidade minha e de minha família, meu tédio buscava o desconforto. Queria ser descoberto, queria não estar mais sozinho ainda que minha companhia me visse como uma criatura repugnante.

Abri um canal no Youtube, contei detalhe por detalhe de tudo que fiz e deixei que fizessem. Torturas, estupros, assassinatos de civis, execução de rendidos, gente queimada viva em suas casas, etc.

Quando descobriram contra que grupos eu fiz isto, virei um herói. Recebi homenagens, defesas, visitas importantes e gente querendo escrever minha história. Até que um dia olhei para os vizinhos, minha família, meus amigos e a multidão de admiradores e vi neles o olhar demoníaco e o sorriso doentio que eu via na minha imagem no espelho.

Eu havia me condenado ao inferno definitivamente!

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 02/04/2018
Reeditado em 02/04/2018
Código do texto: T6297830
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