A Dama na Água

“No fundo do lago, meus dois olhos brilharão como as estrelas”.

The Lake, Bathory

A noite caíra.

Era plena madrugada, beirando o infame horário das três horas da manhã. Essa era uma daquelas frias noites de Julho, agourentas, onde não se vê lua nem estrelas, mesmo que não haja uma nuvem sequer no céu. Uma noite destinada a obras nefastas, onde até mesmo as cores da criação acham por bem se esconder dos demônios que podem rondar a escuridão.

Protegido por tal negro véu, um pequeno barco corria suavemente através de um rio caudaloso ao qual a noite soturna dava um aspecto de piche, deixando-se levar ao sabor da fraca correnteza. O homem que o conduzia, trajado com um manto de capuz que lhe cobria o corpo todo, bem poderia ser confundido com o mitológico Caronte, o barqueiro do Estige destinado a transportar as almas dos mortos para sempre, caso pudesse ser visto através das trevas, pois tal era seu aspecto. Com efeito, poderia até mesmo cantar em voz alta, que caso fosse ouvido por alguém, certamente pensariam se tratar de um fantasma de outrora que por algum sortilégio despertara de novo para assombrar as margens do rio.

Em pé, imponente na proa do escaler, o homem contemplava a água, perdido em seus próprios devaneios. A escuridão me conforta, pensava ele, pois a mesma era propícia para ocultar seu intento de olhos indesejados. A obra daquela noite estava quase completa, mais um pouco, e descansaria.

Seu destino era o campo, e o modo mais furtivo de se cruzar a civilização para chegar lá era através do rio, suas margens eram movimentadas apenas durante o dia, quando o mercado livre da cidade funcionava. Tirando isso, as únicas pessoas que poderia encontrar às margens seriam alguns policiais de patrulha que faziam as rondas pelos cais durante a noite e que, tendo suas vistas embaçadas pela iluminação pública, dificilmente o veriam.

O rio curvou-se para o leste, e ele pôde divisar no horizonte atrás de si as luzes da cidade que deixara para trás a meia hora. As luzes dos postes de querosene bruxuleavam como fogo-fátuo num pântano. As suas costas estavam as luzes, a frente, apenas o negrume da noite, mas o Caronte não conseguia deixar de pensar que na verdade era exatamente o contrário: atrás, as trevas, a frente, a luz.

A luz. Em breve, estaria tudo completo, e ele encontraria redenção, ou, pelo menos, satisfaria seus tão ansiados desejos.

Na popa, presa ao barco por uma longa corrente, havia uma pequena, mas pesada âncora, e estendido ao lado, um embrulho misterioso envolto em pano preto e envolto em mais correntes. Dentro havia o instrumento, a causa, o meio e o fim pelo qual o Caronte se encontrava descendo o calmo rio naquela madrugada.

Virou-se para a trouxa, olhou-a por alguns momentos, como que esperando que se movesse, com um semblante carregado cujas emoções não podiam ser perscrutadas, e tornou a olhar para a água cor de petróleo. Suspirou. Traição alguma deve ficar impune, pensou o homem. E ah, ela o havia traído sim. Lembrar-se daquilo o enchia de cólera, a dúvida, a desconfiança, finalmente, a certeza: mulher com quem fora casado por mais de dez anos, com quem repartira a cama, o teto e a dor pela morte dos filhos, o havia traído, e isso demanda um acerto de contas.

O Caronte sentiu, repentinamente, lágrimas escorrendo pela face oculta pelo capuz. Cortando seu rosto em tiras, elas embaçavam sua vista e lhe chegavam salgadas à boca, como o gosto da água do mar. Se eram lágrimas de ódio, tristeza ou alívio, não sabia dizer, e achava nunca saberia. Uma delas deslizou de sua fronte e despencou vertiginosa para juntar-se às águas do rio, fazendo um sonoro som de gotejar quando bateu na superfície. Isso é a vida, refletiu consigo mesmo, um rio de lágrimas que corre em dolorosa e constante lentidão até o oceano da morte. Mas então lembrou-se de seu propósito naquela noite e a raiva deu lugar ao choro, e ele percebeu que não havia sentido em continuar a prantear. Esfregou a manga do manto com força no próprio rosto, enxugando as lágrimas que há pouco derramara tão sofregamente.

Ao fazer isso, o homem teve a impressão de ter ouvido um barulho, uma batida surda contra a madeira, como se algo se movesse no escaler, atrás de si. Virou-se rapidamente, sem pensar bem no que poderia acabar vendo e sem acreditar que realmente veria algo, porém, nada havia no barco além da âncora e o embrulho, dois objetos inanimados, desprovidos do sopro de vida tão generosamente dado pelo bom Deus. Riu de si mesmo, imaginando estar perdendo a razão, e atribuiu o barulho que ouviu, ou que pensava ter ouvido, à algum peixe que, distraído, chocara-se com o casco do barco por baixo da água.

Não tinha havido um flagrante de traição. O Caronte não havia testemunhado nada, mas uma prova concreta e tangível não era necessária para ele. Sim, ela possuía outro que a confortasse. Para ter certeza disso, bastavam os olhares frios e carregados de rancor, o torpor no qual o casamento parecia estar cada vez mais imerso, a indiferença com que ela o tratava desde a morte do filho mais novo, os longos passeios que ela pegara o hábito de fazer sozinha, recusando a companhia do marido, saindo com o dia claro e voltando apenas tarde da noite, sob o pretexto de lidar com o luto à sua própria maneira, e, claro, as vozes.

As vozes na cabeça do homem, as vozes que lhe diziam o que fazer e lhe aconselhavam, as vozes que lhe contavam segredos, as vozes que lhe davam a convicção de que ela tramava algo por suas costas, talvez assassiná-lo e fugir com o amante desconhecido, as vozes que agora estavam miraculosamente caladas desde que ele irrompera em fúria e confrontara a esposa.

Acontecera num fim de tarde, quando o crepúsculo começa a lançar matizes de luz dourada sobre o mundo e as sombras caem vagarosamente para engolfar tudo nas brumas da noite. A mulher chegara em casa mais cedo, após outro de seus longos passeios sozinha, e ele podia jurar que sentia no ar a essência de um perfume desconhecido, por mais que a esposa negasse e tentasse disfarçar. Aquilo fora a gota d’agua.

Agora já não fazia mais diferença, quase tudo estava em paz, bastava o último detalhe, e se veria livre dela para sempre.

Já não havia mais vozes, todas estavam calmas, num silêncio sepulcral que o Caronte não conseguia explicar. Mal conseguia ele se lembrar de quando fora a última vez em que estivera com a mente tão tranquila, mas não se importava com aquilo, tudo o que queria era que as coisas continuassem daquele jeito, quietas. O silêncio é uma dádiva. A quietude do rio durante a noite e das vozes em sua cabeça lhe trazia paz.

Em meio a esse silêncio, pela segunda vez, e dessa vez ele teve quase certeza, pensou ter ouvido um barulho atrás de si. Agora, não era uma batida contra a madeira, mas um chocalhar de correntes, como se alguém estivesse empunhando a corrente da âncora para estrangulá-lo pelas costas. Num gesto rápido, o homem virou-se, decidido a lutar até a morte se fosse necessário, mas, para sua surpresa, não havia nada além dele no barco, assim como o fora da primeira vez. O Caronte deixou escapar involuntariamente um suspiro de sincero alívio. Não era um homem forte, possuía uma fraca constituição, pois passara a maior parte da juventude preso à uma cama, sofrendo os tormentos de alguma peste espalhada pelo mundo pelas mãos do Diabo. Sua pele era pálida, seus cabelos, quebradiços, seus braços, tão finos que podiam ser facilmente circundados pelo punho de algum homem mais forte. Se alguém subisse no escaler, vindo das profundezas do rio ou nadando desde a escuridão da margem, ele certamente não seria capaz de dar combate ao intruso.

Mal havia voltado os olhos novamente para a água e ouviu o mesmo barulho novamente.

Perplexo, dominado pela incredulidade e pelo terror da dúvida, voltou-se dessa vez para o embrulho. Remexendo o pano negro e afastando as correntes que o envolviam, descobriu o que estava no seu interior, e mais uma vez seus medos foram infundados, não havia nada, nem mesmo um simples camundongo. Sentou-se no escaler, determinado a não mais se deixar assustar com barulhos inexplicáveis.

Voltou-se aos seus próprios e insondáveis pensamentos, memórias soturnas de dias que se foram para nunca mais voltar, uma parte de si desejando poder consertar tudo, a outra querendo levar a cabo a sinistra tarefa iniciada naquela noite e que se desdobrava a sua frente, impondo perversos desígnios a sua vida.

Àquela altura, o homem já estava muito afastado da cidade, suas luzes já não podiam mais ser divisadas no horizonte, tudo era breu e trevas, a noite sem estrelas reinava soberana no mundo dos mortais. Após uma curva do rio, o Caronte pôde ver, apesar da escuridão, os contornos de uma construção, encimada por uma sombra em formato de cruz mais negra do que a noite. Havia chegado ao local.

Tratava-se de uma antiga igreja de madeira, construída em meio a área rural, não era usada já a muitos anos, permanecendo abandonada em meio ao campo, um monumento a uma época passada que teimava em se agarrar aos dias atuais e se recusava a desmoronar. Era um prédio pequeno, simples, de pintura vermelha já tornada fosca pela ação do tempo e as vigas de sustentação ruindo pela ação dos cupins. Seu aspecto contra a noite negra e a névoa adquiria um quê de macabro. Ao seu lado havia um minúsculo cemitério rodeado por uma cerca, possuindo pouco mais de uma dúzia de lápides construídas em tempos imemoriais, cujos escritos já estavam apagados à décadas.

A porta da igreja ia de encontro ao rio, formando um caminho que ia dar num cais de madeira já apodrecida e desgastada pela ação da água e que provavelmente havia deixado de ser usado muito antes de a igreja ser abandonada. Quando passou por ela, o Caronte tomou a âncora nos braços, com certa dificuldade, e jogou-a na água caudalosa. O barco deslizou ainda alguns metros até o chumbo atingir o fundo do rio e a corrente se esticar, mas enfim parou com um sacolejo.

O homem não se moveu por alguns minutos, permaneceu estagnado no barco, assim como o mesmo permanecia estagnado em meio à suave correnteza. Este é o momento. Abriu a trouxa que trazia consigo, de dentro dela, tirou um enorme machado que outrora fora usado para partir lenha. Seu cabo era polido pelo suor das mãos que o haviam manejado constantemente, e a lâmina pareceu brilhar mesmo na escuridão.

Em meio a esse brilho, o Caronte pode ver o sangue que manchava tanto a lâmina quanto o cabo do machado. Por alguns momentos, pensou em como o líquido rubro tinha ido parar ali, assombrado com a própria coragem.

Devolveu o machado à trouxa e verificou os pesos de metal que havia posto nas extremidades. Tudo estava em ordem. Por fim, tirou uma vela de dentro de uma das dobras do manto e acendeu-a com um fósforo. A luz iluminou as trevas, um ponto de fogo em meio ao piche da noite, que bruxuleava mesmo sem uma única brisa para lhe agitar. Após ter feito isso, descobriu a parte de cima uma vez mais. Uma última olhada, pensou ele.

Olhou o que havia dentro, e o que havia dentro devolveu-lhe o olhar através de olhos azuis como o céu e que outrora haviam sido brilhantes como a lua, mas agora se encontravam baços e sem vida. Os cabelos, outrora dourados como a luz do sol que incide através da janela durante as tardes de primavera, estava agora tingido de vermelho pelo sangue que havia escorrido da cabeça da mulher. A face estava congelada na expressão que ela tinha no rosto na hora da morte, uma terrível careta de horror e medo.

E no topo da cabeça, a ferida.

O Caronte havia desferido um golpe mortal na cabeça da esposa, atingindo em diagonal a têmpora direita, rachando o crânio ao meio e abrindo um talho profundo. À luz da vela, podia-se entrever pedaços de cérebro misturados com sangue e cabelo.

Os olhos azuis continuavam a encara-lo. Aquele olhar morto parecia atravessar-lhe a alma, perscrutando seus mais íntimos segredos, julgando-o por seus erros e por fim fazendo uma única e solitária pergunta que ficava insistentemente sem resposta: por quê? Não conseguindo mais suportar aquilo, o homem tornou a ocultar o rosto de sua esposa com o pano negro.

Feito isso, decidido, ele a pegou pelos pés e jogou-os na água do rio. Depois, com maior dificuldade, fez o mesmo com a parte superior do tronco, pegando o cadáver da mulher pela cabeça. Ele pôde sentir as mãos úmidas ao tocar o pano empapado do sangue que ele mesmo derramara em meio a sua ira cega, e o nojo e a vontade de concluir tudo rapidamente apossaram-se de sua alma. Jogou o corpo da esposa no rio. O ruído da cabeça batendo na água foi tão alto para ele que podia jurar que tinha sido ouvido até mesmo pelas almas dos mortos no cemitério.

- Agora fica aí, e não te movas – disse o Caronte. – Que os peixes se banqueteiem na tua carne, e que o leito do rio lhe sirva de túmulo. Teus restos passarão a eternidade em meio ao lodo. Traiu-me, e eis a tua paga, maldita! Mil vezes maldita!

Dito isto, o barqueiro apagou a vela, sentindo uma enorme sensação de paz e alívio apropriar-se dele, como se sua alma finalmente tivesse alcançado a tão ansiada redenção. Com ânimo redobrado, içou a âncora, e o barco voltou a escorregar rio abaixo.

Não pretendia voltar à cidade aquela noite, seu plano era continuar descendo o rio por mais alguns quilômetros, até chegar à propriedade abandonada da família Usher, uma velha mansão à beira do rio, isolada no meio do campo e longe de toda civilização. Antigamente fora habitada por uma família que desaparecera sem deixar vestígios e que todos os viajantes evitavam por ser considerada mal assombrada. Os únicos fantasmas temidos pelo Caronte, ele tinha se livrado através do fio do machado, de modo que seu intento era passar a noite nas ruínas da casa dos Usher. Ao chegar lá, queimaria seu barco, descansaria, e no dia seguinte caminharia até a estrada, onde compraria seu transporte de volta ao conforto do seu lar com algum viajante de passagem.

Caso a polícia desse pela falta da esposa e viesse lhe fazer perguntas incômodas, já possuía na ponta da língua a mentira que lhes contaria. Não teria como se contradizer, repassara-a mil vezes na cabeça, e a maior parte dela era realmente verdade: diria que descobrira as traições da esposa e expulsara-a de casa. A mulher, por sua vez, havia fugido com seu novo homem sabe-se lá para onde. Ele era apenas um marido traído que agira no seu direito, ninguém desconfiaria, ninguém questionaria. Sorriu, havia arquitetado um belo plano, e agora finalmente poderia viver sua vida em paz.

Enquanto o barco ia deslizando constantemente rio abaixo, o homem, sentado no barco, não pôde impedir-se de olhar para trás e ver a sombra da igreja desaparecendo no horizonte. Ao observar as águas que deixara para trás, sentiu-se maravilhado com a visão de duas brilhantes estrelas na água, cujo reflexo não tremeluzia nem mesmo com as nuances da correnteza. Contemplou-as deslumbrado, eram as mais belas estrelas que já vira na vida. Ele não sabia dizer como, mas parecia que as estrelas se aproximavam da sua embarcação.

Levantou-se e foi até a popa do barco, apertou os olhos para poder enxergar melhor aqueles dois brilhosos pontos de luz. E então, não satisfeito em observar apenas o reflexo, quis ver quais eram as duas majestosas estrelas cuja luz viajava imponente por incontáveis léguas através do espaço para serem refletidas tão belamente na água de um rio em meio a uma noite escura. O Caronte levantou os olhos para o céu, e qual foi sua surpresa ao ver que não havia estrela alguma iluminando o firmamento divino, nem estrelas, nem lua. Assustado, olhou novamente para o rio, os dois pontos de luz haviam sumido.

O homem sentou-se uma vez mais, nervoso, imaginou estar vendo coisas. Remexeu nos bolsos do casaco e encontrou seu cantil. Retirou a tampa e sorveu um generoso gole de uísque escocês, precisava daquilo. O líquido desceu queimando por sua garganta e ele não conseguiu conter uma careta, mas a mesma sensação de queimação era também um tranquilizante para seu nervosismo. É apenas coisa da minha imaginação, apenas isso, e nada mais. Não havia de ser nada mesmo, ele tinha passado por muitas coisas recentemente, estava com os nervos à flor da pele e a cabeça completamente desnorteada, não era nada demais.

Até que olhou outra vez para trás e encontrou os mesmos dois pontos de luz brilhante a encara-lo da água.

Dessa vez, o barqueiro armou-se de coragem e decidiu confrontar o que quer que fosse aquilo, alucinação ou sortilégio do demônio. Foi até a popa e debruçou-se sobre a amurada, tocando na água com os dedos, os olhos fixos nas duas luzes.

Como que respondendo a um chamado seu, os pontos se aproximaram, e ele estendeu a mão para tocá-los. Qual foi a sua surpresa ao perceber que uma densa cabeleira loira, manchada de sangue que se recusava a ser lavado pela água envolvia aqueles dois pontos brilhantes. Subitamente, compreendeu o que era aquilo, contemplou aquelas luzes: eram olhos. Dois grandes e brilhantes olhos azuis. Olhos que ele conhecia bem, olhos que amara, e olhos que odiara. Olhos que adornavam uma face branca, manchada de sangue e com um golpe de machado abrindo a cabeça. Olhos que lhe encaravam, emanando um ódio mudo e mortífero dirigido especialmente à ele.

Tomado de pânico, o Caronte deixou que um grito estridente escapasse de sua boca, e tentou estender a mão para a âncora, a fim de jogá-la em cima daquela assombração infernal. Porém, antes que pudesse tomar qualquer atitude, dois pálidos braços ergueram-se da água e com uma força sobrenatural arrastaram-no para baixo, sem lhe dar chance de lutar ou fugir. O Caronte sentiu a água do rio invadindo seus pulmões e envolvendo-o no cruel abraço do afogamento. E o frio beijo da morte, dado em uma noite escura, nas profundezas de um rio caudaloso, foi a última coisa que o homem sentiu em vida.