Parte I
As gotas da chuva batiam com força na janela embaçada. Ela queria que estivessem batendo em seu rosto, talvez voltasse a sentir algo, prazer ou dor, qualquer coisa.
A pesada porta de madeira de lei à suas costas estava trancada, arranhões e lascas de tinta eram apenas uma lembrança de sua luta anterior. Tinha desistido de lutar. Na verdade, tinha desistido de viver, mas naquele quarto vazio não havia meios para que a questão fosse enfim resolvida, esse alívio não lhe era concedido, então, ela continuava existindo.
A comida vinha em pratos para criança, nada de louça ou porcelana. Mas ela não comia. Não suportava o cheiro. Apenas água, era suficiente.
Os dias iguais fizeram com que perdesse a noção do tempo, mas sabia, pelo comprimento do seu cabelo, que estava ali há muito tempo.
Tocou as pontas de seu cabelo cor de mel. Havia sido uma das primeiras a adotar o corte chanel, imitando a famosa estilista. Chegou com os cabelos curtos depois de uma temporada em Paris e por onde andava sentia todos os olhares que a observavam. Não demorou para que outras moças de fino-trato seguissem a moda que acabou por se espalhar por todas as camadas da sociedade.
Naquela época, sua outra vida, adorava lançar moda. Sentia um prazer inexplicável quando elogiavam seus vestidos, sapatos, chapéus, porém seu prazer era ainda maior quando, em vez de receber um elogio, identificava um olhar de inveja. Nessas ocasiões, limitava-se a esboçar seu mais doce sorriso certa de que aquelas que a invejavam, cedo ou tarde, acabavam se rendendo às suas inovações.
Nunca se esqueceria da noite em que, em meio a uma das freqüentes recepções na mansão da família, acendera um cigarro. Todos os olhos em sua direção e depois em direção ao seu pai. “São os loucos anos 20”, ele havia dito entre os dentes muito brancos, cerrados em volta de seu charuto cubado, aprovando com um sorriso sob o bigode negro, lustroso e bem cuidado, a modernidade da filha.
Sua mãe, sempre distante, mas não menos orgulhosa, ergueu levemente a taça de champanhe em sua direção, brindando a tudo o que ela representava.
Nina, filha do rico Sr. Manoel Garrilha, empresário do ramo têxtil, cercada de luxo e riqueza, desde muito pequena mostrou-se inteligente.
Tocava piano, era fluente em francês e inglês. Conhecia artes, lia os clássicos em versão original, conversava com desenvoltura tanto com as ricas senhoras da alta sociedade como com os finos senhores industriais.
Era a joia mais brilhante em sua sociedade, a mais valiosa e a mais desejada, mas todos sabiam que a escolha seria dela, apenas dela, e ela tinha uma grande variedade para escolher.
Nada parecia mais certo do que seu futuro confortável e feliz, cercada de luxo e de tudo que o dinheiro pode oferecer, mas o destino é tudo e a vida escolhe seus próprios caminhos.
Agora aquelas noites quentes, cheias de música e conversas, perfumadas pelas flores das laranjeiras que rodeavam o jardim, pareciam ter acontecido há centenas de anos, em outra vida, quando ela era outra pessoa, antes de tudo.
A mãe já não ligava a vitrola. Ninguém tocava o piano. O único som que chegava até ali eram os passos do pai acompanhados pelo bater rítmico da muleta que agora era obrigado a usar. Sabia que tudo isso devia lhe causar tristeza, ou pelo menos remorso, mas não era isso que sentia.
Já não sentia nada, porém estava certa de que se ainda fosse capaz de sentir não seria culpa, dor ou remorso, não seria amor por seus pais, nem sequer saudades dos dias felizes, seria apenas aquela desejo.
Mas não se pode desejar aquilo que deixou de existir.
Sentiu um formigamento na coluna, resultado das horas em que passava sentada no beiral da janela olhando para o mundo lá fora através do vidro grosso que a mantinha presa naquele quarto. Não desejava fugir, não existia mais nada para ela lá fora. A única fuga que desejava era de si mesma e daquela existência.
Queria deixar a vida, mas continuava ali, dia após dia, e por alguns momentos tinha certeza de que iria enlouquecer, mas não existia misericórdia, não para ela, e sua mente continuava perfeita, com todas as lembranças para lhe atormentar.
“Isso só pode ser macumba, é trabalho forte!” ouviu através da porta o sussurro das criadas que traziam mais uma refeição que não seria tocada. “Já vi isso acontecer antes, e só vai passar se uma boa mãe de santo vier quebrar o trabalho, senão ela morre e não come. O bicho é ruim!”.
Seria ela o bicho ruim? Era o que alguns diziam. Os boatos tinham se espalhado e mesmo aqueles que a conheciam desde que nascera agora repetiam tudo o que diziam sobre ela e a temiam. As criadas subiam até o quarto no sótão para levar suas refeições sempre em duplas e com medo de se aproximar da porta de seu quarto, temiam o mal que, segundo diziam, tinha tomado conta dela.
Levantou-se com dificuldade e colocou os pés descalços no chão gelado. Um arrepio correu por sua coluna até chegar à nuca. Pegou o copo d'água deixado através da pequena passagem aberta no canto inferior da porta, molhou os lábios que já se partiam e deitou-se no colchão fino. Sem lençóis, sem fronhas, travesseiros ou estrado. Não havia qualquer luxo ali... “Assim ela não vai cometer outra loucura”, foi o que o pai havia dito tentando esconder a dor daquelas palavras enquanto a levavam lá para cima.
Há muito tempo não via ninguém. Começava a se esquecer dos rostos, mesmo das pessoas que havia amado. Não que pensasse muito neles, mas quando relembrava tudo confundia o rosto da mãe com o da babá que, na verdade, tinha sido mais próxima dela do que a mãe jovem e bela.
Lembrava-se vagamente do olhar sério do irmão mais velho e do sorriso meio debochado do mais novo. Do pai, de quem sempre fora muito próxima, só conseguia se lembrar do olhar petrificado que a havia encarado nos segundos antes do tiro certeiro. Olhos incrédulos.
Só não se esquecia daqueles olhos cinza que estavam gravados em sua mente e em cada pedaço de sua pele, como um perfume.
Fechou os olhos e tentou dormir, pediu por um sono sem sonhos, a ninguém especificamente, não acreditava em deuses e, então, o sono veio.
(***)