Os sons ecocam vindos longe como se ela estivesse despertando após um pesadelo do qual não conseguia se lembrar. Um frio intenso tomou conta de tudo ao seu redor, cada pequeno pedaço do seu corpo doía.
Tentou abrir os olhos, mas não viu nada além de escuridão.
Sua boca estava seca, a língua amarga, inchada e áspera parecia envolta em algodão.
Precisava desesperadamente de um pouco de água, contudo, não conseguiu formular qualquer pedido e, apesar de todo seu esforço, nenhum som saiu de sua boca.
Não sabia onde estava ou o que estava acontecendo e aquilo lhe causou medo.
De repente, sentiu que mãos frias tocavam seu corpo de uma maneira ao mesmo tempo firme e respeitosa e quando ela compreendeu que tiravam suas roupas tentou gritar, mas a voz continuou presa em sua garganta fazendo o pavor dominá-la completamente.
Era desesperador estar perdida naquela completa escuridão, enquanto mãos desconhecidas a manuseavam daquela forma, sem conseguir tomar qualquer atitude, sem poder se defender, como se fosse apenas um objeto.
Sentiu um ímpeto de chorar e novamente nada aconteceu, nem uma lágrima sequer saiu de seus olhos fechados. Seu corpo não respondia aos seus comandos e ela sentia-se como se estivesse presa dentro de si mesma.
Tentou se acalmar forçando a memória em busca de algo que a ajudasse a entender onde estava e como fora parar ali, mas não conseguiu pensar em nada.
Era como se sua vida se resumisse apenas àquele momento, sem qualquer lembrança do antes ou esperança do depois.
O frio se tornou ainda mais intenso quando seu corpo foi esfregado com um pano úmido. Suas pernas foram afastadas uma da outra e seus genitais foram lavados, assim como seus cabelos, com água gelada e um sabonete de cheiro forte e almiscarado.
Depois de a secarem e pentearem, a vestiram novamente, seu torço foi levantado delicadamente e seus braços puxados até que o tecido leve cobriu seu corpo.
Ela estava impotente como um bebê.
Inerte como uma boneca.
Como se não tivesse forças e seus músculos estivessem desconectados de sua mente. Tudo era angustiante.
De repente, uma lembrança ecoou em sua mente.
Ela estava cansada, tinha trabalhado até tarde naquela noite, estava chovendo muito. Disseram que ela deveria esperar a chuva passar, mas ela precisava ir para casa...
O pensamento foi interrompido. Ela identificou um novo som além das vozes distantes. Música. Agora mais pessoas falavam à sua volta, mas ela não conseguia entender o que diziam. Era uma conversa cheia de termos técnicos que ela não se lembrava de já ter ouvido.
As vozes se aproximavam cada vez mais. De repente, sentiu seu corpo sendo movido e, em seguida, ser colocado em uma cama muito confortável. Foi coberta por um tecido cujo toque em sua pele era extremamente agradável.
Sentiu o cheiro de coisa nova e isso a tranquilizou um pouco fazendo novas lembranças surgirem.
A estrada estava extremamente escura. A chuva tornava ainda mais difícil enxergar algo à sua frente. Os pneus pareciam dançar no chão molhado. O sono fazia suas pálpebras pesarem. Ela abriu as janelas do carro, o vento frio e a música alta a manteriam acordada...
Sentiu que estava sendo transportada para algum outro lugar. O cheiro de limpeza dominava tudo. Foi deixada sozinha em um lugar silencioso onde chorou sem derramar lágrimas ou emitir qualquer gemido.
Em completo desespero, pediu a Deus que seus olhos se abrissem, que ela pudesse ver onde estava. Aquela escuridão era claustrofóbica.
Estava em seu carro novamente, o cansaço a havia dominado. Acabou cochilando até ser acordada pelos faróis e pelo som estridente da buzina do caminhão que vinha em sentido contrário, não teve tempo de desviar e os dois veículos se chocaram...
Após um longo tempo, começou a ouvir vozes novamente e reconheceu a voz melodiosa de sua mãe. Ela estava muito próxima e acariciava seus cabelos dizendo que a amava mais que tudo neste mundo.
Nunca ouvira sua mãe chorar com tanta tristeza e aquilo lhe doeu mais do que todas as dores que pesavam em seu corpo.
Lembrou-se da sirene da ambulância se aproximando. Dos homens que a tiraram das ferragens, da enfermeira que se ajoelhou ao seu lado... então, entendeu que havia sofrido um acidente.... Era isso... Enfim havia compreendido, devia estar em um leito de hospital... Desacordada.
Ouviu a voz triste do pai e dos irmãos lhe dizendo coisas carinhosas como nunca antes haviam dito. Ouviu outros parentes, amigas e amigos, ouviu vozes que não reconheceu. Parecia que todos que ela conhecia estavam ali.
Outros sons chegavam até ela e se afastavam novamente. Sentia que algumas daquelas pessoas tocavam em suas mãos ou em seu rosto. Todos diziam que a amavam e alguns diziam que sentiam muito por tudo aquilo.
Ela só queria poder dizer que estava tudo bem, pedir para que não chorassem, em breve ela iria para casa e tudo aquilo acabaria.
Então, teve a impressão de que todas aquelas pessoas se reuniram ao seu redor e em uma única voz entoaram as frases de uma famosa oração. Alguém cantou uma música que ela não conhecia e uma voz desconhecida falou sobre a redenção no último dia.
Havia algo de perturbador naquilo tudo e só então ela percebeu que não sentia o coração batendo ou o suor se formando em suas mãos, percebeu que não havia ar entrando e saindo de seus pulmões e que seu corpo estava dominado por um total e completo silêncio.
"Mãe, por favor, não! Mãe eu estou aqui, estou aqui, por favor.... não deixe que me levem... por favor!” - Tentou gritar. Tentou abrir os olhos, mas havia apenas escuridão.
O último som que ouviu foi o baque seco da tampa do caixão se fechando sobre ela e lacrando-a ali dentro, onde estaria para sempre de olhos fechados.
(***)