A Lágrima Rubra — CLTS 02

     São Paulo, 23h45min. Sexta-Feira. Zona norte. O bairro estava às escuras. Chovia.
     Peter parou o carro frente à sua residência e não se importou em sair e destravar o basculante, embora a chuva estivesse opressiva, encharcando seu blazer cinza e os sapatos de couro envernizado. Sem energia elétrica, sem comodidades. Abriu a entrada social, destravou o motor e subiu com calma o portão de lambril pintado de branco. Caminhou sem pressa até o veículo, definitivamente não se importando. Manobrou para dentro da garagem, saiu e fechou-a — e só então pôde se refestelar em toda a calma que sua casa vazia e às escuras podia lhe proporcionar.
    Peter Larsson, exímio Mastermith brasileiro, formado pela American Bladesmith Society, uma das mais altas honrarias da arte da cutelaria, sendo reconhecido nos mais diversos cenários nacionais e internacionais, naquele momento queria apenas sentir a ausência de pessoas à sua volta, falatórios, perguntas e indagações. Mesmo que amasse a profissão e tivesse lutado muito para atingir seu atual status, ansiava por paz de espírito e um merecido descanso físico após quase vinte dias ininterruptos de palestras e demonstrações — e saber que toda a sua família se retirara para o sitio em Araras, lhe caíra quase como que um presente dos céus.
     Pegou alguns papéis no carro e atravessou a ampla garagem até a entrada principal, desvencilhando-se de brinquedos e da bicicleta esquecidos ali por seus netos no meio do caminho. Estava tudo às escuras, mas seu corpo baixo e robusto não teve dificuldade em atravessar a sala de estar e ir à cozinha pegar um copo d’ água. Bebeu com calma. Nada de pressa. Então subiu para o segundo andar.
***
     Tivera que esquentar a água no fogão (sem energia elétrica, sem comodidades) e o banho fora rápido, porém relaxante, e agora Peter se encontrava à luz de uma vela, debruçado em sua exótica escrivaninha de sapele pammele — baseada nos desenhos de Goddard e Townsend do século 18, era uma sofisticada confecção da Salerno's, conceituada marcenaria da cidade  de Bosque dos Querubins especializada na reprodução de móveis antigos.
     O quarto em si era amplo e belamente mobilhado em carvalho polido, porém aquele era o seu canto, seu refúgio, onde podia realmente sentir-se em casa. E não era apenas isso. Aquela escravinha lhe trazia certo atavismo, certo estranho conforto. Uma sensação que não podia explicar, somente sentir. Era como voltar às suas raízes.
     Peter abaixou-se e, tateando sob o tampo, encontrou um compartimento oculto de onde retirou uma caixa retangular. O ébano lustrado, marchetado com veios vermelhos e dourados, brilhou à luz da vela ao ser colocado à sua frente. Solene, abriu-a devagar, apresentando o interior aveludado rubro e uma portentosa faca depositada ao fundo.
     Ele a pegou, perscrutando a primazia dos detalhes do cabo e a exatidão balanceada da longa lâmina. As mãos tremularam e um súbito suor lhe veio. Era como se pudesse sentir sua vivacidade, o júbilo e perfeição cortante do fio causando um efeito místico que incitava ao corte, à imediata ação.

     A chuva bateu em rajadas fortes na janela e relâmpagos iluminaram o quarto; contudo, Peter não mais ouvia, os olhos vidrados na inscrição J.E. — Whitechapel, 1888 gravada no dorso da lâmina.
     A vela bruxuleou hesitante, crepitando numa dança lenta, a luminosidade amarela acentuando sombras alongadas no rosto redondo e encorpado que agora minava suor.

     Aquela era a Lágrima Rubra, seu maior legado.
***
     Londres, 1888. Distrito  de Whitechapel.
     Joseph Eisenschmidt dava o acabamento final à sua mais nova criação, uma estonteante lâmina de dez polegadas, forjada em aço damasco e empunhada em cabo de mármore travertino. Labutara por quase setenta e seis horas seguidas e a alcova apinhada que usava como oficina de trabalho recendia a uma mistura densa de óleo velho, chispas de ferro e cinzas de carvão. Sem janelas e com paredes forradas de lambril de mogno para abafar o som, o calor era sufocante.
  Ferreiro habilidoso, Joseph não só era autodidata como também se especializara na seleta arte da cutelaria, produzindo com excelência os mais diversos itens dessa categoria, podendo enfim se assegurar estar diante de uma obra prima.
     Levou-a à roda de lixa e depois à cinta de polimento; foram árduos trinta minutos, entretanto, ao ver o brilho liso e refletivo adornando o corpo da lâmina, sorriu num misto de orgulho e plena satisfação.
     Aquecer; bater; cortar, bater; moldar, bater; bater, moldar; gravar, revenir, dar acabamento e polir. Tudo isso havia sido feito num pedaço de trilho ferroviário, e a bela faca emergira reluzente como num passe habilidoso de mágica.

     Seu habilidoso passe de mágica.
     Afastou-se da boina de polimento, retirou os rústicos óculos de proteção e o avental de couro que lhe cobria o corpo volumoso. Então sentou-se numa banqueta ao centro da oficina, as mãos encardidas segurando a faca com esmerado cuidado. Sua primorosa criação estava finalizada e, com um movimento sutil, pôde ver nitidamente sua farta barba ruiva e o rosto magro vincado pela imparcialidade nos anos refletidos nela. Criador e criatura juntos.
     Precisava agora apenas batizá-la.
***
     Whitechapel vinha recebendo crescente número de imigrantes irlandeses e judeus refugiados dos ataques da Rússia Tsarista e outras partes da Europa Ocidental, tornando-a super-habitada e aumentando exponencialmente a pobreza e marginalidade na região.
     E em East End, às margens norte do rio Tâmisa e a leste da muralha medieval de Londres, a situação era ainda pior. Prostíbulos decrépitos, mendigos e alcoólatras brotavam nas ruas como carrapatos pestilentos numa cadela desnutrida, os pêlos rareados deixando à mostra pele e osso. Não havia mais o que sugar, mesmo assim imigrantes-carrapatos não paravam de chegar.
     O lugar se tornou antro de miséria e degradação, onde crimes infindáveis e das mais diversas naturezas ocorriam a todo tempo e sob vistas grossas da
Polícia Metropolitana de Londres. As autoridades preferiam ignorar o que ali ocorria.
***
     A noite encobria as ruas e becos fétidos de East End com uma mortalha silenciosa e funesta, quando Joseph Eisenschmidt deixou os fundos do açougue em que trabalhava. O lugar era uma espelunca malcheirosa e o proprietário um maldito explorador irlandês, porém precisava garantir seu sustento, afinal eram poucos os que podiam pagar por sua habilidade na forja.
     Era sexta-feira. Vagaria pela cidade. Beberia um pouco. E enfim poderia conseguir seu melhor pagamento.
      — Boa noite, em que posso servi-lo? — insinuou a mulher, sorriso provocante nos lábios e os dedos enrodilhando o soberbo decote do vestido rubro que lhe delineava o corpo. Era esguia e bonita para sua idade, todos diriam. E sozinha numa viela de Buck’s Row, seu hálito cheirava a álcool e à felação. — Talvez eu possa fazer sua noite acabar melhor — emendou às costas do homem, quando o viu o passar direto sem sequer lhe dar atenção.
     Joseph parou, a cartola de feltro negro ocultando-lhe o rosto, a mão esquerda metida no sobretudo surrado acariciando algo. Já andara um bocado, entrado e saído de vários bordéis, estando a uma boa distância de casa, trabalho ou comércio conhecido. E só havia os dois na ruela àquela hora e os postes de iluminação a óleo de baleia à distância eram incapazes de alcançá-los. Os sons que ecoavam no pavimento de paralelepípedo eram esparsos e longínquos.
     — Você tem um cigarro? — falou a prostituta, a voz oscilando num falsete temeroso, afinal o propenso cliente se virara e viera em sua direção, o rosto carrancudo obscurecido por um quê de maldade e homicida perversão.
     Mary Ann era pertencente às noites insalubres de East End e se habituara aos dissabores que às vezes as horas tardias poderiam oferecer, porém soube estar diante de algo que jamais poderia imaginar. Algo que veria uma derradeira vez.
     — Não fumo, — Joseph disse calmamente — mas tenho algo melhor para te oferecer — e a lâmina surgiu sibilando do bolso, o brilho luzidio abrindo caminho no ar e em seguida um profundo corte na garganta da mulher.
     Agora ela não mais podia gritar e, no estertor de sua morte, lágrimas vincaram seu rosto enquanto se ajoelhava numa espécie de pedido de clemência.
     — Sabe o que é pior? — Ele se reclinou e ficou à altura do rosto dela, segurando-a pelo queixo. — A sua noite poderia ter acabado melhor — assentiu, e a esfaqueou várias vezes no abdômen, indo e vindo, indo e vindo, o olhar maligno encarando-a com vidrada loucura e satisfação. Parou por um instante e ficou observando-a vomitar sangue; então sua boca lentamente foi de encontro àqueles lábios ensangüentados, beijando-os. — Agora durma bem, Mary Ann — sussurrou-lhe ao ouvido, desferindo um segundo e profundo corte na garganta da infeliz.
      O batismo fora consumado.
***
                                   O cadáver de Mary Ann Nichols foi encontrado às 03h40min da madrugada de sexta-feira, a 31 de agosto de 1888, frente a um estábulo da rua Buck’s Row. Conhecida meretriz de East End, tivera dois profundos cortes na garganta e o abdômen parcialmente mutilado. A brutalidade do ataque fora assombrosa.
 
     Aquele era um breve resumo do noticiário que estampava os jornais matutinos da cidade londrina. Joseph Eisenschmidt tinha comprado ao menos quatro deles e cada um tinha seu modus bizarro para narrar — enfim todos eram tablóides baratos e sensacionalistas, ávidos por alimentar a sanha de uma população faminta por detalhes macabros. E ele sentia-se bem em ver todo aquele alvoroço encarniçando os jornais de East End, em particular por que a Polícia Metropolitana de Londres sequer suspeitava do que acontecera.
     Joseph foi até um armário de ferramentas da alcova-oficina, afastou algumas e pegou um embrulho ao fundo, trazendo-o para a bancada de trabalho. Desenrolada de um trapo de pano, a faca surgiu limpa e polida como se houvesse sorvido todo o sangue que a banhara na noite anterior.
     — Você foi perfeita — sussurrou num tom de confidência; inexplicavelmente, criador fascinara-se com sua criatura — não vejo a hora de estarmos juntos mais uma vez.
     E assim começava a matança do assassino mais enigmático e venerado de Londres — e do mundo.
***
     Peter recordou a história que seu pai lhe contara quando tinha apenas quinze anos, ao entregar a Lágrima Rubra envolta ainda em trapos de pano — limpos, mas trapos de pano ainda. Posteriormente solicitaria que Giacomo Ravinatte lhe fizesse um estojo de ébano.
     — Não é algo muito honroso de se entregar a um filho, — ouvira dele — mas é algo que lhe pertence e que você precisava saber de onde veio. E a verdade é a que eu lhe disse… a prova está em suas mãos.
     Agora, passados quase cinqüenta anos, tudo parecia uma história longínqua contada aos pedaços, adquirindo o mesmo apelo de uma narrativa apresentada num livro e que vamos alimentando ao longo da vida como se fosse uma meia-verdade.
     Jamais soube a real motivação para Joseph Eisenschmidt iniciar sua bárbara onda de homicídios, assim como também procurava manter-se alheio à interpretação de caráter dos crimes, afinal em tempos atuais a sociedade apresenta tantos disparates criminosos que assassinar pais por causa de herança, praticar uxoricídios e esquartejamentos por vingança ou matar simplesmente matar se tornou comum, uma prática quase diária apresentada nos telejornais. Então para quê procurar entender e julgar os crimes de seu avô?
     Além do mais, agora tudo não passava de história.
     E.
   Que diferença faria ao mundo se soubessem que Peter Larsson, renomado Mastermith brasileiro e de sangue nórdico, era descendente direto do mais notório assassino que já existiu? Que várias alcunhas e informações sobre Joseph Eisenschmidt nada mais eram que especulações sensacionalistas e balela jornalística? Nada de cartas ou pedaços de rim para jornais, simples assim. Como desmentir quase 130 anos de pesquisas infrutíferas que alimentaram apenas mais indagações?
      Até mesmo para Peter nada daquilo faria sentido, se não fosse a Lágrima Rubra — um sombrio eufemismo dado à lâmina por Joseph em homenagem ao vestido rubro e às lágrimas de Mary Ann no momento de sua morte. Às vezes tudo aquilo lhe soava doentio e sórdido demais, porém o fascínio que a História exercia era maior e mais sedutor; afinal, quantas pessoas podem dizer (e talvez se orgulhar) que o sangue de “Jack, O Estripador” corre em suas veias?
 
***
     Peter apurou os ouvidos. A chuva fora reduzida a uma garoa e, caso não estivesse enganado, ouvira um veículo passando lentamente frente à casa. Levantou e atravessou o quarto, olhando sorrateiro pela janela da sacada.
     Estava certo, e ainda podia vê-lo se afastar. Esperou um pouco e após algum tempo o mesmo carro passou por ali, agora mais devagar, como se quisesse confirmar algo. Sabia do que talvez se tratava e foi ao armário pegar o revólver. Precisava se previnir.

     E foi neste instante que algo na escrivaninha lhe chamou a atenção, algo que quase brilhava no escuro. Ele sorriu.
     A Lágrima Rubra parecia ávida por se banhar em sangue novamente.



 
Nota do Autor: Quando possível, leiam "A Dama de Vermelho" ela é a antecipação de "A Lágrima Rubra".
 
 
                                                                                                                                                
O Marceneiro
Enviado por O Marceneiro em 03/03/2018
Reeditado em 09/04/2018
Código do texto: T6270114
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