A VOLTA DA FALECIDA- CAP 15

Capítulo 15
 
Não sou ateu, apenas não adoto nenhuma religião. Sinto-me mais confortável fazendo uma distinção entre fé e religião. Fé, para mim é crer que somos parte de alguma coisa maior, que temos uma função no todo que é o universo, e que nascemos por conta de algum propósito, que podemos nunca descobrir qual é, mas a Vontade que controla o processo de criação cósmica sabe. E o fato de eu, pelo menos admitir que existe uma Vontade no comando disto tudo já é bastante para desclassificar-me do conjunto dos ateus. Até porque ateus não existem. Quem afirma que não há um Deus tem que no mínino admitir que há um conceito afirmativo dessa existência. Porque o princípio da negação não tem sentido sem o princípio da afirmação. Ninguém pode pensar em não enfiar o dedo na tomada sem antes pensar na possibilidade de enfiar o dedo na tomada. 
Já religião é outra coisa. Religião é ritual. É forma, é processo. É o jeito que uma pessoa aprende a professar uma crença. É caminho que ela escolhe para tentar chegar até essa Vontade que comanda tudo. A fé tem uma única estrutura. É a crença na existência de um poder maior. Acredita-se ou não. Já a religião pode ter várias. Cristãos, muçulmanos, budistas, hinduístas, taoístas, com todas suas variações sectárias, são retratos das diferenças que separam a humanidade e a levam a tantos conflitos. Jonh Lennon disse que estaríamos melhor se não houvesse religiões e concordo com ele. Porque um arquétipo, que é a fé, ou a crença de que existe um poder maior a comandar o processo de nascimento, vida e extinção do universo, precisa ter tantas formas de exercício, se no fundo, todas se destinam ao mesmo objetivo?
Ter religião e achar que ela é mais certa do que as outras, no fundo, é não ter fé nenhuma. É tomar a parte pelo todo, o conteúdo pelo continente, o mapa pelo território. E como sabemos, nenhum mapa é o território.

Rosana era evangélica e levava a sério a sua religião. Mas nunca procurou me catequizar, nem às meninas. Até os dez ou doze anos , elas a acompanhavam à igreja Batista, que ela frequentava. Isso muito mais pelas amizades que elas tinham na ala jovem da igreja do que, propriamente, pela devoção sectária. Eram crianças e é compreensível que assim fosse.
A questão da religião nunca foi um problema entre nós dois. Rosana não era fanática e eu jamais tentei influenciar a cabeça dela com minhas teses sobre o assunto, e também nunca dei palpite em relação à educação das meninas a esse respeito. Aliás, fazia até gosto que elas fossem à Igreja e freqüentassem os cultos, e nas férias, achava legal que elas participassem dos acampamentos que a Igreja promovia para os jovens. Era um ambiente sadio, administrado e ministrado por pessoas sérias, e eu via nisso tudo uma boa fórmula de educação. Acredito que a doutrina dos batistas tenha sido uma boa influência para elas, pois nossas meninas nunca me deram trabalho no campo da moral e dos bons costumes. Sempre foram ajuizadas e encontraram o caminho delas na vida sem muito esforço e angústias para  a minha vida. 
 
Escrevi tudo isso para dizer que quando a nossa sentença de morte é pronunciada, faltando só saber o dia da execução, parece que todas as nossas crenças se reduzem à uma única preocupação: prolongar pelo maior tempo possível o dia da execução. É mais ou menos como um processo jurídico onde os advogados procuram usar todo tipo de recurso possível para evitar a execução da sentença. Sabem que mudá-la é impossível, mas se o réu morrer de morte natural antes disso, acaba sendo uma vitória.    
    Foi mais ou menos isso que aconteceu conosco uns dez anos depois da Rosana ter aquele tumor na mama. A metástase no intestino apareceu um dia e não levou mais de um ano para colocá-la frente à sentença fatal, apesar de todos os tratamentos que fez. Foram realizadas duas cirurgias que só ativaram ainda mais a malignidade do tumor. A cada vez que cortavam um pedaço do intestino dela, imediatamente o danado proliferava em outra parte. Passamos esse ano todo correndo de um lado para outro tentando encontrar um médico, ou um tratamento qualquer que pudesse curar aquele maldito tumor.   
Recomendaram-me que a levasse a um médico que fazia um tratamento alternativo, que segundo o informante, era muito eficiente. Levei duas semanas para conseguir uma consulta com o cara. Ele vivia em uma cidade do interior de São Paulo e tinha uma agenda muito complicada. Atendia pessoas do país inteiro e até do exterior. A consulta custava uma nota preta.
Chegamos ao consultório dele ás oito da manhã e fomos atendidos ás três da tarde. Havia pelo menos umas cinquenta pessoas na fila de espera para o atendimento. 
Finalmente chegou a nossa vez e nós entramos na sala do médico. Não havia maca, nem aparelhos de espécie alguma. Ele não usava estetoscópio nem qualquer outro instrumento que a gente está acostumada a encontrar nos consultórios médicos. 
Rosana sentou-se na cadeira em frente à mesa dele e esperou. O sujeito não lhe perguntou nada. Olhou detidamente a ficha que a secretária havia passado para ele. Pediu para ela mostrar a língua e olhou o cristalino dos olhos dela. Depois puxou de dentro de uma gaveta um pêndulo de cristal e balançou-o repetidamente em frente do rosto dela enquanto ia anotando números e desenhando símbolos numa folha de papel. Se disse duas ou três palavras foi muito.
No fim da consulta, que durou cerca de dez minutos, saímos de lá com uma receita e um endereço de farmácia. Fomos lá e compramos todos os medicamentos indicados na receita. Eram umas panaceias preparadas por uma farmácia de manipulação, ali na mesma cidade, e custava uma fortuna.
Rosana tomou todos os remédios direitinho. Não houve nenhuma melhora. Voltamos lá umas duas ou três vezes e o tratamento prescrito era sempre o mesmo. Uma pá de remédios comprados na mesma farmácia. Nada de melhora. Depois de um tempo desistimos. 
Se a forma como a gente está fazendo as coisas não está dando o resultado que esperamos, é melhor mudar o jeito de fazer. Esse é um preceito que eu sempre levei ao pé da letra. Não insistir com coisas que não funciona. Ouvimos falar de um médico argentino que dava consultas numa clínica no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Diziam maravilhas do cara. Tinha um método novo para o tratamento do câncer.
Fomos lá. Era um médico homeopata. Seu consultório era decorado com uma estranha mandala, onde uma gravura do homem vitruviano, aquele desenho de Leonardo da Vinci, combinava com nomes de ervas, fármacos e os signos do Zodíaco. Ele traçava estranhas equações matemáticas e desenhava fórmulas químicas numa folha de papel enquanto conversava com o paciente. Parecia mais um alquimista do que um médico.
“ De repente o cara é uma reencarnação de Paracelso,” pensei, embora nunca tivesse acreditado em reencarnação. Mas quando a gente precisa, é fácil arranjar lugar em nossa mente para qualquer crença. Acreditar é tão radicalmente diferente de precisar acreditar...
“Bem, isso é o de menos”, concluí. “Se funcionar, que Deus o abençoe.” Depois da consulta ele me deu uma receita enorme, com cinco ou seis produtos, que eu deveria aviar numa determinada farmácia ali perto. Custou-me cerca de mil e quinhentos reais o resultado daquelas garatujas que ele desenhou na receita. Curioso, fui pesquisar os ingredientes que ele misturara na sua estranha alquimia. Encontrei alguns nomes que eu já vira antes em algum lugar. Bryonnia, Allium Sativum, Beladona, Phosphorus, Aconnitun, Arnica, etc.
“Espertinho esse cara,” pensei. Minha mãe já usava esses produtos para me fazer chás quando eu era criança. Eram ótimos para curar dor de barriga, dor de cabeça, febre, expelir vermes, etc. 
Numa farmácia homeopática comum essa panaceia toda não custaria mais de cinquenta reais. Mas receita de médico precisa ser respeitada e eu comprei tudo que ele mandou. Não foi barato. Mais tarde descobri que a farmácia também era de propriedade dele. 
Rosana tomou todos os remédios que ele receitou e nada de melhorar. Mude de novo, pensei. Ofereça a si mesmo outras alternativas. Essa sempre foi a minha filosofia. Não insistir com ações que não geram os resultados esperados. 
Falaram-me de um sujeito na periferia de São Paulo que diziam ser capaz de verdadeiros milagres. Quem me contou foi um japonês, amigo meu de longa data. Ele tinha um câncer na garganta e estava se tratando com esse cara há algum tempo. Seu depoimento era de quem tinha muita esperança. Infelizmente ele morreu dois meses depois de me ter dado essa informação.
Mas se até um japonês como o meu amigo (racionalista até o último fio de cabelo), acreditava, por que não? Afirmavam que o tal sujeito era capaz de curar tudo. De sarampo a câncer. Até Aids, uma doença que naquela época ninguém sabia ainda como tratar.  
O tratamento que ele utilizava era uma coisa bem bizarra. Colocava as pessoas em baixo de uma pirâmide feita de varetas de alumínio e deixava-as ali deitadas por uns trinta, quarenta minutos. Havia gente que até dormia. 
― Esta é uma pirâmide orientada rigorosamente para o norte magnético ―, disse o sujeito. ―Ela capta a energia cósmica e a canaliza pelos pontos do organismo onde a doença se manifesta. É como um lazer que destrói os tecidos comprometidos, permitindo que o organismo os recomponha com tecidos novos.
O cara pelo menos falava bem. Tinha uma conversa de quem entendia do assunto.
Eu já tinha ouvido falar daquele negócio. Era a tal energia radiônica, uma espécie de energia cósmica que é capturada pela forma piramidal, que segundo os místicos, é a estrutura geométrica perfeita. Eu até já tivera um negócio desses em casa. Nunca funcionou para mim. Talvez eu não estivesse sabendo como utilizá-la, pensei. Aliás, eu nem tinha muita certeza onde era o tal norte magnético.
“ Hum, Deus nos ajude que funcione”, concluí.
Vinha gente de todo lugar para ficar durante quarenta minutos em baixo da tal pirâmide. “Se tanta gente acredita, deve haver algum mérito nesse negócio”, pensei.
Custava oitenta reais para a pessoa ficar durante quarenta minutos em baixo daquela armação de alumínio, mas o sujeito dizia que aquele tratamento era gratuito. Os oitentinha que ele cobrava eram uma ajuda para uma instituição de caridade que ele mantinha. Fui ver a tal instituição para ver se podia ajudar mais. A mulher dele era a presidente e os dois filhos os únicos funcionários. Não consegui descobrir que diabo de serviço a tal instituição prestava. 
Mas também, o que importava saber disso? O mundo é o mal e o bem. Um não existe sem o outro e muitas vezes o que parece mal acaba sendo um bem.
Rosana era especialista em câncer. Não como médica, que ela não era, mas como hospedeira do maldito. Teve um no útero aos 39 anos. Tirou, fez quimioterapia e sobreviveu por mais dez anos. Teve outro na mama aos 50. Tirou, tratou e viveu mais nove anos. Finalmente teve outro no intestino. Tirou, mas o danado voltou. Tirou de novo e ele voltou. Morreu com 59 anos.
Pouco antes de eu levá-la para o hospital para a última cirurgia, ela me disse: “Se essa cirurgia também não der certo, meu bem, não se aborreça. E não fique bravo com aqueles caras da homeopatia, da pirâmide e do pêndulo. Eles não estão enganando ninguém. Todo esse tempo nós temos perseguido a esperança. E ela sempre esteve nesses lugares onde fomos porque nós a levávamos conosco. Esperança não é uma coisa que alguém tenha para vender. Nós a temos ou não. O resto é só ritual. Aconteça o que acontecer, nunca deixe que ela se perca.”
Ela morreu dois dias antes da data marcada para a cirurgia.

(continua)