O MANUSCRITO PERNICIOSO - CLTS II
Aquele a que não resta senão um momento da vida
Nada tem a esconder.
Quinault, Atys
NOITE
Deixo escrito aqui a história dos meus derradeiros dias de vida. Era noite e estávamos a cerca de uns vinte quilômetros da cidade, nos encontrávamos exatamente no terreno que pertencia à família Colomam. Estávamos a caçar, fazíamos isso toda sexta-feira, mas naquele dia tudo seria diferente. Eu pude sentir isso, não sei se minha intuição alertou-me, foi um mistério do incognoscível. Era aproximadamente meia-noite, não conhecíamos bem aquela região, apenas sabíamos que fazia parte da casa de Colomam.
A noite era clara graças ao luar, mas como caminhávamos por entre árvores a luz não nos alcançava. Ao longe víamos a casa banhada pelo luar. Seguíamos uma trilha com auxílio de duas lanternas que tínhamos improvisado para nossas armas, era difícil sair da trilha porque o matagal estava denso. O velho Colomam já não cuidava mais de suas terras, era o que aparentava. Lembro que estava cansado de tanto caminhar, nunca havíamos ido tão longe para caçar.
"Será assombrada mesmo ou é só conversa fiada?", perguntou-me Will, era assim que eu chamava meu amigo. "Só saberemos se formos até lá para confirmar, mas com cuidado para o velho Colomam não acordar e sair atirando para todo lado."
Afoitos nós seguíamos aquela senda um pouco mais. Havia uma cerca velha, destruída quase completamente, estávamos a poucos metros da casa. Lembro bem, no exato momento em que olhei através do vão da janela daquela casa, senti um pavor, vi Colomam em pé com sua espingarda apontada para sua esposa, o filho dele aos berros foi também alvo de um tiro na testa, após isso o velho sentou-se à mesa com os cotovelos sobre ela e pôs as mãos para sustentar sua cabeça com fios de cabelo da cor do luar que banhava a casa e todo o seu terreno. Não posso afirmar o que Will viu, mas eu vi um espectro sentar-se ao lado do velho, ele tinha o rosto naquele instante como de um cadáver, sua palidez era notável. Cheguei a pensar que ele tinha morrido naquela posição. A sombra que estava ao lado do homem deu-lhe um papel e ele pegou e passou a olhá-lo fixamente como se estivesse lendo e em seguida começou a escrever.
Senti-me fraco, suei, tudo que presenciei foi horrível. Tirei meu olhar por um minuto e quando tornei a olhar o velho estava com uma adaga apontada para seu peito e ceifou sua própria vida. Depois disso a sombra sumiu, pensei por um momento que ela havia entrado no papel que o velho segurava antes de morrer. Tive a mesma percepção que tive ao sentir que aquela sexta-feira não seria normal. Talvez fosse deveras minha intuição dizendo também que o que vi, espírito impuro do além-mundo, havia entrado no papel.
No dia consecutivo, eu, Will e Zenóbio tornamos à casa, ninguém na cidade sabia do ocorrido, somente eu e Will, como estávamos muito assustados na hora em que tudo aconteceu resolvemos voltar para nossas casas e chamar mais um amigo para juntos irmos ver de perto os mortos. Hoje, percebo o quanto éramos bastante infantis e corajosos. Will, era o mais corajoso, disse que não tinha visto sombra alguma e que isso era coisa da minha cabeça.
Saímos na tardinha e ao chegarmos, entramos de supetão. O velho Colomam estava sentado na cadeira com o rosto contra a mesa. Seus olhos estavam abertos como se ele não quisesse morrer naquela hora, sua esposa e filho estavam com uma bala cravada na cabeça e estirados ao chão. Zenóbio virou-se para Will e disse: "Vamos embora!", Will olhou para ele e respondeu: "Só após lermos o que tem escrito naquele papel sobre a mesa.", foi sua última palavra até começar a ler. Ele apanhou do chão um papel, era o manuscrito. Foi até a varanda da velha casa, pois já era tardinha e o sol se despedia daquela região dando espaço para a escuridão da noite que já começava adentrar sem demora. Um inseto evolou-se diante de Will desaparecendo em seguida. E Will leu:
"Sei que não terei um julgamento pelas mãos do meu Criador, eu, João Colomam, na condição social de fazendeiro falido, sinto-me na obrigação de deixar meu testemunho em nome daqueles inocentes que ceifei. Minha vida tem sido uma desgraça por completo, minha mente perturbada e controlada por remédios não suporta mais a falta de efeito dessas drogas, minha mente está afogada de assasinatos e maldições. Quais? Para que quer saber além desses corpos que aqui estão? Deveria ter morrido antes de ter lido o manuscrito que custou a mesma desgraça a Marcos César. Como eu poderia saber que fazer o pacto era somente seguir as palavras em uma leitura? O Diabo realmente é traiçoeiro, Satanás! Marcos fez o juramento e suicidou-se, agora eu não tenho mais dívida com ele nem com o traiçoeiro."
Não entendi perfeitamente aquelas palavras escritas no manuscrito que Will estava a ler. Ele lia em voz alta, mas por uns segundos ele leu apenas para si. Depois, continuou lendo em voz alta.
"P.S. — William Mendes: neste fim de dia fatal repasso a suas mãos o manuscrito arquitetado pelo traiçoeiro, inimigo de toda a humanidade, para ser lido nas condições acordadas, assim como no local inimaginável por ti. Este manuscrito servirá também para explicar tua morte e suas circunstâncias. Ele estará com você durante essa noite para ter a certeza que leu o texto. Não tem como escapar disso. Espere-o depois da meia-noite. Ainda tenho esperança que Deus tenha piedade de nós, mas ele não terá… Antes de morrer leve os dois objetos que estão ao lado de minha cama." João Colomam Will, após concluir a leitura estava totalmente pálido e antes que eu reagisse ao pânico de ter ouvido o nome dele no manuscrito ele mesmo levou o papel em direção a chama do isqueiro e incendiou-o. Enquanto ele lia eu fiquei atento a sua leitura e não vi mais o nosso amigo Zenóbio. "Zenóbio, cadê você?". Will, olhou em direção a uma porta e disse: "Quero ver os objetos que estão no quarto, ele deve ter ido para lá."
Seguimos então para o quarto e enquanto caminhávamos perguntei como aquilo era possível, como o nome dele poderia está naquele papel agora em cinzas e ele disse: "Deve ser outro William." Não disse mais nada. Entramos no quarto e o que vimos, foi terrível. Zenóbio estava morto, os seus pulsos estavam cortados, ao seu lado havia um quadro tingido de vermelho, um semblante de um homem assustado, homem aflito e também a mesma adaga que o velho usou.
Eu fui muito inexpressivo, tanto quanto Will, se não fosse tão frio a ponto de suportar tudo aquilo sem entrar em pânico eu não teria conseguido sair dali ainda consciente. Percebemos que os dois objetos citados pelo velho no manuscrito eram o quadro e uma caixinha sobre uma mesa ao lado da cama. Comecei a ouvir um sussurro, Will também falou que ouviu. Tentamos entender aquela voz que dizia com dificuldade "O ódio do presente", essa frase era repetida em intervalos de tempo bem curtos. Comecei a sentir algo como eletricidade estática: "Will, não me sinto bem". Ele olhou para mim e disse a mesma coisa. Então fugimos de lá.
No dia seguinte acordei após ter um pesadelo no qual eu e Will estávamos mortos. Resolvi ir até ele para juntos irmos até à delegacia falar o que havíamos visto na primeira vez que nos aproximamos da casa de Colomam e de tudo que ocorreu desde então. Sabia que era algo sinistro e que de qualquer forma era preciso chamar a polícia, foi a única solução que pensei, ao menos eles fariam alguma coisa porque algo precisava ser feito em relação a todas as mortes que de certa forma eu e Will presenciamos. Quando estava me preparando para sair ouvi um sussurro, o mesmo sussurro da noite passada quando estávamos na casa do velho, corri até a residência de Will. Havia um movimento de pessoas na casa dele, uma das pessoas era o irmão de Zenóbio. Escondi-me atrás de uma das árvores do outro lado da rua em frente a residência do meu amigo, vi quando a ambulância do Instituto Médico Legal chegou e os dois homens que vieram nela entraram na casa dele trazendo após alguns minutos um corpo num caixote destinado a pessoas em estado de óbito. Só podia ser meu amigo William, ele morava sozinho assim como eu. Ninguém sabia que tínhamos saído juntos. Fiquei totalmente com meus sentidos apurados, tudo que passamos nos últimos dias foi sobrenatural, as mortes na casa do velho Colomam, o manuscrito com o nome de William, os sussurros.
Voltei para minha residência e logo ao entrar senti a mesma sensação de eletricidade estática no meu corpo, uma tontura seguida de calafrio. Fui para o quarto querendo me deitar e antes que sentasse na cama fiquei surpreso até demais ao ver a mesma caixa que vi ao lado da cama de Colomam, ela estava dessa vez sobre a minha. Quando toquei nela minha visão imediatamente escureceu e desmaiei. Não sei por quanto tempo permaneci desacordado, só lembro que acordei sentindo uma respiração ofegante em meu pescoço, quando me virei vi uma figura semelhante a um homem, porém com cabeça de bode, dedos e unhas grandes, a coisa correu no mesmo momento que virei a cabeça em direção a ela e pelo barulho produzido pelos seus pés pude concluir que não eram pés, mas sim, cascos.
A caixa continuava ao meu lado, não sei explicar como ela apareceu na minha casa, assim como não sei explicar como o nome do meu amigo estava naquele manuscrito funesto e assim como também não sei explicar o que vi. Resolvi tocar novamente na caixa para abri-la e ao fazer isso vi um papel que estava dentro dela, então peguei-o para ver. O medo não mais conseguia me impedir de ser atrevido o suficiente de pegar a caixa, o papel e ler o que havia escrito. Eu li o preço da minha coragem desenfreada em relação às coisas sobre-humanas.
"Francisco Couto, neste fim de dia fatal, repasso a suas mãos o manuscrito arquitetado pelo traiçoeiro, inimigo de toda a humanidade, aquele que viste e sentiste, para ser lido nas condições acordadas, assim como no dia inimaginável por ti. Este manuscrito servirá apenas para lembrá-lo da própria morte e suas circunstâncias. Não se preocupe, estarei contigo hoje durante a noite para ter certeza que tu cumprirás o que cabe a ti. Espere-me à meia-noite. Não há esperança para ti nem para quem ler e vir a saber sobre o manuscrito pernicioso."
Abadon/Apolion