A Dama de Vermelho
 
O importante é a história, e não o narrador.
Stephen Edwin King

     São Paulo, 01h05min. Sábado. Zona norte. O bairro estava sem energia elétrica.
     A chuva fora densa e opressiva nas últimas horas, porém naquele momento se resumia a uma fria garoa.
     Um cheiro acre de sangue emanava da cozinha às escuras, alastrando-se pelo ar como uma névoa invisível e agourenta.
     O jovem jazia ao lado da pia, os olhos semicerrados voltados para cima e a mão ensanguentada ainda segurando o profundo corte na garganta, incapaz de conter que seus últimos vestígios de vida se esvaíssem numa poça rubra para o porcelanato polido. Nem soubera o que o atingira: ele avançava pela cozinha, quando sentiu algo lhe riscar o pescoço e imediatamente as pernas fraquejar, fazendo-o tombar para frente como um peso morto. Desnorteado, restara-lhe forças apenas para se virar, sua consciência definhando tal qual uma lamparina sem óleo, a camiseta antes amarela se encharcando de vermelho, alertando que nada o salvaria do iminente fim.
     Agora uma luminosidade tênue se infiltrava pela janela maxim-ares ao alto, destacando seu corpo moribundo igual a um holofote numa dramática cena de teatro — e ele tremeu um pouco mais, gorgolejando e sufocando, o peito subindo e descendo, querendo ar, buscando vida, para, enfim, todos os seus movimentos lentamente cessar.
*** 
     Parado ao centro da cozinha, o indivíduo assistia à cena, uma expressão estranha cingindo seu rosto, como que saboreando aquele impensável desfecho. Não era para aquilo ter acontecido, porém estava contente pela forma que aconteceu. Aos poucos seus lábios foram se elevando num sorriso e então, em êxtase, sentiu a mão direita tremer, segurando firme a imponente faca de quase dez polegadas. Jamais imaginou que sentiria tanto prazer em fazer algo assim.
     A chuva se intensificou, soando ruidosa ao bater no telhado reclinável lá fora, despertando-o.
     Em alerta, desvencilhou-se do cadáver e cruzou a sala sem fazer o menor ruído, se posicionado entre as costas da porta de entrada principal e um conjunto de vitrôs fumês pivotantes. Discreto, sondou a garagem.
     Ainda que estivesse tudo às escuras, distinguiu os contornos de um veículo, prateleiras de ferramentas e bancadas de trabalho numa das laterais, uma bicicleta atravancando a passagem, caixas e utensílios espalhados pelo chão e, mais adiante, o portão de lambril pintado de branco. Uma réstia de claridade vinda da rua formava um filete vertical nele, indicando que a entrada social fora deixada entreaberta.
     Suspeitava de haver mais alguém ali e o procurava atentamente varrendo os cantos da garagem com os olhos, quando notou um veículo se aproximar devagar, em ponto morto, e estacionar do outro lado da calçada.
     A chuva não dava trégua — e ninguém desceu.
   Quieto, aguardou. Aguardou. E aguardou. Por longos e estafantes minutos ficou à espreita.
     Enfim, a porta do motorista se abriu e um rapaz correu apressado em direção à casa. Não deveria ter mais de vinte anos, mas possuía uma compleição forte, evidenciada pela camiseta cinza larga e um boné preto que lhe encobria o rosto gorducho. Atravessou o portão social, fechou-o com naturalidade e parou para esbofetear os respingos da chuva que recebera na corrida, sendo assim possível notar certa languidez em seus movimentos — languidez de um ébrio, talvez.
     Talvez.
     Por trás da janela, o homem sorriu, jubiloso.
  O olor de sangue fresco agora se insinuava como uma sádica dama de vermelho, que rodopia atrevida ao som de uma canção inaudível e maldita, destilando sua inebriante fragrância de morte através das sombras da sala de estar.
     A morte cheirava a rubro.
     Fungou, sentindo a dama arrepiar-lhe como se de fato lhe passasse os dedos na nuca. Reverente, desceu os olhos à imponente faca — deleitando-se com a perfeição de filigranas escarlate enveredando por seu cabo esculpido em mármore travertino, que empunha e contrabalanceava a densa lâmina forjada em aço damasco, forte e soberba, tão afiada que seu gume parecia luzir àquela penumbra homicida. Ela nada mais era de que um objeto inanimado, porém, que naquele instante, parecia vibrar em sua mão espalmada, adquirindo uma espécie de enlevado misticismo — era como ela o incitasse a agir, a usá-la…
     Ouviu passos avançando pela garagem e então algo caindo. O jovem se aproximava.
     Seu coração acelerou, irrequieto, excitado como átomos expostos a uma fonte intensa de calor. Fungou novamente, a dama de vermelho acentuando ainda mais suas emoções. Ela era sua fonte, sua chama.
     Espichou o olhar ao cadáver esparramado no chão e retornou-o à opulenta faca, recordando que sequer a manchara de sangue, quando, encoberto pela escuridão, se aproximara por trás e cortara a garganta do infeliz. Fora um movimento audaz e limpo; mal o tocara. Contudo, dessa vez queria algo diferente, ansiava por algo a mais. Queria intimidade, queria ouvir o estertor da “vítima”, queria sentir sua mão ser aquecida no sangue dela — e a faca, com a sutileza e precisão do seu corte, o estimulava.
     E teriam uma nova oportunidade. Bastava esperar. Apenas esperar.
*** 
     Após estapear a roupa, o rapaz se esgueirou cauteloso pela lateral do carro, porém esbarrou no guidão da bicicleta, que caiu estrondosa. Parou e escutou; aparentemente ninguém o ouviu, podia prosseguir. Ele e o amigo haviam ingerido quase uma garrafa de Ballantine’s — agora largada sob o banco do carona, a apenas três dedos do fim —, mas ainda possuía sobriedade para manter silêncio. Não queria que alguém da casa o visse entrando daquela maneira. Não queria que o vissem, na verdade. A ideia era somente fazer uma parada rápida antes de ir no “fluxo” não muito longe dali. A chuva pouco importava.
     Empurrou a pesada porta branca de madeira maciça e puxador grande tubular, que deslizou por suas dobradiças sem fazer o menor ruído.
Um serviço bem feito, pensou, satisfeito consigo mesmo ao avançar pela escuridão. Sentia-se muito à vontade — a bebida o munira de tranqüilidade e o desprovera de qualquer senso de casualidade.
     E sua mente o instigava, projetando-o à futura farra.
     Carros e motos estacionados formavam um corredor na rua, enquanto ele e o amigo perambulavam ostentando garrafas de Red Label. Fariam gracejos, tirando sarro de um e outro conhecido. E o som estaria agressivamente alto, com garotas aqui e ali em roupas provocantes dançando funk em coreografias quase pornográficas. Eles as admirariam, esbanjando whisky e dividindo um ou dois cigarros de maconha. Isso sim era vida, pensava.
     No entanto, a música sucumbiu de repente, congelando tudo ao seu redor com a onírica vividez de um efeito cinematográfico. Incrédulo, observou um rapaz negro que soltara fumaça pelo canto da boca e esta permanecera estagnada no ar; uma garota jogara um copo de energético num outro jovem, provavelmente por este ter feito algum gracejo que ela desaprovara, o líquido esverdeado percorrendo o espaço entre eles como uma mão transparente que se espatifaria ao atingi-lo...
     E, então, ele se viu lançado à realidade silenciosa da sala de estar. Uma realidade exata e tangível.
     Primeiro foi o cheiro de sangue, que o atingiu como um soco ácido no nariz, depois a visão do cadáver do amigo destacado pela claridade no chão da cozinha… e, enfim, algo gélido, físico e letal que penetrou-lhe a barriga, pouco abaixo do baço — algo que o invadira tão sub-repticiamente que seu cérebro sequer processara reflexos de dor ou defesa.
     E.
     Bem devagar, numa espécie de sórdido slow motion, foi se virando na direção de seu agressor, os olhos tão arregalados e brancos que pareciam inundar a sala de luz, entrevendo com nitidez aumentada toda a paradoxal situação que ali se desenrolava.
     Não entendia por que o homem — aquele homem — sorria daquela maneira, tão audaz e escarnecedora.
     Não haviam sentado à mesa para tomar café e almoçar?
   Não o ajudara a escolher os melhores produtos, quando este resolvera reformar a casa?
     Não foram juntos comprar as tintas que usara para pintar as paredes da sala, o portão e a porta de entrada?
     Sim. Sim. Sim. Sim.
   Então por que ele estava fazendo isso? Por que resolvera traí-lo tão cruelmente?
     Talvez por que...
     A resposta não foi nem um pouco agradável: a faca foi afastada de suas entranhas, mas não a ponto de deixá-las, e depois estocada de volta, com mais pressão, fazendo sangue fluir numa golfada sangrenta sobre a mão de seu opressor.
     E dessa vez, mesmo sob o efeito do álcool, contudo não mais amortecido pela indolência da surpresa, pode sentir todo o sofrimento que aquela lâmina assassina lhe infligia, destroçando-o em dores elétricas e enervantes que o açoitaram em agonia, esmurrando-lhe o cérebro com a atroz letargia de um grito mudo, suas mãos instintivamente agarrando o punho que o agredia.
     — Por que isso? — conseguiu dizer, os joelhos flexionando-se ante as lancinantes dores. — Por quê?
     E, dessa vez, a resposta foi ainda mais penosa. Sorrindo, um sadismo ensandecido e cruel tamborilando-lhe nas faces, o homem tão-somente firmou a soberba lâmina e foi pressionando, de modo lento e moderado, dolorosamente cortando o jovem em direção ao umbigo.
     — Por quê? — replicou, a voz rouca e desvairada, o sangue quente banhando seu antebraço. E seria mera impressão ou de fato ouvia o suave regozijo da lâmina ao cortar as camadas de banha e pele do infeliz? Não sabia, porém estava sendo delicioso avançar pela carne viva e pulsante com tamanha delicadeza e facilidade. — Por que o cheiro do medo do caçador é ainda mais saboroso, quando experimentado pela própria presa — lancetou, comedidamente, rasgando-o.
***     
     Três dias depois, espremida num canto do jornal Diário de São Paulo, fora publicada a seguinte notícia: 
Prossegue a incógnita no bairro Monte Azul.
Apesar dos esforços, a polícia não tem pistas sobre os assassinatos de Fabrício Dantas Prado, 21, e Hélio Franco Cardoso, 26, ocorridos na madrugada do último dia 30. Ambos foram encontrados no interior da residência que, segundo informações, tinham prestado serviços de reforma, há alguns meses. Os proprietários não estavam no local, tendo viajado ao sítio da família pela manhã, em Araras, a fim de comemorar o Réveillon. Suspeita-se de roubo planejado, já que traziam cópias das chaves e não portavam qualquer tipo de arma.
O intrigante.
Investigações apuraram que a dupla chegou num Celta preto, estacionando-o do outro lado da rua e invadindo a residência pela entrada principal; entretanto, de alguma maneira, já lá dentro, foram mortos a facadas.
A polícia ainda não sabe como se deu a dinâmica da invasão: se entraram juntos ou separados, se alguém os surpreendeu, se foram rendidos, imobilizados e então esfaqueados. A única certeza é que não tiveram tempo de perambular pela casa, que não houve qualquer tipo de luta e que possivelmente estavam bêbados.
A incógnita
Fabrício e Hélio moravam num bairro próximo, sendo vizinhos, e participavam de uma festa de aniversário, quando simplesmente resolveram dar uma volta. Ambos tinham passagem pela polícia por diversos delitos, entre roubo, furto e invasão, mas amigos e familiares afirmaram que haviam deixado essa vida para trás e que não têm ideia do que possa ter acontecido.
O proprietário, P.L., um senhor educado e de fala mansa, que vive com a esposa e o casal de filhos adolescentes na residência, é um respeitado mestre cuteleiro e, conforme depoimento, jamais desconfiou da dupla e se mostrou surpreso por já terem sido anteriormente presos. P.L. (que teve o nome preservado) chegou trinta minutos após a polícia encontrar o Celta, depois de denúncia anônima, e foi ele que notou algo errado em seu portão social ao tentar abrir o basculante, alertando os policiais.
A rua onde tudo aconteceu sempre foi tranqüila e naquela noite as fortes chuvas e falta de energia contribuíram mais ainda para isso. Também não há câmeras de segurança no perímetro, de forma que ninguém viu ou ouviu nada.
O Marceneiro
Enviado por O Marceneiro em 18/02/2018
Reeditado em 03/07/2021
Código do texto: T6257135
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.