Capítulo 14
A perspectiva da morte é uma coisa terrível. Ainda bem que a gente pensa pouco nisso durante a nossa vida diária e só se dá conta dessa inevitabilidade quando com ela é confrontada. Esse confronto provoca um sentimento simplesmente arrasador. É como se uma manopla de ferro nos entrasse pelo peito adentro e começasse a apertar o coração, até reduzi-lo ao tamanho de uma castanha do Pará. Não importa que a gente saiba que esse momento chega para todos nós. Que é tão certo como o nascer do dia, ou a chegada da noite, que um dia todos nós teremos que viver esse momento. Quando ele chega ninguém sabe lidar com ele.
Saber que é impossível evitar a chegada da morte não a torna menos temível; saber que inevitavelmente temos que envelhecer não faz a velhice menos indesejável. Por mais que a gente saiba e espere, existem coisas, que quando acontecem, doem como se fossem feridas incuráveis porque, mesmo sabendo que são inevitáveis, a nossa mente sempre espera que alguma coisa, no meio do processo, possa acontecer e ser causa de uma sentença favorável, bem diferente daquela que a gente está esperando.
Foi isso que eu senti quando vi a Rosana com aquela radiografia nas mãos. Sentada na cama, ela chorava silenciosamente. A porta estava fechada para que as meninas não ouvissem. Eu nunca batia na porta do quarto para entrar. Afinal era o nosso quarto. O quarto onde dividíamos as intimidades, onde dizíamos, um para o outro, as coisas que um gostava que o outro fizesse, onde se cobravam as coisas que cada um achava que o outro devia, e depois a gente se embolava, numa fusão de corpos e gemidos que, mais do que qualquer palavra, mostrava o quanto gostávamos um do outro, e como nos queríamos e nos entendíamos, mesmo depois de brigar. Por isso, diziam os amigos, com uma ponta de surpresa, inveja e até de despeito: “ esse casal parece que nunca briga”. Brigávamos sim, mas nunca na frente dos outros. Nem das nossas filhas.
Mas isso agora parecia coisa do passado. Dez anos de um casamento que se diria quase perfeito parecia que estava próximo do fim. Eu não conseguia entender o que estava acontecendo com a nossa vida. Do meu lado não havia traição, não havia falta de compromisso, não havia sequer a perda de interesse sexual que normalmente ocorre á medida que as parcerias vão envelhecendo. Eu continuava ativo e interessado como nos primeiros tempos da relação, e jamais sonegava o meu carinho para Rosana e as nossas filhas. Dificuldades financeiras também não podiam ser o motivo daquela esfriada que acontecera na relação. Eu tinha um emprego estável, como procurador da Fazenda Nacional, dava aulas em duas universidades e tinha alcançado uma situação financeira sólida e segura, que permitia á nossa família uma existência tranquila, confortável e bem provida de todas as materialidades necessárias que o vulgo chama de uma vida com qualidade. Rosana era professora do ensino fundamental e médio, e lecionava meio período em uma escola da municipalidade. Muito mais para se sentir uma profissional e ter algo com que se ocupar, além dos serviços de casa e da educação das nossas filhas, do que com a necessidade de ganhar dinheiro . Até então, tudo tinha sido perfeito para nós dois.
Mas agora aquilo. De repente Rosana esfriara como se uma febre hipotérmica tivesse se instalado no corpo dela e não tivesse saído mais. De uma hora para outra ela começou a evitar as intimidades comigo, não permitindo nem que eu a abraçasse. E isso era o que eu mais gostava quando chegava em casa, á tarde, e ela estava na cozinha, preparando o jantar. O abraço que eu lhe dava, pegando-a por trás, beijando o pescoço dela, acariciando-lhe os seios, era como uma senha que identificava o prazer e a satisfação que havia naquela nossa parceria.
Mas agora aquilo. Quando eu chegava em casa e ensaiava o abraço habitual, ela se afastava e saia do alcance dos meus braços, simulando necessidade imperiosa de desligar algum aparelho ou atender á um chamado, que só ela escutava, das meninas.
“O que está acontecendo com ela?”, perguntei-me várias vezes. “Será que ela está achando que eu tenho algum caso fora de casa?”
Só podia ser isso, conclui. Para que uma mulher, que parecia gostar tanto do jogo sensual que alimenta a relação de um casal que se ama, esse comportamento era inexplicável e só podia vir da falsa concepção de que eu a estaria traindo.
“Será que alguém andou envenenando a cabeça dela com uma mentira dessas?”
Não tinha meios de saber, a menos que Rosana falasse. Mas ela não falava. Quando eu começava a tocar no assunto ela desconversava, fugia, inventava tarefas fictícias, tudo para não falar do assunto. E á noite, quando eu a procurava, era como se ela tivesse adquirido uma profunda aversão pelos meus carinhos, pois ao simples contato da minha mão no corpo dela, ela se afastava como se tivesse sido tocada por um inseto asqueroso.
Já fazia cerca de um mês que aquilo estava acontecendo e eu estava no limite da minha paciência. As desculpas de cansaço, dor de cabeça, estresse com as crianças da escola e as filhas, já não colavam mais. Ou Rosana estava doente, ou... Se fosse doença precisava ser tratada. Se fosse outra coisa... De qualquer modo tudo precisava ser esclarecido, pois daquele jeito não dava para continuar mais.
Foi com essa disposição que eu cheguei em casa naquele dia. Rosana não estava na cozinha preparando o jantar, como usualmente fazia. Nem na sala assistindo televisão. “Onde está sua mãe?” perguntei à Jimena, nossa filha mais velha, que estava deitada no sofá, rolando a tela do celular para cima e para baixo.
“No quarto” respondeu a menina. “Ela está meio esquisita hoje. Passou por nós como se não visse a gente.”
Foi imediatamente ao quarto. Rosana estava sentada na cama chorando convulsivamente. Soube imediatamente o que significava aquela cena. A radiografia, que ela segurava maquinalmente nas mãos, era uma imagem clara da razão de todos aqueles constrangimentos. Pontos esbranquiçados, nodosos, assustadores, se destacavam contra o fundo opaco daquela chapa radiográfica, que se apresentava ali, como se fosse uma sentença de morte que acabava de ser prolatada por um juiz.
Em cima da cama um laudo, assustador, sinistro, assinado pelo médico do laboratório. “A histologia da mama esquerda indica a presença de células modificadas...”
Eu nem tentei continuar a leitura. Primeiro por que não entendia a linguagem médica, segundo por que minha intuição já adivinhara o que era aquilo. Fui direto ao final do laudo, onde o diagnóstico fatal, aterrador, bateu direto no meu coração, como se ele tivesse recebido uma estocada mortal. Mesmo sem entender as palavras que descreviam aquela visão da morte estampada na radiografia, Eu logo percebi que aquelas manchas esbranquiçadas eram a verdadeira imagem do terror!
“ Trata-se de um carcinoma ductal do tipo invasor, com alto grau de malignidade...”
“ Eu não quero morrer!” explodiu Rosana, caindo num choro convulsivo, me abraçando com uma força que eu nunca pensei que ela fosse capaz.
“ Você não vai morrer”, eu disse. “ Vamos vencer isso. Você vai ver.” Foram as únicas palavras que eu conseguiu pronunciar naquele momento. Minha mente estava vazia e meu coração parecia ter sido esmagado por uma prensa. Então era isso...
Naquele dia Rosana chorou durante cerca de duas horas, enlaçada nos meus braços. Molhou toda a minha camisa. Durante esse tempo eu não disse uma palavra. Não cessava de acariciá-la e depositar beijos na sua testa, face, olhos, cabelos. Naquela noite ela dormiu nos meus braços como costumava fazer nos primeiros anos de nosso casamento. Como se precisasse de um refúgio para se proteger contra aquela imagem de terror que se instalara em sua mente.
Agora tudo estava esclarecido. Na noite seguinte fizemos amor com a mesma satisfação das nossas primeiras noites.
Uma semana mais tarde Rosana submeteu-se á uma cirurgia onde a mama comprometida foi retirada e substituída por uma prótese. Depois submeteu-se a um tratamento quimioterápico, que ela suportou estoicamente, apesar de todo o sofrimento que ele representou. Perdeu os cabelos e os recuperou. Em toda essa verdadeira "via crucis" sempre estive ao lado dela, dando-lhe todo o carinho, todo o suporte, demonstrando com palavras e atos o verdadeiro amor que sentia por ela.
Não há terror que não se dissipe quando a verdade é revelada. Rosana viveu mais dez anos depois disso e viu nossa primeira neta nascer. Morreu de parada cardíaca.
Fico pensando se não é tudo isso que a fez voltar do outro mundo. Quando temos muito a deixar neste, a gente resiste à ideia de deixar tudo.