De brumas, sem Avalon

Do povoado do Brumado ao distrito-sede da Velha Serrana, que a história resolveu nomear Pitangui, é coisa de uma légua, em boa estrada, asfaltada margeando em seu trecho mais plano o rio São João, até chegar ao Xande Afonso. A partir daí, uma subida brusca e sinuosa, de cujo alto você já descortina a Rainha do Centro-Oeste mneiro, que neste ano completa 303 aniversários de elevação a vila, e 163 de emancipação municipal.

Mas nos anos cinquenta, malgrado a existente ligação ferroviária entre esses dois núcleos urbanos, o que a viagem proporcionava de atração visual, ela roubava de tempo para quem tivesse pressa: eram 14 quilômetros, sendo forçada uma passagem pelo Velho da Taipa para se obedecer à imposição da topografia. E contar com sorte de o trem não se atrasar demais.

E fora dos dois ou três horários da jardineira do Tonico, ou dos ônibus da Santa Maria que privilegiavam as horas da claridade, era ainda costumeiro a gente do Brumado valer-se da estrada antiga, que se serpenteava pela mistura de mata e pastagem numa cabeça de serra e encurtar o caminho a quase a metade, malgrado o triplo de riscos que se corria, entre cobras, passagens mal assombradas, ravinas que se despistavam sob a folhagem, e qualquer outra miragem...até mesmo o risco de alguma onça faminta...

Esses percalços reduziam naturalmente as aventuras, e a economia de passagens por mais prazerosas que fossem. E só eram superados pela força da necessidade em emergências, sobretudo, à noite.

E foi numa ocasião dessas que papai, moço ainda dos seus trinta e poucos anos viu-se forçado a ir a Pitangui, no breu da noite, para buscar recurso para alguma enfermidade infantil que, aparentemente, não podia esperar a luz do dia. Farmacêutico ou médico era para isso. E mesmo com todo o temor e respeito à Santa Madre, curuz de padre numa hora daquela...

Papai pôs-se em marcha, em sua botina ringedeira, enfiou o punhal na cinta, benzeu-se e só não se valeu duma lanterna porque as economias ainda não lhe haviam dado a folga necessária para esse bem ainda mais que necessário...ou talvez já a tivesse - pois eu me lembro dela - mas lhe faltassem a pilhas, sem as quais, nada de fiat lux...

Mas o terço tava ali já no bolso, e logo passaria à mão,pronto para alumiar as pisadas. Deixando Zezé com a prole, e o Anjo Santo do Senhor, o zeloso guardador, meteu-se em marcha. A hora era ingrata, mas para fazer o bem, era sempre exata. E meteu-se a caminhar e, se não rezou, fervorosamente, jaculou. Havia tanta forma de se invocar a proteção divina...

A lua não cooperava, nova demais que andava, mas Luiz conhecia bem as trilhas, campeador que fora nos tempos de guri e rapazim. E a meio caminho foi que o desafio do inaudito se lhe assomou: sentiu passos firmes, pesados na sua direção, embora nem vulto visse então...

Tomado de força e de fé - ali por aquele local está ainda hoje, tão antiga a cruzinha de madeira onde anos e anos passados em crime até hoje insolúvel, fora assassinado a sangue frio o João Chave, transportador de dinheiro para os operários de ambas as fábricas de tecidos, do Brumado e do Pitangui - justamente ali, as passadas iam ficando mais nítidas.

Num átimo, papai, apertando as contas do terço, lembrou-se que já encontrara por aqueles páramos com um tal Joaquim, de noturnos e soturnos hábitos, e se encheu de força então para uma saudação comum aos viandantes da noite daqueles tempos menos tenebrosos:

- Ô Joaquim, que breu hein...?

Sem resposta, o que de imediato ouviu foi uma disparada..., pasto afora..

Anos e anos depois, ao narrar o sucedido misterioso, ainda ficava entre alguma tentativa de abordagem de uma alma penada, que recorria em seus sonhos, ou o garrote da Companhia que, pesadão se sacudia, até quando pro brejo, a vaca ia...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 15/02/2018
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