DESAPARECIDOS
- Não tem ninguém em casa. Nós deveríamos ir à polícia, não tem porque mais esperar. – disse Luísa aflita.
- Vamos tentar mais uma vez, ok? Deve haver alguma explicação lógica para eles terem feito isso. Eu tenho certeza.
Mas não tinha certeza. Seus olhos o traíram quando disse isso, mas Luísa não havia percebido isso. Luísa estava cega pelo desespero, procurando loucamente alguma esperança a qual se agarrar e que pudesse responder o que tentavam descobrir há dois dias: onde estavam o filho e a nora?
- Prometo que é a última tentativa. De repente eles quiseram tirar um tempo para eles. – disse Pedro tentando manter a tranquilidade. – Se eles não atenderem nós vamos a polícia.
Luísa assentiu brevemente, angustiada. Apertava freneticamente o lenço que vinha usando para enxugar as lagrimas a ponto de o tecido ter esgarçado em alguns pontos.
Pedro respirou fundo e tocou a campainha.
Silencio. Silencio por minutos eternos.
- Pedro, chega, não dá mais para esperar. – disse Luísa desmanchando-se em lágrimas. - Por favor, vamos. - suplicou.
Não havia mais o que fazer e o que esperar. Passou os dedos pelos cabelos ralos da meia idade. Luísa estava certa desde o início, o filho e a nora estavam desaparecidos. Estava tentando negar isso desde o primeiro momento, tentando crer do fundo do coração que a esposa estava errada, mas ela não estava. Ela, a mãe que em nenhum momento tentou negar a realidade dos fatos ao contrário dele. Agora estavam ali e torcia dentro de si para que sua negação dos fatos não pudesse a ser culpada de consequências terríveis. Mas jamais diria isso a Luísa. Iria até o final tentando acalma-la, crendo que na verdade era tudo um grande mal-entendido.
Pegou as chaves do carro com as mãos tremulas e abraçou a esposa, respirando profundamente mais uma vez. Era um desespero pela qual jamais imaginara passar.
- Pai? Mãe? Tá tudo bem?
O casal virou assustado. Ali estava o filho, plantado no portão da casa vestido um robe por cima do pijama.
- Miguel? MIGUEL! MIGUEL! - gritou Luísa enquanto corria para abraçar o filho que estava parado sem entender muito o que estava acontecendo.
Pedro por sua vez ficou parado, estarrecido ante a imagem do filho. Sentiu uma tontura leve tomar conta de sua cabeça, a tontura que o abatia quando sua pressão oscilava. A princípio sentiu confusão ao ver a imagem do filho ali, mas enquanto a esposa abraçava o mesmo, as coisas começavam a tomar clareza em sua mente. O casal não havia passado apuros nos últimos dois dias, estavam ali, são e salvos. Pelo menos o filho estava. Havia sido só negligência pura mesmo.
Não era tão emotivo quanto a esposa e apesar do grande alívio de ver Miguel ali na sua frente, agora que sua mente estava tomando clareza e pressupondo os fatos, estava puto. Não falara a sério para a esposa sobre a possibilidade de o casal ter tirado uns dias somente para os dois, isolando-se de todos. Dissera aquilo só para acalma-la, o filho jamais ficaria tanto tempo sem dar notícias. Estavam há dois dias procurando ambos, sem sinal, haviam vindo a casa duas vezes e saíram sem serem atendidos e agora ali estava o filho com a maior cara de quem havia acabado de acordar, como se não houvesse nada de errado.
- Mãe, pare de chorar. - Reclamou Miguel se desvencilhando da mãe que permanecia abraçada a ele. - Eu não estou entendendo o que está acontecendo.
- Você não está entendendo o que está acontecendo, Miguel? Você não faz nem uma ideia do que está acontecendo? - Perguntou Pedro tentando sem sucesso controlar a raiva em sua voz.
Luísa olhou espantada com o tom de voz. Aparentemente a esposa achava ofensivo o marido estar indignado com a ausência irresponsável do filho. Mães tinham esse hábito de passar por cima da cagada dos filhos apenas pela alegria em vê-los.
- Não pai, eu não sei mesmo. - respondeu Miguel piscando confusamente. – Nós não podemos entrar para conversarmos? A Michele está na cozinha. O sol está muito forte aqui fora, está me incomodando.
Pedro respirou fundo tentando manter o auto controle e jogando fora as suposições em sua mente. Deveria haver alguma explicação lógica, tinha que ter, tanta irresponsabilidade tinha que ter um bom motivo. Miguel nunca fora irresponsável nem desrespeitoso, a explicação dele para isso seria ótima e tudo acabaria bem. Era isso.
Entraram os três na casa do casal. Luísa ainda segurando no braço do filho, com medo que o mesmo fosse uma ilusão que pudesse desaparecer a qualquer momento. Miguel andava ao lado visivelmente incomodado com o descontrole emocional da mãe. Pedro continuava tentando não se levar por emoções precipitadas, mas tinha a nítida impressão que Miguel não estava nem um pouco interessado no desespero dos pais em encontra-lo, como se não houvesse feito nada de errado.
- Michele, meus pais estão aqui. - Anunciou Miguel ao chegarem na cozinha.
A pouca estabilidade emocional que havia retomado a Luísa foi-se embora quando ela viu a nora virada de costas lavando a louça.
- Michele! Ah meu deus Michele, nós estávamos tão preocupados! - disse ela chorosa e correu para abraçar a nora que havia se virado da louça para observar os sogros.
Luísa abraçou Michele fortemente, mas ela pouca reação esboçou. Afagou vagamente as costas da sogra, mas sem se importar muito.
Pedro observava o ambiente com curiosidade. Por algum motivo a nora estava lavando uma louça que já estava limpa sobre a pia.
- Por que você está assim Luísa? - perguntou Michele num tom de voz sem emoção. – O que foi, Pedro?
- Michele, você está lavando uma louça que já está limpa? – perguntou Pedro incapaz de conter a curiosidade.
Luísa olhou confusa para o marido, tentando entender se aquilo realmente era relevante.
A nora ergueu os olhos para o sogro e fitou-o por alguns segundos antes de responder:
- Estou fazendo uma faxina geral. Algumas coisas precisam ser descartadas quando chega a hora.
Pedro permaneceu com aquela sensação de estranhamento, de algo errado no ambiente. Havia algo de errado ali, mas não sabia dizer o que era.
O silencio pairou no ambiente. Filho e nora contemplavam o casal sem nada dizerem.
- Onde vocês estavam? - perguntou com a voz tremula- Vocês desapareceram por dois dias. Não foram trabalhar, os celulares desligados, a campainha que não atende. Vocês nos mataram de preocupação.
- Olha pai, vamos sentar aqui na mesa para conversarmos. Eu estou um pouco cansado e nós não matamos ninguém. Olhem vocês dois aqui conosco. – disse Miguel puxando as cadeiras para todos se sentarem.
- Cansado exatamente do que Miguel? Onde vocês estiveram?
- Pedro! Você não precisa ser rude...
- Eu não estou sendo rude Luísa! - disse finalmente voltando a perder o autocontrole. – Eu quero respostas! Nós não dormimos há dois dias, dois dias sem comer, dois dias de nervoso. Eu só estou pedindo explicações, somente isso.
- Vamos no sentar pai. Eu já disse que vou explicar, mas eu realmente preciso me sentar. - falou Miguel com impaciência na voz.
Permaneceu de pé por mais alguns instantes até que a esposa o puxou pela manga e implorou chorosa.
- Pedro, colabore por favor.
Sentaram-se os três à mesa.
- Michele? Não vai se sentar? - perguntou Luísa
Michele continuava de pé frente a pia, com o olhar perdido no infinito. Quando ouviu seu nome olhou brevemente espantada em direção as três pessoas. Sentou-se à mesa, mas logo retomou aquele estado de alheamento.
- E então? – perguntou Pedro.
- Não aconteceu nada de grave pai. Nós só pegamos uma gripe muito forte.
- Uma gripe? - perguntou Pedro com desconfiança.
- Sim, uma gripe.
- Vocês não parecem bem mesmo. – disse Luísa, tomando a mão do filho nas suas. – Vocês querem que eu faça um chá? Vá a farmácia para vocês?
- Não precisa, mãe, nós já estamos melhor. - respondeu Miguel sem muita emoção, olhando fixamente para as mãos da mãe que encostavam na sua.
- Mas vocês parecem muito cansados, não seria melhor irmos a um hospital? Vocês consultaram um médico para ter certeza que é apenas uma gripe?
O pai acompanhava a conversa com atenção. De fato, ambos não estavam bem. Tanto Miguel quanto Michele estavam extremamente pálidos. A pele estava macilenta, as pupilas dilatadas e profundas orelhas tomavam a face dos dois, porém Michele estava visivelmente pior. Apesar de ali sentada, ela continuava indiferente a toda conversa que estava acontecendo Luísa estava com as mãos entrelaçadas nas do filho e Pedro pode notar que as unhas do menino estavam extremamente roxas. Aquilo não podia ser só uma gripe.
- Mãe, nós estamos melhores já, não é mesmo Michele?
Novamente a esposa pareceu despertar de um transe quando ouviu seu nome, demorando alguns segundos para se orientar e por fim assentindo brevemente.
- Você está bem, querida? Você não parece bem, você está pior que o Migu...
- Eu estou bem. – respondeu Michele cortando rispidamente a sogra. – Nós dois estamos muito bem. Nós nunca estivemos tão bem.
Pedro olhou incrédulo para Michele. A menina até então estava totalmente alheia a tudo e de repente se transformara da maneira mais estupida possível.
- Ok, ótimo, estamos todos muito bem, maravilha. Agora vamos às explicações.
- Pedro! - chamou Luísa indignada.
- Chega, Luísa. - disse Pedro com firmeza. - Na verdade eu não acredito nem um pouco nessa história de gripe. Nunca vi ninguém ficar tão arrasado por uma simples gripe forte assim, mas se eles insistem que estão bem, que estão ótimos, ok, mas ainda não se explicaram.
- Como não nós explicamos? - perguntou o filho rispidamente.
- Miguel, gripe não impede que as pessoas atendam o telefone, nem a campainha, que deem notícias...
- Nós não conseguimos levantar da cama, pai. Fo uma gripe MUITO forte sabe... - Custava ter avisado, Miguel? Você ligava toda noite para a gente. Vocês imaginam a aflição que causaram em nós? Vocês tiveram coragem de deixar de nos atender quando viemos aqui e tocamos a campainha. Era só AVISAR. Celular desligado, Miguel? Pelo amor de deus...
- Já pedi desculpas, pai. Estávamos mortos de cansaço. – respondeu Pedro, completamente indiferente ao nervosismo do pai. – Não posso fazer absolutamente mais nada. Se você não quer acreditar, não é problema nosso.
Pedro se cansou. Era indiferença demais. Não era seu filho e sua nora ali, aquele casal tão amoroso que conhecia e sempre tão preocupados com ele e Luísa. Algo havia acontecido, estavam escondendo de si e sua pouca paciência havia chegado no limite. Em nenhum momento perdera a esperança de encontrar filho e nora, mas jamais passou pela sua cabeça que encontraria junto tão pouco caso e palavras mal ditas.
- Para mim já deu. Se você quer ficar aí alimentando essa mentira descabida você fique Luísa, eu te espero lá fora. Eu não tenho paciência para tanta falta de respeito, tanta frieza e tanta indiferença. Eu não sei o que fizemos para eles, mas agora também não me interessa.
- Pedro, não, por favor, olha o que você está fazendo, eles estão doentes, você vai piorar a saúde deles! - suplicou Luísa novamente chorosa, agarrando a manga da blusa do marido mais uma vez;
- Deixe, sogra- disse Michele abruptamente novamente com aquele tom ríspido e indiferente. – Deixe. Ele precisa respirar outros ares. Deixa que vá.
- Pois vou mesmo. - disse Pedro levantando-se. – E você Michele, principalmente você: como eu já disse, eu não sei o que vocês têm ou o que vocês fizeram, mas você está totalmente diferente da mulher que conheço.
- Fizemos tudo o que podíamos fazer. As pessoas não podem permanecer iguais a vida toda não é mesmo? – respondeu ela ironicamente.
Pedro virou de costas e saiu como um turbilhão em direção ao corredor que ligava a sala à cozinha. Havia acontecido algo ali e a esposa cega pelo amor e desespero não era capaz de ver. Ela que ficasse ali lidando com as mentiras, as histórias e o pouco caso. Não suportava ser feito de idiota e naquele momento o sentimento era exatamente esse: haviam ambos sido feitos de idiotas.
Passou pela sala e a porta que dava acesso ao quarto do casal estava entre aberta. Estava passando direto por ela, em direção à rua, mas sentiu algo estranho. Algo ruim o incomodou, uma angústia dentro de si, e por isso parou fronte ela olhando aquela fraca fresta de luz que advinha do quarto e por ela passava fazendo um traço cintilante no chão da sala.
Aproximou-se da porta, empurrando delicadamente a mesma com as pontas dos dedos. Havia um aroma estranho saindo dali. A sensação de aperto no peito só piorava.
A porta rangeu longamente ao abrir. Pedro olhou a cena a sua frente, o cérebro tentando encaixar o que não fazia sentido em algum lugar lógico, mas sem sucesso. Por fim, ao perceber que não havia lógica mesmo, tentou gritar, mas sem sucesso também. Pensou que estava tendo um avc dada tanta incapacidade de reagir o que estava vendo, mas conseguiu caminhar para trás e usar uma das mãos para apoiar-se na parede enquanto levava a outra tremula aos lábios agora lívidos. Era só torpor então.
Seu filho e nora estavam ali deitados na cama, banhados em sangue agora seco que formava cascas sobre suas peles e o lençol. Num contexto geral, mal dava para reconhece-los. A língua havia inchado muito já, projetando-se para fora da boca e a pele havia ganho tons de roxo e verde horríveis, com vasinhos alastrados que formavam verdadeiros mapas sobre a pele. As moscas pousavam sobre a boca escancarada, os olhos opacos e arregalados de ambos que contemplavam o teto. Havia um corte profundo na garganta de cada um deles. Estavam um ao lado do outro, porém de mãos dadas e as unhas dos dois começavam a se descolar da pele.
O estomago doía de nervoso e a cabeça girava. Tentava maquinar o que fazer, recobrar a lucidez. Luísa. Precisava chamar Luísa, precisavam sair dali. Não sabia o que estava acontecendo, mas não era nada bom, aquela angústia incessante no peito havia aumentado a ponto de tornar-se insuportável, precisavam sair dali porque na verdade já não era mais seguro esta...
- Algum problema, pai?
Horrorizado, Pedro olhou na direção da voz desprovida de ternura e emoção que falava.
- Nós não podemos passar a vida toda da mesma forma não é mesmo? Fizemos de tudo. Descartamos o desnecessário.
Ali estava o filho morto, escorado na porta, agora ensanguentado dos pés à cabeça. Possuía uma navalha na mão direita qual brincava de abrir e fecha-la distraidamente.
- Descartar o desnecessário, pai. Somente o desnecessário.