Morte-Viva Delirante

O calor havia deixado as lápides do cemitério secas e fazia a água da recente chuva de verão evaporar em pequenas nuvens de fumaça, que cobria a grama do jardim como uma fina camada de nevoeiro quando Hoelz entrou no cemitério.

Um revólver em punho e um lampião na mão direita erguida a diante, iluminando o caminho através das pedras plantadas em meio à grama, que conduziam até o bloco de mausoléus que ocupavam o coração do cemitério.

Line, com seus cabelos loiros e curtos caminhava atrás dele, também portando um lampião a óleo. O calor fazia suas testas suarem, e incomodava. Pequenos insetos grudavam em suas roupas, incomodando suas peles.

Mas eles não podiam parar. Deveriam seguir em frente.

Joseph, irmão de Hoelz estava desaparecido havia semanas. Horas antes de entardecer Line e Hoelz foram chamados ao gabinete do delegado local. Ficaram sabendo que Joseph estava sendo procurado pelo assassinato de sua noiva. O corpo desaparecera com ele, juntamente com um livro que havia roubado da biblioteca.

Hoelz sabia que Joseph andava passando noites bebendo com o coveiro local e que haviam se tornado bons amigos, já que o mesmo andava pesquisando sobre anatomia humana e conseqüentemente freqüentando o cemitério juntamente com as classes de medicina da faculdade local.

Por isso eles estavam ali. Pela memória de sua cunhada e pela dignidade de seu irmão. Eles com certeza o convenceriam a se entregar. A restaurar sua honra assumindo seu crime, o desaparecimento da jovem moça e, acatando a punição atenuada pela confissão e escapando da forca, poderiam posteriormente de mudar de Londres. Possuíam contatos pela Europa que poderiam auxiliar em um recomeço...

Um sussurro de Line retirou os pensamentos de esperança da cabeça de Hoelz. Ele empunhou firme a arma, como um atirador experiente.

“Ali! Acho que vi algo por ali, naquela direção...”

Tiveram que se esgueirar por trás de uma campa alta para evitarem serem vistos. Mas de fato havia algo fora do comum na direção ao noroeste deles. Um grande mausoléu se erguia, recortando a noite com suas paredes acinzentadas de concreto e um telhado pontiagudo, simulando a torre de uma catedral gótica.

Luzes vermelhas fluíam pelos vitrais adornados como o de uma Igreja, com imagens que não conseguiam distinguir devido ao ângulo que se encontravam revelando velas recém acesas.

“Vamos... esgueiramos-nos por aqui. A porta possivelmente foi forçada e está aberta. Poderemos entrar e surpreender Joseph. Esse mausoléu, pela estrutura, só possui uma saída.”

E assim fizeram, alcançando a entreaberta porta feita de um pesado metal. Hoelz empurrou-a com certa facilidade e ambos entraram.

O local se assemelhava a uma capela, não muito longa. No altar, onde deveria haver um caixão, haviam velas derretendo e manchas de sangue, bem como diversos ossos espalhados sobre uma silhueta nua. Costelas, crânios, fêmur, a quantidade destes indicava que mais de um homicídio havia sido cometido ali – pois os ossos também estavam ainda sujos de sangue fresco, recém descarnados.

“Meu Deus, Joseph! O que você fez, irmão!” – exclamou Hoelz, enquanto Line virava-se para a porta e se precipitava a vomitar.

Atrás do altar coberto de matéria humana em princípio de putrefação, Joseph estava de costas para eles. Usava um sobretudo velho e embolorado, apesar do calor que fazia. Seus cabelos compridos estavam soltos e estranhamente grisalhos. Um som metálico de lâmina sendo esfregada contra uma pedra se fazia ouvir pela nave do mausoléu.

“Seja bem vindo irmão. Line, como vai esse estômago?” sua voz reverberava com sarcasmo e malicia.

“Irmão, o que você fez? Se tornou um... Um assassino? Enterrando o nome de nossa família? De nossos pais?”

“Desenterrando, na verdade, meu irmão. Os ossos deles também estão aqui em algum canto, talvez ao redor dos do coveiro...”

“Cristo! Que loucuras está cometendo! Sua cabeça finalmente foi consumido pelo ópio e pelo láudano nas noites de orgia que andou freqüentando? O que se passa com você! Onde está o corpo de sua noiva? É este sobre o altar?”

“Eu lhe garanto que ela está bem, meu irmão. Apesar de ninguém se preocupar quando ela entregava este mesmo corpo a outros homens. Nem mesmo você se importou com ‘honra e renome’ naqueles dias, não é?” Joseph falou enquanto se voltava para eles. Ambos estarreceram-se com o que viram.

As feições de Joseph estavam semi descarnadas. Sua boca, que sempre possuíra belos lábios, estava completamente lacerada, os cabelos precocemente grisalhos e o corpo muito magro. Suas unhas afiadas como garras e os dentes protuberantes como os de um predador.

Um brilho estranho, alienígena a sua natureza, um fulgor esverdeado brilhava através de seus olhos castanhos.

“ABOMINAÇÃO!” Hoelz gritou, puxando o gatilho seis vezes, descarregando o revólver no peito daquilo que um dia achara ser seu irmão.

Nenhum dos ferimentos dos projéteis fluiu uma gota de sangue que fosse.

“Eu falo com a própria Morte, irmão! E ela me ouve e responde. Ela que me abraça todas as noites. O que poderá ser feito contra mim?”

Line correu para fora, em pleno desespero. Ansiava buscar ajuda para Hoelz, gritando como louca pelo cemitério. Ambos puderam ouvir seus gritos morrendo a distância, quando ela deve ter passado pelo portão de grades enferrujadas.

“Matará seu próprio irmão, criatura?”

“Ao acaso sou Guardião de meu irmão?!”

“Herege! Agora ironizas a bíblia? Está louco como Caim!”

“Engana-se, irmão. Ao contrário de Caim, eu não mato.”

Neste instante, Hoelz pode ouvir a porta de metal se fechando atrás dele, sozinha. Um pesado estrondo.

De cima do altar a silhueta esguia de uma mulher com longos cabelos se ergueu. Estava nua e muito mutilada, mas ainda prendiam-se os pedaços a seus tendões e ossos. A face parcialmente descarnada e onde deveria haver o coração, apenas um buraco escuro na ferida através de sua caixa torácica.

Os cabelos negros ondularam conforme ela caminhava em direção a Hoelz. Este baixou a arma, em conformidade. Não havia saída. Não havia escapatória.

“Como eu dizia... Eu não mato, meu irmão. Eu recruto. Agora se junte a sua família... Em nossa eterna vingança. Nós mataremos aqueles que um dia amamos. Mas não tocará nossos lábios a taça do arrependimento.”

E ergueu a foice de mão que estava afiando no ar, com sua mão seca e seus dedos encerrados em unhas pontiagudas. E com sua boca venenosa e com aquele fogo esverdeado no olhar, bradou em voz alta e firme:

“GLÓRIA AO DEUS DOS VERMES!”

Damien Void
Enviado por Damien Void em 10/02/2018
Código do texto: T6250445
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