A Serra do Rio do Rastro -SC (editado)
A Serra do Rio do Rastro
Marcela dormia profundamente, quando seu celular começou a tocar. Despertando-a lentamente. O encontrou na cabeceira da cama, viu que já passava das nove horas.
- Oi pai. - Disse sonolenta.
- Oi filha, eu te acordei? Desculpa.
- Tem nada não pai. Eu ia levantar mais cedo mas, aqui faz frio demais.
- Eu te avisei né. Serra é assim. Onde você está?
- Em Bom Jardim, na pousada que falei ontem. Vou tomar café e sair. Estou ansiosa. - Marcela disse se animando.
- Cuidado na estrada hein. Eu vi na internet, a Serra do rio do Rastro né? Parece ser lindo mesmo, e muito perigoso.
- Não se preocupe pai. Eu não vim até aqui dirigindo? Então.
- Eu e sua mãe quase morre de preocupação esse mês que você passou na estrada, está sendo terrível pra nós.
- Mas, tá tudo bem! Eu não corro, não dirijo a noite… estou me cuidando.
- Você só vai entender quando tiver seus filhos.
- E como tá mamãe?
- Tá aqui, mandando beijos. Morrendo de saudades.
- Manda beijos pra ela também. Fala que logo logo estou de volta. - Seus olhos encheram de lágrimas de saudades.
- E o carro deu algum problema? Os pneus estão bons? Tem que trocar óleo?
- Tá tudo bem. Eu fiz manutenção duas vezes já.
- Mas tem que ficar de olho nesses mecânicos de estrada hein.
- Tá bom pai. Eu vou desligar tá. Tenho que sair.
- Sei. Agora tá com pressa né.
- Tchau pai lindo. Beijos
- Tchau. Se cuida viu.
- Eu sei.
- Vê se liga também né.
- Tá bom pai, tchau.
- E manda foto.
- Tá, beijos
- Beijos. Se cuida.
- Beijos pai. - Disse desligando e se levantando da cama.
Se arrumou, tomou café e em menos de uma hora saiu da pousada. Estava muito próxima do seu destino. "Umas das estradas mais impressionantes do Brasil". Assim ela leu na revista, que a fez querer conhecer o lugar. Pagou sua conta e foi para o carro. Apesar do frio que fazia, ela usava roupas largas esvoaçantes, multicoloridas. Era magra e bela de rosto, mas chamava a atenção pelo sorriso fácil e sua simpatia.
Parte de seu cabelo era enfeitado com linhas coloridas e pequenos adereços artesanais.
Ao volante, ela respirou fundo, estava um pouco ansiosa. Ligou o carro e saiu. O veículo revelava a boa condição de vida da garota. Uma grande caminhonete 4x4. Tomou a SC-390 e seguiu sua viagem. Chegou rapidamente ao mirante da serra. O lugar estava praticamente vazio, o restaurante já funcionava. Estacionou atrás do estabelecimento. Alguns turistas admiravam a densa neblina que cobria as montanhas. Ela vestiu roupas de frio e correu até lá. Ficou paralisada pela beleza da paisagem. Aos poucos o sol tomou o lugar do nevoeiro e a visão foi ficando cada vez mais impressionante.
Com o céu limpo, via-se o vale se abrindo em uma imensidão verde até a costa. E claro, a famosa estrada que serpenteava a face da montanha. Era um deslumbre do inacreditável. O movimento de carros estava tranquilo.
Marcela pegou sua câmera e começou a sessão de fotos, perto do beiral. Primeiro com a câmera, depois com o celular. Ela se assustou quando um animal peludo saiu detrás do muro. Era um quati. Logo, vários deles apareceram farejando o ar, procurando o que comer. Uma pequena aglomeração se fez ao redor deles, depois de registra-los várias vezes, ela foi para o restaurante.
Ao entrar, sentiu o cheiro incisivo de pão quentinho, que a obrigou a comer novamente. Sentada ao balcão, via através das janelas, a movimentação aumentando rapidamente. Carros se abriam e famílias inteiras desciam para admirar a paisagem e, principalmente tirar fotos com os quatis. Muitas destas pessoas já desciam com alguma guloseima na mão, com intuito de atrai-los.
Várias crianças se juntaram tentando se aproximar dos animais, Marcela observava achando graça. Pela primeira vez reparou numa menina de vestido rodado. Ela estava perto das demais, porém não ligava para os bichos. Ia e vinha de um lado para o outro, e de vez enquando se debruçava no parapeito olhando a paisagem desanimada.
Um grupo de turistas entrou no restaurante, desviando sua atenção. Era um grupo de São Paulo. Bastou algumas palavras para ela ter certeza. Marcela foi até eles.
Fazia um pouco pouco tempo que estava na estrada e já sentia falta do jeito paulistano de falar. Conversaram por quase duas horas seguidas. O grupo se despediu a convidando para ir ver as baleias Francas em Imbituba. Ela se comprometeu a ir mais tarde. Antes, queria fotografar o por do sol dali.
Lá fora, o estacionamento estava repleto de carros e pessoas circulando para todo lado. Marcela foi tirar mais fotos, agora tinha que disputar o espaço. Na hora do almoço, o sol dominava o céu azul, tornando a paisagem ainda mais bela.
O dia foi passando e as pessoas também. No meio da tarde, Marcela se viu sozinha. Olhava as fotos que havia tirado, quando ouviu passos atrás de si. Ao se virar viu a mesma menina de antes, de vestido rodado. Ela caminhava de cabeça baixa, de um lado para o outro, como se a Marcela não estivesse ali.
- Oi. - Ela disse se abaixando para encara-la. A menina pareceu se assustar, parou e ergueu o olhar surpresa. - Eu me chamo Marcela. E você?
A criança tinha a pele palida, os cabelos negros e lissos, um laço branco, da mesma cor do vestido preso no alto da cabeça e usava sapatos sociais pretos.
- Oi. - Ela respondeu timidamente.
A jovem se encantou com sua timidez.
- Você está aqui sozinha? Cadê sua mãe? - Perguntou com o seu melhor sorriso.
- Mamãe… ? Tá lá. - Disse apontando para o horizonte a frente. - Nos ia na praia…
- Ela te esqueceu !? Meu Deus !!! - Marcela levou as mãos ao rosto assustada.
A menina a olhou por um momento e depois disse que sim com a cabeça.
- Você está com fome? - Perguntou.
A menina respondeu sacudindo negativamente a cabeça. - Vamos com a tia ali no restaurante pra ver o que nos podemos fazer... - Se levantou e esticou a mão para a criança. Esta colocou os dois braços para trás e sacudiu novamente a cabeça. - Vamos com a tia... Eu compro doce pra nós. - Insistiu inutilmente. - Então não sai dai tá bom! Eu já volto. - Disse antes de sair correndo.
O restaurante estava vazio, mas todos os funcionários estavam ocupados demais para lhe dar atenção. Tinham que deixar tudo pronto para a próxima "onda de turistas".
Marcela abordou o dono do local, um idoso mal encarado. Era o único que estava parado. Ele contabilizava as notas do caixa. Ela falou sobre a menina esquecida, apontando em sua direção. O velho não fez questão de acompanhar seu dedo só respondeu asperamente, "Não é dá minha conta menina.” Irritada com a indiferença, voltou até a menina discando para a polícia.
Durante a ligação foi orientada a esperar uma viatura no local. Ou se caso ela fosse até a costa poderia deixar a menina na própria delegacia. Lugar onde as crianças que se perdem na praia, são levadas. Resolveu descer a serra então.
- Mocinha.... - Se abaixou novamente para olha-la nos olhos. - Eu falei com a polícia. Eles disseram que sua mãe vai te esperar na delegacia, lá embaixo. - A menina continuava sem reação alguma. - Você iria comigo até lá? - Perguntou incerta, apontando o horizonte.
- Siiimm. - A criança se animou instantâneamente. Abriu um riso encantador
- Que bom ! - A envolveu num abraço. - Nossa como você está gelada. Vamos pro carro lá é quentinho.
Foram de mãos dadas. Um casal de turistas que assistiu toda a cena se entreolharam intrigados.
Ao chegar no carro , ela prendeu a criança no banco da frente, já que atrás estava cheio de bagunça. Entrou no carro e deu a partida. Respirou fundo e tomou a rodovia em direção a costa​.
Marcela dirigia com cuidado. Apesar de sua experiência no volante, aquela estrada merecia toda a sua cautela. Não havia carro na sua frente mesmo assim ia devagar. Estava tensa, principalmente no começo da descida, quando fazia as curvas mais fechadas e o carro ficava de frente daquele mar de árvores lá em baixo. A criança estava parada feito estatua no banco do passageiro, ainda sorrindo.
- Você não tá com medo? - A motorista perguntou tentando aliviar um pouco da tensão.
A menina ficou em silêncio. Quando Marcela a olhou de relance viu um sorriso paralisado em seu rosto e achou que tudo estava bem.
Assim que chegou na última curva do ziguezague​, apareceu um carro em alta velocidade quase que na contra mão. Marcela se assustou e pisou no freio, buzinando e gritando palavrões. Continuou seu caminho resmungando, nervosa. Por um momento esqueceu da menina ao seu lado. Quando alcançou a parte mais tranquila da rodovia, relaxou um pouco.
- Você está bem ? Se assustou? - A menina nada disse, parecia uma boneca com o sorriso colado no rosto. - Você não vai me dizer nem o seu nome? - Ela sorria e encarava o parabrisas​ fixamente. - Não vai falar com a tia? - Marcela a olhou pela terceira vez e percebeu que ela não mudava sua expressão. - Menina!? Fala comigo! - Disse tocando seu braço.
- Tá chegando tia! - A menina saltou no assento feliz. - A mamãe tá ali.
Se não fosse o riso sinistro em seu rosto Marcela estaria mais tranquila com sua fala. Mas, ao contrário, voltou a ficar tensa. Dessa vez foi ela que ficou em silêncio.
Não conseguia mais se concentrar na estrada, tentava encarar o rosto da criança. Sua boca se esticava num sorriso estranho, cada vez maior.
Marcela estava assustada, acabou acelerando mais. A menina não tirava os olhos do parabrisas​, murmurava "tá chegando, tá chegando." sem parar.
- ALI! - A criança gritou, assustando a motorista. Ela apontava o abismo. - ALI, TIA. MAMÃE TA ALI!! - Os berros da criança angustiava profundamente a moça que se desesperava.
- Calma fia... Estamos chegando... - Tentou argumentar, mas era tarde demais.
A menina ficou de pé no banco do carona, agarrou o volante com uma das mãos ainda olhando para frente. Por mais forte que Marcela segurava a direção, não foi o suficiente. A criança virou o volante de uma só vez e o carro passou sobre a mureta. Voando abismo abaixo, capotando por entre as árvores.
Já era madrugada quando dois socorristas conseguiram avistar o carro no fundo do abismo. Cada um tinha uma lanterna na mão e outra no capacete.
- Mas que tragédia rapaz ! - Um deles falou quando viu o carro completamente destruído. - E foi por aqui que aconteceu aquele acidente que o Pedro conta hein.
- É, esse trecho é perigoso né. - O outro respondeu. Era bem mais jovem. - Os cara mete o pé pensando que acabou as curva, aí dá nisso.
Seguiam a trilha de destruição. Várias árvores menores estavam no chão, além de vários objetos da moça.
- Rapaz, foi feio hein? - Disse o mais velho clareando a lataria.
Cada um avançou por um lado do carro.
- Base tá na escuta? Infelizmente, temos uma vítima fatal no local. - O mais velho disse pelo rádio, depois de uma rápida inspeção do lado esquerdo.
O corpo de Marcela estava inclinado sobre o volante.
- Pelo menos sobrou um vidro. - O jovem disse quando inspecionou o lado direito e viu a janela do passageiro inteira. Ao abrir a porta, a luz interna se acendeu. Ele se assustou com os olhos arregalados da vítima olhando em sua direção.
- Eai Guto... vamos por a moça na maca ? - O mais velho disse caminhando para a frente do carro.
Guto não ouvia seu parceiro. Inspecionava o interior do carro imprecionado
- Parece que o lado do passageiro está intacto né? Já viu estilhaçar só metade do vidro Jonas? - Perguntou ao ver o lado direito do parabrisa perfeito. Sentiu um calafrio.
- Nem tinha reparado. - Jonas respondeu sem dar muito importância.
- Olha o banco do passageiro ... está limpinho, e o cinto... tá na trava. - Estava assustado.
- Rapaz, você não é perito não! Vamos trabalhar homem.
Guto bateu a porta e foi até o parceiro iluminando a frente. Parou no segundo passo, sobressaltado.
- Meu Deus do céu, o que que é aquilo?
- Ave Maria. - Jonas disse fazendo o sinal da crus ao ver que a luz clareava uma velha crus de madeira fincada no chão, a poucos metros do carro. Estava quase que completamente escondida pela vegetação. - Só pode ser daquele acidente que o Pedro contou...
- É nada. Só tem uma cruz. Ele me disse que foi duas vítimas…
- Sim, foi duas. Mas, uma já tava morta. A criança morreu chegando no hospital. Que Deus a tenha - Disse levantando as mãos.
Guto fez o sinal da cruz e imitou seu parceiro:
- Que Deus a tenha!
Deus não a tinha. Na verdade ela estava bem ali, encarando os dois. Mesmo que eles não pudessem ve-la.