Descartáveis

Descartáveis

No começo, nos primeiros dias, na primeira semana, até a vigilância sanitária interditar a fabrica depois dos operários fazerem filas nos postos de saúde com todos os sintomas, eu achava que era imune. Já tinha ouvido historias.

Hoje é dia de interação. No dia de interação, temos uma hora de convívio social, nos jogamos xadrez em mesas de mármore no jardim das nove as dez da manha. A grama sempre baixa, ouvimos os pássaros cantando nas arvores, o som chega abafado por causa do capacete de astronauta, então você tem de ficar o mais imóvel possível para que os estalos da roupa plástica não te atrapalhe . Temos uma roda de baralho. Jogamos vinte e um. Todo mundo que entra na roda de vinte e um tem de apostar algo. E aqui, cada um dentro do seu traje de contenção laranja tipo roupa de astronauta, com seu cabeção redondo vendo tudo embaçado através do visor de acrílico, tudo que temos são lembranças.

O 91 aposta sua historia pervertida e incestuosa sobre sua irmã mais velha Karina. Ele diz que se ganhar, quer algo tão bom quanto a xereca da sua irmã em troca.

- E não estou falando da minha irmã nos seus últimos dias. Estou colocando na mesa a garota de vinte e um anos que tirou o cabaço do irmão de dezesseis na noite de natal.

- Aposto que precisou embebedar sua irmã para tocar numa garota.

Diz 22, tocando o chão tentando sentir a grama através da luva de borracha.

- Garota, se você não fosse tão feia dava um jeito de te mostrar como um homem rasga uma mulher ao meio depois de oito meses sem sentir o cheiro de uma periquita.

Diz 91, embaralhando as cartas aguardando pelos jogadores.

Ser feio ou não . Tanto faz . Aqui, durante o resto da semana, tudo que vamos fazer é ler, observar as nuvens pela janela de 3 metros dos nossos quartos prisões, assistir filmes do sistema interno de TV.

Esqueceram de mim, parece ser o filme predileto do programador.

Sexta feira é o dia da coleta de sangue.

Houve uma grande campanha de exames sanguíneo no começo dos casos, quando o governo começou a se dar conta de que as pessoas não estavam morrendo por conta da H1N1 ou Dengue ou qualquer outro vírus da moda. Quando se trata de um inseto infectado que espalha coco no sangue das pessoas, os cientistas criam insetos inférteis que copulam com insetos contaminados. Quando se trata de porcos infectados, abatedouros queimam granjas inteiras com suínos ainda vivos assim como os nazistas fizeram com os judeus no campo de concentração de Auschwitz. Se a um acidente radioativo, evacuam e isolam a cidade pelo resto da eternidade. E hoje em dia , num mundo politicamente correto, com direitos humanos e a TV, juntar um punhado de pessoas dentro de uma cova e encher o lugar de gasolina para depois tacar fogo não pegaria bem. Ao invés disso,os exames de sangue começaram aos poucos juntar um punhado de pessoas em salas afastadas dos grandes centros urbanos. Apinharam dezenas de pessoas em salas de aula de cidades interioranas. Cobriram tudo com plástico e aguardaram alguma solução bem humana brotar da cabeça de algum formador de opinião. O problema foi que, os exames de sangue detectavam que algo estava errado ali, só apontava os que tinham merda no sangue, mas não distinguia a quantidade , o tipo ou o nível de periculosidade. Então, depois de dois dias, nessas salas com dezenas de pessoas apinhadas, sem tomar banho, suadas, cercadas por homens armados do exército que segundo uma voz que berrava pelo alto-falante insistia em dizer: - estavam aqui para garantir seu bem estar !

As salas começaram a virar gaiolas cheias de cadáveres. O que os testes sanguíneos não apontavam, era que nenhum sangue era como o outro. O que os testes não apontavam, era que o problema não se resumia ao sangue. Dezenas de pessoas, mulheres , homens , crianças , idosos , respirando o mesmo ar dia após dia numa grande embalagem de presente para a dona morte, as pessoas começaram a morrer. Um após o outro. Durante a noite os corpos serviram de colchão. De 60 indivíduos, quando as autoridades abriram as portas 4 respiravam. Um vírus eliminando o outro.

Pela janela blindada dos quartos celas, dá para ver os seguranças empoleirados nos muros fazendo a segurança do mundo externo. Impedindo que um fujão respire dentro de um shopping center e mate todos a sua volta.

Criávamos apelidos. Ampolas cheias de morte, era assim que riamos . De piadas do tipo: Filtro de ar da morte.

Isolados nas nossas celas, com três refeições diárias, TV , som ,vídeo game, chuveiro quente e a possibilidade de pedir qualquer coisa que entre no orçamento do governo, até temos uma boa vida. Uma ilha particular só nossa. Enquanto o resto do mundo se encolhe de medo, nos aqui relaxamos.

Nos aqui apostamos as intimidades da irmã do 91.

06/02/2018

08:15h

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 06/02/2018
Reeditado em 06/02/2018
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