A rachadura no espelho - CLTS 02

Prólogo

Ela e o espelho eram cúmplices no segredo. Por vezes se via indo até ele quando não havia ninguém por perto e o encarava por algum tempo. Era como se esperasse por algo. No passado apenas seus olhos viram quando os dois mundos colidiram. Sabia que existia um outro mundo do outro lado daquele espelho. Mas depois daquele dia nunca mais conseguiu ver nada, mesmo tentando, referente a ele.

Capítulo1

No quarto em que a jovem mãe descansava estavam os mais diversos presentes que recebeu como forma de a felicitar pelo nascimento dos gêmeos. Seu pai um dos mais ricos comerciantes do reino trouxe presentes de lugares muito distantes. Entre esses presentes se destacavam um espelho com uma moldura enfeitada, coisa única, no reino eram poucas as mulheres que tinham espelhos; dois vestidos de um material macio, achou lindo, mas não se importava muito com roupas; e uma cesta ricamente trabalhada. Tudo novidade para o seu povo.

Mesmo com os presente a atenção da jovem estava no berço em que dormiam os seus bebês. Adormeceu olhando eles dormindo. Acordou meio sonolenta e ao caminhar em direção ao berço tomou um susto. Um terceiro bebê surgiu e dormia calmamente ao lado dos filhos. Olhou ao redor e notou que tudo parecia quieto. Fora do normal apenas uma cesta que aparentemente antes não estava lá.

Seu pai as vezes vinha ver os netos dormirem. Teria ele colocado o bebê no berço? Pensava nisso quando seus olhos foram em direção ao espelho. Percebeu uma anormalidade nele. Aproximou-se e compreendeu que o espelho havia lhe dado aquela criança. Encarou a criança como parte dos presentes do pai. Seu mais novo filho.

Mas tinha um problema. A criança era muito diferente dos seus filhos e das outras pessoas do reino. Era diferente dela. Era muito mais frágil. Isso fez aumentar o seu amor por ela. Mas as diferenças não paravam apenas na fragilidade dela.

A criança tinha a pele estranha, tanto na coloração como na textura . Mesmo que estivesse de olhos fechados sabia que os olhos do bebê deviam ser igualmente diferentes. Tinha que encontrar uma forma de fazer com que a criança não percebesse que era diferente, pelo menos até que tenha idade suficiente para compreender. Queria que ela tivesse uma infância normal. Pensava nisso e quando olhou para o espelho pensou que a solução estava nele. Não seria tão difícil. Na verdade seria bem simples... Iria começar se mudando para um lugar mais distante. O ar do campo talvez fizesse bem para aquele bebê tão diferente.

Capítulo 2

O lugar em que Julie morava com a mãe e os irmãos era no campo, bem afastado da cidade. Seus vizinhos ficavam meio distantes, mas sempre vinham fazer visitas. Foi em uma dessas visitas que a garotinha ouviu algo que a fez tremer e que a deixou com várias perguntas na cabeça sobre os seus irmãos gêmeos.

A menina curiosa tinha dois irmãos gêmeos. Uma doce menina chamada Jeyne e um menino agitado chamado Juan. Eram gêmeos idênticos. As pessoas sempre falavam que a face de Julie era reflexo da face de seus irmãos. Que o rosto de um era como um espelho do rosto do outros. Mas no dia em questão Julie descobriu que um dos irmãos não era exatamente seu irmão. Havia um reflexo embaçado no meio dos reflexos verdadeiros.

-A criança em questão já sabe que ela é diferente?-ouviu a velha amiga de sua mãe perguntar para ela bem baixo. A menina tinha o costume de ouvir a conversa dos outros.

-Não. -ouviu sua mãe falar bem baixo também, mas alto o suficiente para a menina ouvir- Prefiro manter tudo em segredo... Faço de tudo para que não perceba como é diferente dos irmãos. Quero que pelo menos na infância se sinta normal.

-Uma hora a criança perceberá. Não apenas que ela é diferente dos irmãos, mas que é diferente das outras crianças. O disfarce não pode ser para sempre. -disse a amiga em tom de conselho, com uma leve compaixão na voz - Não acho que a criança ser diferente seja exatamente ruim.

O assunto acabou nesse ponto. Sua mãe rapidamente começou a falar de outra coisa. Porém aquela não foi a última vez que Julie ouviu falar dele. Da outro vez o mistério aumentou mais, apesar de apenas ter sido dito um frase. Desconfiou que o seu avô sabia da verdade. Claro, que sabia. Se não soubesse porque falaria em tom sussurrado que estava na hora de falar a verdade e que já chegava de disfarce?

Desde a conversa que escutou ficou motivada a descobrir qual era o irmão diferente. Foi quando notou coisas que antes achava insignificantes, mas que devido as novas informações poderiam significar alguma coisa.

A primeira coisa estranha que notou foi que as vezes quando acordava de noite e olhava para a cama de Juan o menino não estava lá. Não era a primeira vez que notava isso, mas das vezes anteriores relevou. Dessa vez resolveu ir atrás dele. Não precisou ir longe para notar que o menino havia saído da casa. A porta que dava para o quintal, que era praticamente a floresta, estava entreaberta. Não iria sair para procura-lo.

Enquanto voltava para o seu quarto notou que a porta do quarto da mãe estava fechada como sempre. Pensou em bater, mas mudou de ideia. Não queria a incomodar. Além disso outra coisa chamou a sua atenção: o seu reflexo no único espelho da casa. Segundo o que seu avô falava esses objetos eram coisas raras e de um bom valor de venda. Julie ouviu isso durante uma conversa entre sua mãe e ele. Seu avô tentava a convencer a vender o objeto com esses argumentos e com um outro que ela não ouviu direito, mas sua mãe não o vendeu, pois segundo ela por algum motivo aquele espelho era único.

Mesmo com a pouca iluminação conseguia ver o seu rosto refletido. Tocou nele e pensou em como ela e seus irmãos eram tão semelhantes. Os olhos dos três tinham o mesmo tom de verde e os cabelos eram castanhos. Como poderia ter alguém diferente?

Estava tão focada em sua imagem refletida que por um momento teve um sensação estranha. Era como se seu reflexo fosse se tornando desfocado. Por um momento teve a sensação que os objetos a sua costa estavam mudando de forma no espelho. Perdendo o foco também. Mas não sentia exatamente medo. Era como se o espelho a convidasse.

"Ou alguém do outro lado"-pensou a menina sem entender de onde havia vindo aquele pensamento. Devia ser apenas sono. Foi dormir.

Antes de voltar a dormir disse para si mesma que iria ficar de olho no irmão e nos detalhes do cotidiano que deixava passar despercebido. Pensou também que o avô tinha razão. Deviam vender aquele espelho. Ficaria de olho tanto no objeto como em Juan. E realmente ficou mais atenta.

Capítulo 3

-Você notou algo de estranho no Juan?-perguntou Julie para Jeyne quando estavam somente as duas colhendo flores. Jeyne amava colher aquelas flores em tonalidades tão diversas. Julie gostava também, apesar de as vezes algumas deixarem sua mão com um pouco de coceira .

Sua irmã deixou as flores na sua cestinha que era ricamente trançada, segundo a mãe delas falou foi presente do avô das meninas. Olhou-a como se não fizesse ideia do que ela estava falando.

-Não.-se limitou a dizer já querendo mudar de assunto- Vamos entrar que acho que vai chover. Você sabe que não pode pegar chuva.

-Você notou que as vezes de noite ele não está na cama?-tentou novamente Julie. Não queria desistir desse assunto.

-Ele deve ter ido beber água ou algo assim.

-Acho que não é isso...

-Pare de procurar coisas onde não tem.- disse Jeyne parecendo mais velha do que era. Tinha 10 anos assim como os irmãos, mas era mais madura dos três e um pouco mais inteligente também. - Se tivesse algo de errado com ele eu iria saber. Por falar em algo de errado... O que está ocorrendo com você?

-Nada. Apenas...- pensou e resolveu contar a verdade para a irmã, ou parte dela pelo menos. Falou da conversa que ouviu.

-Você deve ter entendido errado.- disse Jeyne parecendo nervosa por algum motivo, a mão que segurava a cestinha parecia meio trêmula. Mesmo que a chuva ainda parecesse meio longe insistiu novamente para entrar.

-Eu ouvir muito bem.

-Você deve acreditar no espelho e não no que as pessoas dizem.

Julie sentiu um certo alerta ao ouvir falar em espelho.

-O que você sabe do espelho?

-Como?-Jeyne pareceu ainda mais confusa- Eu não sei nada sobre espelho. O que sei é que temos que entrar logo.

Capítulo 4

Naquela noite como nas outras notou a cama vazia. Ia chamar a irmã que dormia ao seu lado, mas lembrou de como ela se mostrou relutante em acreditar nela, por causa disso iria primeiro ver se realmente tinha alguma coisa ou se era apenas a imaginação dela. Pegou uma vela e foi em direção a floresta. Sabia que seu irmão devia ter ido naquela direção. Caminhou lentamente buscando não fazer barulho.

Estava frio e a chama da vela parecia prestes a se apagar, mas seguiu em frente. Sua curiosidade era maior. Estava somente há alguns passos da floresta quando ouviu algo se arrastando atrás dela, fazendo barulho nas folhas secas. Se virou lentamente e viu apenas o escuro da noite, mas havia algo de errado. Sabia disso. Sentia como se uma parte da noite estivesse se movendo rapidamente ao redor dela em direção a floresta. Não via, mas ouvia o barulho nas folhas. Paralisada de medo somente suas mãos teimavam em obedecer. Girava a vela para que visse o que era. Parecia que uma das árvores da floresta estava a observando e se movendo lentamente. Isso se mostrou verdade quando dois olhos se iluminaram rapidamente no que ela pensou ser uma árvore. Nesse momento suas pernas obedeceram e ela correu, mas cega pelo medo foi na direção oposta da sua casa. Quando parou de correr se viu na estrada que ela nunca havia descoberto onde dava.

Apesar de receberem muitas visitas, ela nunca visitou ninguém. Sua mãe e irmãos sim, mas ela nunca. Sempre relevou isso, afinal tinha a saúde meio frágil, mas no meio daquela estrada começou a pensar nisso ao perceber que não fazia a mínima ideia de onde estava. Nunca havia saído de sua casa. Talvez estivesse perto, mas no meio da noite e sem a vela que caiu em algum ponto enquanto fugia era difícil saber.

Pensava em uma forma de voltar para sua casa quando viu dois pares de olhos, semelhante ao que viu na árvore, brilhando no meio da noite. Podia não vê-los, mas eles a viam muito bem. Tanto que uma voz que não soou exatamente estranha disse olhando diretamente para ela:

-Olá, pequena. Você é a Julie ou a Jeyne? Seu irmão está lhe procurando.

Como aquelas coisas sabiam o seu nome e o de sua irmã? O que Juan tinha a ver com elas? Gritou e fugiu na direção que pensou ter vindo. Apesar de não ver nada a sua frente. Em outro ponto viu mais olhos como aqueles brilhando. Estava cercada por aquelas criaturas. Ouviu o barulho de uma atrás dela. Pedia para que não tivesse medo e parasse de fugir. Como não ter medo? A coisa tinha a voz de seu irmão e isso a deixou mais assustada. Não queria que ele a alcançasse.

Enquanto corria se perguntava se o irmão havia atraído outros diferentes como ele. Será que planejavam algum ataque naquelas reuniões noturnas? Chamou pela mãe e por Jeyne quando sentiu uma mão com consistência de madeira lhe agarrar suavemente pelo braço. Sentiu tudo girar. Desmaiou.

Acordou em sua cama. Teria sido tudo um pesadelo que sua mente criou por causa da desconfiança? Reparou antes de levantar que havia mais gente na casa. Ouviu a voz de seu avô. Se levantou lentamente e encontrou na mesa da cozinha sua mãe, seu avô e os irmãos.

-Que bom que acordou, filha.-disse sua mãe lhe sorrindo. Tudo naquele cenário lhe pareceu assustador, principalmente seus dois irmãos que pareciam em cumplicidade silenciosa. Jeyne evitava o seu olhar, olhava para a mãe como se esperasse que ela falasse algo. Juan a olhava como se perguntasse quanto tempo ela ia fingir que nada tinha ocorrido. Todos pareciam estarem prendendo o ar como se temessem o que viria a seguir.

-O que está ocorrendo? -perguntou ela

-Nada, querida. Seu velho avô apenas veio fazer uma visita. -disse seu avô se aproximando dela com um sorriso. - Mas primeiramente que modos são esses? Venha aqui dá um abraço no seu avô, mocinha. Trouxe um presente para você.

Foi só então que a menina notou uma cestinha que estava sobre a mesa. Era semelhante a que Jeyne usava para colher flores, mas maior. Seu avô pegou o objeto e lhe entregou. A menina não entendeu o porque, mas sentiu que o avô e a mãe tinham um carinho imenso por aquele objeto. Depois do presente recebido o abraçou, mas sempre com os sentidos em alerta. De olho em todos, principalmente no irmão. Poderia ser ainda resquícios do medo, mas ela achava que os olhos do irmão estavam diferentes."O que tem de errado aqui?"

Capítulo 5

-Contem logo a verdade para ela. Não aguento mais deixar de ser quem eu sou por causa dela. Além disso já basta dela me encarando dessa forma e me vigiando de noite.- disse Juan de repente assustando todos com a sinceridade das palavras. Quebrando a comoção que a entrega do presente causou. Juan parecia realmente irritado. Um silêncio se seguiu as suas palavras. - Já cansei desse disfarce.

-Você é o diferente! -disse Julie apontando para o irmão de repente e se atrapalhando com as palavras- Tenho certeza que era você noite passada. Você estava com os olhos brilhantes... E tinha outros como você.

-Sim, era eu e os outros eram meus amigos. -disse Juan calmamente se aproveitando do choque dos outros presentes. Parecia que o tempo havia parado. Julie sentia que naquele momento existiam somente ela e o irmão. Depois daquela conversa tudo iria mudar. -Estava sem esse disfarce que nossa mãe me obriga a usar. Gostaria de me ver sem ele agora de dia, irmã?

Julie recuou até encostar na parede. Queria ficar o mais longe possível do irmão. Estava com medo.

-Juan!-sua mãe iria lhe mandar ficar quieto, mas viu que já era meio tarde para isso. Seria melhor agora a menina saber toda a verdade.- Querida acho que posso explicar melhor, porque você não se acalma.

-Eu já entendi tudo, mãe. -disse Julie se afastando ainda mais. Lembrando da noite anterior em como foi assustador ver o irmão diferente da forma em que estava acostumada.

-Não. Você não entendeu nada, querida. -disse seu avô tomando a palavra.- Seu irmão não é o diferente. -por algum motivo deixou o avô se aproximar dela. Ele pegou suavemente em suas mãos e deixou que ela se acalmasse um pouco. Seu coração continuava batendo acelerado. Olhou nos olhos dela ao dizer calmamente para que a menina entendesse as palavras- Você é a diferente. Está vendo aquele espelho? Você veio do mundo que fica do outro lado. As criaturas que moram do outro lado se intitulam humanos. Você é humana.

*

Precisou um bom tempo para que a menina conseguisse aceitar a verdade e um tempo ainda maior para que sentasse no colo da mãe para ouvir toda a explicação.

-Queria ter contado a verdade antes, mas queria que você tivesse uma infância normal... -dizia sua mãe- Como você descobriu ontem podemos assumir qualquer forma, até mesmo virar uma parte da noite. O nosso mundo é como um reflexo do seu, mas descobrirá algumas diferenças com o tempo. Mas não precisa ter medo. Somos sua família. Seus irmãos e todos que entraram em contato com você assumiram uma forma semelhante a sua, como reflexos, mas o Juan e seu avô já estavam meio cansados disso. Desculpe, não sabia exatamente como agir, mas sabia que não podia lhe deixar.

-Eu entendo, mamãe.- disse Julie enquanto lembrava da noite em que olhou no espelho e pensou ter visto bem mais. Esteve olhando do lado oposto do espelho o tempo todo sem saber. Perguntas se formaram em sua mente. Principalmente sobre sua mãe verdadeira que devia está do outro lado. Sentia que seu avô e sua mãe sabiam bem mais do que aparentavam, principalmente o seu avô. Muitas coisas que ele comercializava deviam vim do outro lugar por causa disso ele devia saber muito. Porém não lhe falaria, pois tinha medo dela querer ir embora. Lembrou de como ele queria se livrar do espelho. A menina não pretendia ir embora, pois eram sua família.

Epílogo: Mãe biológica da Julie

Nada ocorria ao olhar no espelho. Não fazia a mínima ideia do que tinha ocorrido com a sua filha depois que o homem que morava no espelho a levou.

Não tinha como ficar com a bebê naquela época. A colocou em uma cestinha e pretendia a abandonar em algum local. Mas ao virar as costas a cestinha havia sumido. No espelho viu refletido não o seu quarto, mas um lugar que não conhecia. Um ser segurava a menina no colo e a depositava em um berço com bebês daqueles seres, após isso saia. Viu quando quem devia ser a mãe se levantou e percebeu a criança a mais. Olhou na direção dela e por um momento os dois mundos pareceram um. Pela rachadura entre os dois mundos os olhares se cruzaram. Em segundos o espelho voltou a refletir somente o seu reflexo. Ela poderia ter sentido remorso por ter abandonado a menina nas mãos daquelas coisas, mas não sentiu. Pelo menos não nos primeiros anos. Como era egoísta... A idade trouxe arrependimento e seu coração sabia muito bem o que buscava ao olhar no espelho que era seu cúmplice nesse segredo.

Tema: Família