A FRONTEIRA DO DESESPERO
 

 
   Não tinha certeza do que estávamos fazendo, e o eventual tomava conta de quase todas nossas ações. Subíamos a montanha, seis quilômetros da caverna do diabo. No percurso, tentava conversar com meu colega indiscreto, senhor Manuel Assumpção, mas a única coisa que escutava, eram suas atribuições malformadas e que vinham me incomodando constantemente. Dizia não estar preparado para os cúmulos infernais e necrófagos das coisas que não devem ser nomeadas, e ressaltava que se chegássemos ao ponto de vermos as criaturas do outro mundo não relutaria em me abandonar. Achei aquilo um tanto desconcertante, mas o que um homem que decaiu tanto poderia saber. A uns anos, obcecado pelos segredos de além-mundo, Manuel Adentrou em uma cova antiga e recém descoberta num cemitério no condado de Norfolk, Inglaterra, onde acreditava ser a necrópole construída após a nona cruzada para os traidores que se associaram ao inimigo muçulmano, entretanto, ele nunca conseguiu comprovar esta tese. Quase uma semana após ser declarado como desaparecido, turistas o encontraram numa estrada deserta, atordoado e vagando a esmo. Quando questionado pelas autoridades, ele respondeu — Era Insano. Eles estavam amontoados sobre púlpito acima das raízes, contorcendo-se como cobras. Estavam em todas as direções. Manuel nunca conseguiu se reestabelecer psicologicamente após aquele episódio.
   A noite redesenhava os corcovados a frente, e os nuances sinuosos das árvores tortas e dos animais que ali residiam completavam todo o quadro, a penumbra parecia fervilhar em azul-escuro-alaranjado.
   — Eles estão nos vendo... — Sussurrou Manuel atônito, olhando para o nada.
      — Quem?
     Manuel não me respondeu.
     Como um homem da ciência, não posso acreditar que alguém já falecido consiga de alguma forma projetar sua imagem em nosso plano, e mesmo que o destino cuspa na minha incredulidade, visto que estou procurando pelo desconhecido, não ressalvo esta ação a minha pessoa, mas aos demais resignados, que me puseram nesta montanha.
    O terreno entreposto a um declive diagonal atingia o auge a uns cento e trinta metros de altura e a maior parte da estrada estava rodeada de trepadeiras e espinhais. Enquanto me esforçava para caminhar, Manuel persistia nas superstições locais, no desaparecimento abrupto de viajantes e turistas desavisados, a descoberta de ossos que nunca ninguém jamais viu e que foram requisitados pelo governo para estudos clínicos, e a terrível luz mortífera que muitos dizem pousar esporadicamente sobre a montanha e que denegri os olhos de quem a vê com tons turquesa-violáceos.
    Manuel andava com dificuldade, mancando, sequelas de uma úlcera que corroeu parte dos tendões do tornozelo direito. Com a voz áspera e olhar caído, ele me seguida, estávamos ambos de cabisbaixo, ofegantes e cansados. Manuel soltara um sorriso fechado e estranho, em seguida ergueu a testa. Ver aquele rosto velho e enrugado não me era confortável. Em pensar que a uma década ele era um renomado professor de universidade.
    — Foi aqui. — Chamei-o. Aqui eles degolavam as pessoas no século XVII, pois, acreditavam ser enviados demoníacos.
    Manuel queixou-se, indagando que provavelmente estava relacionado a era puritana e as seitas que se originaram naquela época. Completou que por volta de 1615, os calvinistas espalharam-se pelo mundo, pois, diziam querer purificar a igreja Anglicana e uma parte mais fanática insurgiu aqui no Brasil, contudo, converteram-se em cultos estranhos que tinham o propósito de adorar seres espectrais e disformes que residiam além da esfera da existência e que consolidavam o conceito de “Deus”. Manuel mencionou relutante, — os profanadores do desespero. Tendo dito aquilo, percebi que começara a suar excessivamente. — Não encontrara menção a isso em biblioteca nenhuma. — Sibilou Manuel, num tom senil.
    Tão pouco sabia sobre aquele homem e ficava intrigado como suas lívidas palavras que conseguiam me arrepiar, deixando-me próximo da loucura, fazendo-me interrogar na razão um motivo para acreditar nele já que sua convicção, misto aquela expressão apavorante de austeridade não parava de me surpreender.
     O sensor termomagnético apitou. Senti um ar frio na minha nuca, como se respirassem, em seguida, um vulto. Manuel afastou-se olhando para o alto. As árvores gemiam, tremelicando, suas folhas rodopiavam com o vento até desapareceram. Momentos depois houve a calmaria. Respirei fundo aliviado, enquanto meu coração se acalmava.
    Conforme caminhávamos pela trilha acidentada, conheci o real sentido do medo. Manuel desapareceu da minha vista. A câmera inclinava do meu ombro inchado e quase não conseguia manter o foco. Meus passos misturavam-se a sons graves de estalos nos arbustos e sussurros estranhos vindos da noite. Algo gosmento havia caído sobre meu braço, era gelatinoso e fétido ao mesmo tempo, uma bolha disforme que pungia como se devorasse minha pele. Perdi a câmera momentos depois quando caí no chão de dor, pensei que tivesse jogado próximo de uma samambaia, mas ela havia desaparecido. Fiquei ainda mais estarrecido ao encontrar metros de mim um rastro de cascos bipartidos, como de bodes.
     Seria medonho imaginar que o professor estivesse morto e que fosse o próximo na lista. Portanto, tentei permanecer o mais calmo possível. Achei no bolso da minha calça uma lanterna, sua luz estava fraca e insalubre, mas conseguiria me guiar, visto que era melhor uma faísca pálida do que escuridão venefica deste lugar — Não devemos ir lá, é onde vivem as coisas perversas. — Lembrei-me de Manuel falando quando o encontrei no escritório de meu chefe.
    — Bobagem. Poucos que sabem daquele lugar reiteram que tudo tem uma explicação coerente. — Afirmei.
      Como poderia saber que estava indo de encontro com o paranormal.
    — Eu não quero saber como, mas se não voltar daquela montanha com alguma explicação para o caso dos gêmeos encontrados mortos na semana passada, não precisa nem vir trabalhar... — Avisou Denis, diretor chefe da revista “É Agora”.
    Não tenho dúvida que seu ultimato fosse verídico. Julgue-me se estiver sendo cético demais, contudo, durante a conversa que tive com Denis, soube de imediato que seria demitido, pois, não haveria nada lá, só um monte de árvores e plantas, insetos e se tivesse sorte, alguns animais. Um cadáver é só um cadáver, e ninguém morre por força que não seja aplicada pelo homem ou pela natureza. Os gêmeos não tinham indícios de abuso sexual. Os peritos desenterraram seus corpos em avançado estado de decomposição. Noticiamos naquele dia — Uma das maiores brutalidades já cometidas. Os gêmeos haviam sido desmembrados de forma limpa e sem sangue, o corte sob medida, feito por um bisturi indicava a probabilidade de um cirurgião. Mas eles não tinham provas disso, na verdade, não tinham nada.
     Nunca teriam descoberto os corpos se não fosse por um grupo de campistas que passavam perto do local da desova, sentiram o cheiro de putrefação vindo de um buraco e chamaram a polícia. Porém, o que realmente os deixou inconformados, foi o local da desova, os gêmeos moravam em Minas Gerais e foram encontrados no sudoeste de São Paulo.
    — Manuel! — Gritei atônito. Antes que minha voz conseguisse se dissipar, uma lufada de ar quente ejetou-se do meio das árvores, em seguida parecia que algo tremendamente grande estava vindo na minha direção. Corri portanto, para o outro lado. Meus passos perscrutavam a trilha, bambeando. Quando mais corria, mas perto aquilo se aproximava de mim. As árvores pareciam rir da minha situação, dançavam entre meus olhos como se estivessem vivas. Então, quando perdi o folego, um rugido alto e metálico rasgou o céu, o som inumano entoou por meus ouvidos e quase perdi a razão.
     — Charles... Char-les... Char... — Avanço uma voz.
     — Manuel!? — Perguntei receoso.
     — Fuja... — Respondeu num tom quase inaudível.
     — Aonde está?
  — Aonde está Manuel? — Perguntei novamente sussurrando.
   — A hora tarda Charles... fuja enquanto há tempo. Deixe-me aqui e vá pelo amor de Deus.
   Tentei chama-lo mais uma dúzia de vezes, contudo, não obtive resposta. Havia me afastado da trilha ao ponto de me perder. Tudo ao meu redor parecia idêntico, não tinha noção nem para que direção devia ir. A chuva começou em seguida, traiçoeira, os trovões desbaratavam-se no ar em feixes branco-azulado, desaparecendo no horizonte.
     O chão fofo sob meus pés ruiu quando tentei avançar e acabei caindo dentro de um buraco. A chuva vinha nos meus olhos, impedindo que enxergasse. Minhas mãos tateavam uma saída, até que senti uma saliência um tanto estranha nos meus dedos. Forcei a vista e percebi que se tratava de um crânio, contudo, não era só um, mas sim vários, crânios e ossos humanos que circulavam o meu redor. O horror daquela visão fez-me entrar em pânico e tentei escalar o buraco, minhas mãos treparam-se na lama e nas raízes que brotavam das paredes do buraco, e no instante que pus minha cabeça para fora, ouvi um estalo gelatinoso desprendendo-se do vazio as minhas costas, próximo de onde estava. Meus olhos vidrados começaram a tremer, e antes que pudesse me virar, algo atingiu minha nuca, fazendo-me desmaiar.
 
     Caro Alisson,
   Como conversamos na segunda-feira, creio que não tenho mais capacidade de suportar esses fragmentos na minha memória que tanto me perturbam, estou escrevendo isso, pois, sei que só irá lê-lo depois que encontrarem meu corpo. Acredito que o choque já tenha passado, minhas memórias dançam desesperadamente, mostrando-me vislumbres daquele dia.
     Lembro-me que na sessão anterior contei-lhe que recordava até o ponto que desmaiei no buraco, pelo menos era isso que me lembrava até agora. Receio que vá ficar intrigado com o que vou relatar e posso imaginar que nem acredite.
     Não tenho certeza quanto tempo fiquei desacordado, mas sei que não estava mais no mesmo lugar. Meu corpo estava dolorido, e ao acordar percebi de relance uma série de hematomas, tanto nos braços como nos ombros. Abri meus olhos com dificuldade, um chumaço de poeira avançou, tossi arquejante e me levantei. Estava em uma espécie de clareira. Ouvia tambores ao meu redor, vindo de onde não podia enxergar. Tendo recuperado a consciência, ouvi um gemido, parecia ser de mulher... ela gritava de dor, berrava a ponto de querer fugir, mas não o fiz, não quando vi Manuel parado próximo de uma fogueira a quase duzentos metros de mim.
     Aproximei-me dele chamando-o. E quando estava perto o suficiente para toca-lo, notei que os gritos incessantes vinham de uma mulher do outro lado da fogueira, nua, sentada e de pernas abertas. Ela estava dando à luz, sem ajuda nenhuma. Sua pele morena estava coberta de símbolos dos quais nem me atrevo a mensionar. Quis colocar a mãos no rosto e vomitar, mas fiquei hipnotizado com aquela cena, da mesma forma que Manuel. A mulher de cabelos longos e castanhos chorava enquanto a placenta saía pela vagina totalmente contraída. Um líquido verde expectorou-se dela caindo no chão. O vento ao nosso redor soprava de forma violenta. Quando aquilo finalmente saiu de dentro dela, ela caiu de costas e parou de gritar.
     A coisa verde tremia, enrijecendo-se até tomar um formato macabro, cheio de pequenas protuberâncias que eclodiam de suas extremidades. O líquido rastejou de onde estava até os pés de Manuel. Algo cruzou o céu junto a uma luz esbranquiçada.
    Desviei os olhos por um segundo e quando os retornei a Manuel, aquela coisa já estava sob seu abdômen, escalando suas roupas. Não tinha como fazer nada, estava paralisado e só pude observar atentamente. Estou sendo ridículo não acha, como uma mulher daria à luz a uma atrocidade dessas. Nós conhecemos a quanto tempo Alisson, um mês e meio talvez. Já deve ter concluído seu diagnóstico. A polícia acha que tenho relação com o desaparecimento de Manuel. Eles me interrogaram durante horas após sair do hospital, você sabe, leu minha ficha.
     Acredita em extraterrestres Alisson, “os homenzinhos de marte”. Também não acreditava. É surpreendente o que existe fora de nossas fronteiras. O homem é audacioso demais em permitir-se acreditar que é o único no universo.
    A mulher que agora estava morta a minha frente também pode ter acreditado nisso, talvez um pouco antes da coisa verde sair de dentro da sua vagina. — Eles chegaram... — Disse Manuel, suas últimas palavras, momentos antes que aquilo entrasse em seu corpo pela garganta.
    Manuel se retorceu no chão, grunindo, suas veias saltaram sobre a pele e seus olhos encheram-se de sangue. Então uma órbita acinzentada surgiu no céu, rodopiando ao nosso redor, emitindo um som grave metálico, e em seguida veio um feixe de luz forte, uma cor turquesa-violácea iluminou Manuel, até que parou de estrebuchar, levantou e falou um idioma grotesco que parecia comunicar-se com a coisa que flutuava acima de nossas cabeças. A luz puxou Manuel para dentro de um vórtice e quando desapareceu em meio a claridão, um ser apareceu, rodeado de luz e não pude sequer visualizar sua aparência. Após ter visto que não representava ameaça, traçou um caminho até o corpo da mulher, segurou seu cabelo e a puxou para dentro do vórtice de luz.
       O insano é pensar que eles não foram embora. Eles estão em todos os lugares nos observando, estudando o quanto podem. Desde que saí daquele hospital minha vista tem se aberto a muitas fronteiras. Digo isso, porque neste exato momento eles estão tentando entrar em minha casa. Tranquei-me no quarto quando conseguiram invadir e vejo que estão próximos de arrombar a porta. Comprei esse revólver ponto 40 automático tem dois dias, raspei a numeração para que não identificassem o fornecedor. Tenho ela nas mãos agora e como já lhe contei tudo, entrego-lhe este fardo. A morte é o único meio de me ver livre deles...

 
 
      Charles de Castro e Silva, desaparecido no dia 02 de fevereiro de 2018.





TEMA: FICÇÃO CIENTIFICA E LEMBRANÇAS