CICLO EM VOLTA DO FOGO
“Se o amor então se cansou
Durma que a noite eu vigio
Se o céu lhe parece ruir em pedaços de vidro
Dançaremos em volta do fogo
Subiremos com a maré
E amanheceremos de novo”
(M. Hayena e M. Vaccari – Banda Uns e Outros).
Quando ele ouviu essa canção pela primeira vez, ostentava uns doze, treze anos, pouco tempo antes de deixar tudo para trás e seguir pelo mundo em busca de autoconhecimento. O pai era adepto de deixar a estação de rádio predileta sempre sintonizada enquanto trabalhava. O então menino gostava da sonoridade dos acordes, lhe soava como uma toada para ninar.
Ele se identificava com os versos, imaginava cânticos ao redor de fogueiras, uma vez que desde sempre estivera cercado de fogo, suor e aço. O ofício de cuteleiro atravessava as gerações em sua família. Mas, como tudo nessa vida, chega um momento em que as mudanças são inevitáveis e, no caso do rapaz, desejadas. Contrariando as orientações, súplicas e ameaças de seus pais, decidiu tomar as rédeas de seu próprio viver e caiu no mundo em busca de novas experiências.
As demandas em sua jovem alma clamavam por caminhos que o conhecimento até então assimilado já não suportava mais. Ele precisava expandir seu alcance até o desconhecido. Necessitava vislumbrar seus limites. E, nessa demanda, experimentara diferentes ofícios e ocupações, empreendera ações como carregador no porto e ajudante na construção civil. Ganhara alguns trocados em embarcações que atravessavam as madrugadas na busca pelo melhor pescado. Testara-se e fora testado. Sempre carregando para si um pouco da experiência que vivera e, ao mesmo tempo, deixando também mostras de sua essência por onde andara.
Muito ele viu e mais ainda fez em suas andanças. Entretanto, foi no domínio do gado que se encontrou. Estar diante da imensidão rasteira e verdejante conduzindo o ir e vir de centenas de indivíduos o fazia se sentir dominante e importante. Alguns diziam que ele conseguia captar o cerne dos animais, os quais acabavam por se submeterem à sua vontade. E essa fama passou a aduzir os seus passos, levando-o ao posto de capataz responsável por uma das maiores criações do centro-oeste do país, onde os eventos que se sucederam no pouco tempo em que permanecera nessa função acabaram por fazer com que perdesse de uma maneira irremediável o controle que achava ter conseguido sobre a própria vida.
Ele jamais poderia imaginar que depois de ter deixado a sua cidade, sua antiga vida e tudo que lhe era tão familiar, estaria de volta ao mesmo ambiente, mas ao invés de fazer uso de suas habilidades para servir a caprichos de terceiros, a arte em suas mãos seria colocada à prova numa finalidade, digamos, muito mais urgente e necessária.
Pelas circunstâncias que logo se revelarão, mais uma vez ele se encontrava diante da forja, não aquela bem estruturada e preparada para a atividade fim que possuía na casa dos seus pais, mas uma improvisada com metal retorcido e alimentada por sobras de carvão e armada às pressas nos fundos do armazém da fazenda.
O tempo estava contra a sua vontade. O vermelho vivo do fogo acendia o corpo do lingote de aço até torná-lo maleável a ponto de a força bruta moldá-lo como uma peça cada vez mais esguia e sinuosa. Aos poucos, as pancadas insistentes no objeto postado sobre o balcão de ferro que fazia as vezes de bigorna se parecia mais e mais com uma longa faca. O suor que escorria do rosto cansado produzia gritos estridentes ao se chocar com a superfície escaldante do metal em brasa. Um chiado ainda mais agudo se propagou quando a arma fora abraçado pelo óleo quente em busca de uma têmpera perfeita por intermédio do choque térmico.
O rapaz sorriu com o resultado. Ainda não estava pronta, mas já se sentia mais confiante ao olhar para a noite. Seus pensamentos divagavam acerca dos episódios que o levaram até aquela situação, e, sem perceber já se sentia transportado de volta no tempo...
Era uma noite rotineira como tantas outras que vivera até então. Ele trazia o caule fino e azedo de um vegetal rasteiro no canto da boca. Nos braços enlaçava o corpo frio de um rifle de cano duplo. A vista pesava cada vez mais ao vislumbrar a quietude do ambiente, apenas os sons noturnos lhe faziam companhia.
Ele já não tinha certeza se estava acordado ou se sucumbira ao sono. Tudo estava tão nublado na palhoça de observação, não no ambiente propriamente dito, mas em sua mente. Um grito o fez despertar, ou assim imaginou, pois o que chamara sua atenção fazia com que duvidasse da própria sanidade.
Ele via com uma exatidão cristalina os movimentos de uma criatura indescritível se esgueirando por entre o gado. Os animais, assustados e acuados, não conseguiam emitir um reles mugido. Ele tentou, e sobre isso poderia jurar diante da cruz, mas não conseguiu evitar o que viria a seguir. Um dos bois era fatiado pelo ímpeto de uma criatura que não deveria existir. Naquela noite, a morte passeou livre pelo pasto.
Com o raiar do dia, três animais haviam perdido a vida para o apetite de um demônio. O rapaz, como responsável pelo local, deveria encontrar uma maneira de solucionar a questão e apresentar a situação devidamente contornada para o patrão, mas para tal, seria necessário entender o que de fato ocorrera naqueles prados.
Decidido a resolver tudo por conta própria, ele montou guarda até pressentir a mesma sequência de fatos da noite anterior. Ele corria o mais rápido que suas pernas eram capazes de aguentar, em seu peito não havia medo, era outro sentimento, algo o qual era incapaz de denominar o que de fato o dominava. Porém, por mais que se mostrasse veloz, o objeto de sua perseguição estava sempre à sua frente, como se debochasse de sua miserável tentativa de alcançá-lo, então, ele ouviu um grito moldado por dor e desespero.
Era uma voz feminina seguida de um urro, uma sinfonia produzida no inferno, um som perturbador e improvável de ser esquecido. Apesar de tudo, o rapaz não conseguiu ver a cena que originava tamanha afronta à ordem natural da vida, pois um flash azulado e forte, semelhante ao que percebemos diante de uma pancada nos olhos, ofuscou seus sentidos e de nada mais viria a se lembrar.
Quando recobrou os sentidos, as cores de um novo dia começavam a pintar o céu. Seu corpo estava ferido. Arranhões e marcas de dentes maculavam suas costas, bem como a omoplata esquerda. Ele se sentia objeto de uma surra, mas ao menos estava melhor do que a cena diante de seus olhos.
Uma moça, ou pelo menos o que sobrou dela, apresentava-se à sua frente. Outra, com o corpo lavado em sangue, espremia-se entre ele e uma árvore. Seus olhares se cruzaram, e tudo o que ele julgava conhecer no mundo se desmanchava como açúcar em água, pois a jovem era a coisa mais perfeita que já vira.
Apesar do cenário impactante, ele não conseguiu emitir uma só palavra, pois ela se levantou e correu sem olhar para trás e sem dar condições para que ele a seguisse.
A moça morta não possuía nenhuma identificação, e, na verdade, com o pouco que restara, saber quem fora apenas uma análise laboratorial seria capaz de revelar.
O dono da fazenda, remontando uma época em que o valor da vida pouco representava, e temendo por eventuais complicações na justiça, tratou de se livrar dos restos mortais da mulher.
O rapaz não concordava com o rumo dos fatos, mas pouco ou quase nada julgou ser capaz de fazer para contornar as determinações. Ele apenas contou o que presenciara e, por mais incrível que pudesse se mostrar o seu relato, o sujeito não o desmereceu. Apenas quando descreveu a moça ensanguentada, o fazendeiro irritou-se e orientou-o a esquecer da jovem em questão, pois, segundo suas próprias palavras, aquela moça não era digna de habitar esse plano e retirou-se, mas não sem antes ordenar que ele desse um jeito em tudo, e sem envolver mais pessoas num escândalo em potencial.
Quando decidira sair de casa, ele estava disposto a vivenciar novas experiências, mas nunca poderia imaginar estar diante de uma situação tão inusitada quanto a que se encontrava naquele momento.
Ele desejava conhecer a si mesmo, mas estava mais perdido do que jamais estivera em sua vida. Seus pensamentos conturbados o levaram ao único lugar calmo o suficiente para refletir: a biblioteca da fazenda. Um lugar escuro e triste, onde ninguém punha os pés, a não ser ele próprio.
Foi então que ele percebeu, em meio aos seus devaneios e perdido entre os livros, um sinal que o fez compreender o que precisava fazer. Então, percorreu os quatro cantos da propriedade até encontrar a resposta. Ao mesmo tempo em que os fatos se mostravam lúcidos em sua mente, ele sentia o peso do mundo em seus ombros, pois quando olhou para aquela moça teve a certeza de que a vida tinha um significado e que talvez pudesse ser feliz se tivesse a chance de poder viver ao seu lado. No entanto, a verdade dos fatos o esbofeteava com a força de um martelo. Um objeto que lhe fora tão familiar durante toda a sua vida, e que estava novamente em suas mãos...
E foi justamente o peso do martelo que o fez despertar de suas divagações. A faca estava quase pronta. Faltavam apenas alguns detalhes. Fazendo uso da pedra bruta em sua frente, ele retirou as arestas da lâmina, limpando o excesso do material e deixando-a pronta para o ato seguinte. Prendendo a ponta do cinto de couro com o pé direito e esticando-o com a mão esquerda, ele trazia o gume da faca para cima e para baixo, de um lado a outro, em busca de um fio capaz de solucionar as pendências que trazia no peito.
Com a lâmina afiada, faltava apenas um detalhe. Arrancou a fivela do cinto e jogou-a na forja, logo o objeto converteu-se numa massa gosmenta, então, ele espalhou a mistura na parte central da faca. Múltiplas gotículas marcaram o objeto, como uma sucessão de lágrimas, lágrimas de prata derramadas com um propósito.
Ele correu, atravessou o relvado recém-aparado que marcava a trilha até a residência principal da fazenda, pois sabia que não tardaria até que a menina aparecesse. O dia já havia sangrado suas últimas gotas de energia e não levaria muito tempo até que o sorriso pálido do plenilúnio se mostrasse na cortina azul do céu noturno.
Ao cruzar o umbral da porta principal, o rapaz se surpreendeu com a presença do patrão diante do vão de entrada. Mas contrapondo-se à surpresa do capataz, o fazendeiro não demonstrou nenhum espanto com a sua chegada. Em seu interior, ele parecia vislumbrar as intenções do jovem, pois antes que este esboçasse qualquer ação, ele o interceptou vociferando flechas em forma de palavras. Seu semblante nublara-se na mais fechada tormenta, enquanto os olhos usualmente serenos injetavam-se em rios de sangue:
“Olhe, rapaz, você sabe que lhe tenho apreço e que sou agradecido por tudo que tem feito pela fazenda. Mas você não tem a menor ideia de onde está se metendo. Não pedi e não aceito sua opinião ou ajuda.”
“Ela – disse apontando para a garota que surgia no limiar escancarado do amplo salão – é o demônio, a mais vil das criaturas.”
A menina parecia apreensiva. O suor preenchia cada centímetro de pele exposta. Seu rosto era o de alguém que carregava um fardo muito pesado, um fardo que precisava ser liberado, algo que se traduzia numa tarefa que ela não sabia exatamente como realizar.
Os três mantiveram-se em silêncio, uma vez que o brilho intenso da lua assaltava as imensas vidraças do salão, trocando a atenção recebida por uma inundação de presença luminosa.
Um grito irrompeu pelo ambiente, ribombando pelas paredes do recinto num clamor que convergia para a representação sonora de uma alma sendo ceifada, sendo arrancada do corpo. Era uma dor que não poderia ser medida, só era possível compreendê-la através do toque da maldição.
Cada osso era quebrado por uma força invisível, um furor que provinha do interior, mas que era moldado pelo ambiente, pela ação incidente do luar. O brilho da lua empurrava, manipulava aquele corpo como uma amálgama orgânica.
Os ossos fraturados reorganizavam-se em novas estruturas. Surgia um corpo renovado e desprovido de alma, no qual a sanha de querer matar fazia morada, alimentar-se caso possível, mas principalmente saciar-se da dor, do desespero e da desesperança alheia era a motivação da criatura diante das duas testemunhas.
Nos olhos da besta, o vazio da morte. Órbitas amargas e amarelas, como a peçonha esférica no céu desprovido de estrelas. A fera postava-se de pé, balançando os longos braços que quase tocavam o chão. Se ela quisesse, poderia, quase sem esforço, macular a madeira envernizada do assoalho com as garras curvas e negras que ornavam seus dedos.
Um sorriso pode revelar bastante sobre a personalidade de alguém. E o que espelhava a face da besta era uma afronta à própria vida. Um par de fileiras longas, alvas e aguçadas, uma intimação rumo ao vazio negro e torturante representado pelo vão escancarado da garganta. A um ser temente a Deus, não deveria ser permitido vislumbrar tamanha perversidade, mas ainda assim o fazendeiro a encarava, não com destemor, pois isso seria impossível até para o mais valente dos seres, mas com resignação, afinal não havia como escapar do ataque iminente.
O demônio saltou decidido a dilacerar a garganta do homem, que naquela fração de segundo conseguiu produzir uma infinidade de pensamentos, e todos eles confluíam para o desejo insano de que algum milagre pudesse lhe dar uma segunda chance.
Às vezes, bem raramente mesmo, até mesmo a maldade mais espessa deixa escapar um filete de empatia e compaixão. Uma fagulha de bondade em meio ao caos, algo tão difícil, no entanto especial o bastante para impulsionar um dom. Uma habilidade capaz de moldar uma arma, uma lâmina tão afiada quanto os dentes e garras da fera, porém revestida pelo misticismo único do metal brilhante que dizem ter surgido dos olhos de anjos, os quais choraram e germinaram a terra com lágrimas abençoadas capazes de ceifar a existência de demônios.
Mas, a faca forjada com tanto esmero não era para ser manipulada pelo ferreiro que virou peão, longe disso. Ele a criou com um propósito, para ser empunhada por aquela que fez brotar o amor em seu coração amaldiçoado. Por aquela que, uma vez objeto de sua devoção, seria capaz de por fim a uma vida ominosa.
Ele era homem-fera, um escravo da lua cheia. E por muito tempo andou, por muitos lugares matou e se alimentou. Tentou a todo custo achar um propósito para sua sina. E só viria a encontrar ao quase assassinar e devorar aquela menina, cuja amiga não tivera a mesma sorte, afinal poucos conseguiam sobreviver a ele. Mas ela conseguiu. Mais que isso, domou um coração vazio e condenado.
Mesmo inadvertidamente, ele já tinha visto o rosto da garota antes, era uma impressão velada. Um porta-retratos largado na biblioteca da fazenda, algo que seus olhos curiosos perceberam em noites de leitura, e que retornou às suas retinas no momento em que mais precisava. Ele pesquisou acerca da jovem junto aos mais antigos funcionários da fazenda e descobriu sua triste história.
A garota era a filha mais velha de seu empregador. Numa noite dominada por um frenesi etílico tão comum na juventude, ela causou o acidente automobilístico fatal que viria a por fim às vidas da própria mãe e da irmã mais nova. Uma infeliz ação que jamais fora perdoada pelo pai, o qual a considerava um verdadeiro demônio. Ele a havia expulsado de casa, mas nos últimos tempos ela tentava a todo custo ter uma palavra, um sinal de perdão.
O rapaz percebeu sua verdadeira motivação no momento em que soube de tudo, vislumbrou o propósito para sua sina: reunir pai e filha através da salvação, não a dele, pois enquanto voava rumo a garganta do patrão, ele estava, de fato, decidido a estraçalhar seu corpo por completo. Enquanto fera só enxergava carne e sangue, mas enquanto homem soube posicionar a faca ao alcance da visitante.
Assim, antes mesmo de ter o corpo transformado pela maldição da lua, e a mente nublada pelos rompantes de dor e morte, ele sabia que teria o coração transpassado pela faca de prata, empunhada por aquela que amava. E, enquanto seus olhos se fechavam lentamente e seu sangue negro vertia farto do peito transpassado, ele ainda conseguiu enxergar o abraço conciliatório entre sua pretensa vítima e determinada algoz. Se ele conseguisse, teria derramado uma lágrima, como prova de que assim como o mais duro aço se torna maleável ao calor do fogo, até o mais cruel dos demônios podem ter a alma devolvida antes do último suspiro.
Tal e qual dizia a canção, sua vida subia como a maré, porque ambas eram regidas pelas vontades da lua, mas o menino que crescera em volta do fogo, jamais veria outro dia sangrar e não amanheceria de novo.